• Nenhum resultado encontrado

Jean Duvignaud e Roger Bastide: percursos

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 43-51)

cruzados, biográfico e teórico

24

Claude Ravelet

Quando, em 1994, morreu Henri Desroche, com quem animávamos a associação Bastidiana e a revista epônima, foi preciso encontrar um outro presidente para a associação. Pensamos em Jean Duvignaud, que, contactado por telefone, aceitou prontamente. Desde então começa uma colaboração de 13 anos até sua morte, em 2007. As reuniões regulares, os projetos, sempre instigantes, foram para mim muito enriquecedores. Se falávamos da obra, das ideias de Roger Bastide, devo confessar que não evoquei suficientemente, com Jean Duvignaud, os detalhes dos encontros entre os dois. O que faz com que eu lamente, evocando-os hoje, de não ter colocado certas questões. Convivendo ombro a ombro, em sua vida, com um personagem dessa envergadura, não se pensa que um dia, com sua morte, – retomando Amadou Hampaté Bâ – uma “biblioteca vá queimar”.

Jean Duvignaud e Roger Bastide se conheceram, escreveram um ao outro, um escreveu um livro sobre o outro, colaboraram em colóquios, em revistas, desde o meio dos anos 1950 até a morte do segundo, em 1974. Ensaiaremos detalhar esses percursos cruzados.

Roger Bastide retorna do Brasil em 1951 e, definitivamente, em 1954, para ensinar na EPHE (École Pratique des Hautes Études). Quer retomar sua tese começada com Mauss antes da guerra, mas Mauss não é mais do que sombra de si mesmo, muito afetado pela guerra, pelo antissemitismo e pela covardia dos franceses durante a ocupação. Bastide se dirige a Gurvitch, quem ele já conhecia há muito tempo. Gurvitch era professor na Sorbonne desde 1949, e criou o Laboratório de sociologia do conhecimento em 1960. Bastide apresenta suas duas teses: As religiões africanas no Brasil e o O candomblé da Bahia, em 1957; sendo nomeado professor na Sorbonne em 1958. Assume a direção do Laboratório de sociologia do conhecimento com a morte de Gurvitch em 1965. Vê-se,

24 Jean Duvignaud et Roger Bastide: parcours croisés, biographique et théorique, tradução de Léa

Freitas Perez, revisão de Marcos da Costa Martins. Texto apresentado na ST 01.

Sociólogo, membro do Groupe de recherches Politique, Institution et Symbolique (PoLIS), coeditor

assim, que Bastide e Gurvitch convivem, regularmente, de 1954 a 1965, neste Laboratório e na Sorbonne25.

Duvignaud torna-se assistente de Gurvitch na Sorbonne, partindo em 1961 para a Tunísia como professor, antes de ser nomeado para a Universidade de Tours, em 1965. Há, então, um período, entre a metade dos anos 1950 e 1961, no qual Duvignaud e Bastide se encontraram forçosamente.

Em viagem ao Brasil, em agosto de 1961, Duvignaud mantém um diário de viagem que pode ser consultado no IMEC (Institut Mémoires de l'édition contemporaine), nos arquivos Duvignaud26. Ele anota, dia a dia, suas observações e seus encontros. Em parte alguma faz menção a Bastide, mas comenta um encontro que teria com Pierre Verger, na Bahia, sem, no entanto, na sequência, mencionar esse encontro. É, portanto, provável que Duvignaud tenha pouco lido de Bastide antes dessa data, ainda que Bastide fosse em França um especialista do candomblé da Bahia e que Duvignaud tenha lido seu livro27. É preciso observar que, nos diários de sua segunda (1968) e terceira (agosto de 1973) viagens, não se encontra igualmente nenhuma referência a Bastide, que veio ao Brasil logo após (setembro de 1973).

A correspondência de Bastide com Duvignaud, que pode se consultada no IMEC, começa em 196328. No começo, Bastide se endereça a Duvignaud nesses termos Meu caro colega e amigo, depois, em 1966 Meu caro amigo e, em 1973, meu caro Duvignaud. Eles se tratavam por vós29.

Bastide foi convidado para a casa de Duvignaud em Sidi Bou Said em 1963, e, em sua primeira carta de 1963, agradece o acolhimento30. Em seguida, Bastide evoca na carta os problemas de equivalência para os estudantes tunisinos que querem seguir seus estudos

25 Para as relações Gurvitch/Bastide antes de 1954, ver a correspondência de Gurvitch a Bastide

reproduzida em Anamnese n. 1, pp. 165-178.

26 Nota de tradução: http://www.imec-archives.com/

27 Duvignaud fez uma resenha de O candomblé da Bahia in Critique, v. 15, n. 142, 1959. Fez

também uma resenha de As religiões africanas in Anthologie des sociologues français

contemporains, 1970.

28 Não termos as cartas de Duvignaud a Bastide. Elas deveriam estar nos arquivos de Bastide no

IMEC, mas existe somente uma carta datilografada, sem grande interesse, as outras foram perdidas.

29 Nota de tradução: no original - Ils se vouvoyaient. Em francês o verbo vouvoyer, refere-se ao tratamento polido que emprega a segunda pessoa do plural, denotando uma certa distância formal. 30 Sidi Bou Said não longe de Tunis, entre Cartago e La Marsa.

na Sorbonne, problemas que tenta resolver com Gurvitch. Evoca a proximidade da defesa de Duvignaud e a viagem que esse último deveria fazer ao Japão.

Na segunda carta de Bastide a Duvignaud (1966), Bastide pede a Duvignaud para que intervenha para que um pequeno teatro de Pontault-Combault (Seine e Marne) não seja vendido e desmantelado. Ver-se-á mais adiante que o teatro é um ponto de encontro entre Bastide e Duvignaud. Voltaremos depois à terceira (1968) carta, na qual Bastide dá sua opinião sobre o livro Chebika, de Duvignaud. Na quarta carta (1972), Bastide anexa um de seus textos sobre Thales de Azevedo para a revista Cause Commune, que codirigiam Duvignaud, Perec e Virillo. Ele anuncia também seus próximos livros: Le rêve, la transe et la folie, Les sciences de la folie, Anatomie d’André Gide e a reedição de Sociologie et psychanalyse. Na quinta carta (fevereiro de 1973), Bastide aceita escrever um prefácio La boutique obscure de Perec. Na sexta e última carta de Bastide (março de 1973, um ano antes de sua morte), ele envia a Duvignaud seu prefácio para La boutique obscure, dizendo que o texto pode ser também um posfácio, que pode ser sem título ou se intitular “Sonho e ação política”, e que Duvignaud pode não considerá-lo. Diz Bastide: Tenho a impressão de que colocando meus grosseiros dedos sobre as asas de uma borboleta noturna, retiro-lhe todo seu brilho luminoso. Não seria melhor deixar de lado meu texto?

Duvignaud, que se ocupa com a edição do livro de Perec, manterá, evidentemente, o texto de Bastide, em posfácio e sem título. Note-se que Duvignaud convidou Bastide para um colóquio que ele organizaria em Tours, em 1969, sobre os cultos de possessão, e que eles se encontraram em um colóquio em Rabat, em 1970, sobre “sociologia e sexualidade”.

Dispomos de um importante corpus de textos recíprocos Bastide/Duvignaud.

Da parte de Bastide: 1) um prefácio a uma obra coletiva, organizada por Duvignaud - Contribution à la sociologie de la connaissance (1967); 2) dois textos para Cause Commune - um sobre Thales de Azevedo e outro sobre “A sociologia do sonho” (1971); 3) um posfácio para La boutique obscure. Mas nenhum artigo de Bastide sobre Duvignaud.

Da parte de Duvignaud: 1) sete artigos sobre Bastide em L’observateur (1974), Cahiers Internationaux de sociologie (1974), Revista de Ciências sociais (1974), Le Nouvel Observateur (1975), Bastidiana (1993), Le Monde (1995), Bastidiana (1996); 2) dois prefácios - Art et société (1977), Images du Nordeste mystique (1995), e mais um prefácio para Études sur Roger Bastide (Ravelet, 1996); 3) três resenhas de livro de Bastide - Le

Candomblé de Bahia (1959), Les religions africaines au Brésil (1970), Le prochain et le lointain (1972)31.

Duvignaud retomará a direção de Bastidiana, associação e revista consagrada a Bastide, com a morte de Henri Desroche em 1994, ficando no cargo até sua morte, em 2007.

Enfim, as referências a Bastide nas obras de Duvignaud são numerosas, em particular em Le don du rien (uma dezena de referências) et Fêtes et civilisations (três referências)32.

Vê-se que esses percursos cruzados, entre a Sorbonne, o Brasil e a Tunísia, constituem uma camaradagem de quase meio século (1961-2007).

Para além dessas relações biográficas e bibliográficas, vejamos que o que aproxima esses dois autores amigos, levando em conta, eventualmente, pequenas diferenças.

1. Primeiro: o gosto do “bem escrever”.

Em uma carta de maio de 1968, Bastide diz a Duvignaud todo o bem que ele pensa de seu último livro Chebika: Para escrever Chebika, seria necessário que o sociólogo fosse também um escritor. Pois somente um escritor pode “sentir” todo o desenvolvimento secreto dos acontecimentos e revelá-los.

Sabe-se que essa beleza da língua se encontra em Bastide. Basta ler as primeiras páginas de Images du Nordeste mystique para disso se convencer.

2. Um outro ponto em comum entre Duvignaud e Bastide: o romance e a poesia. Bastide era um apaixonado pela literatura. Quase a metade de seus 1500 textos a ela se reportam. Mais, ainda, Bastide havia pensado, em primeiro lugar, em ser escritor. Seu primeiro e único romance não foi aceito pela NRF (e isso em que pese a intervenção de Gide) e suas duas coletâneas de poesia não foram editadas, exceto, e de modo póstumo, a

31 A senhora Bastide, em carta de 25/02/1976, pede a Duvignaud um prefácio para uma reedição de Eléments de sociologie religieuse pela Payot. Sei que o senhor era um de seus grandes amigos diz

ela. Infelizmente a editora Payot não dará sequência à reedição, o que só acontecerá em 1997 e pela editora Stock.

32 A observar que o editor comete um erro ao atribuir os livros Bastide à G. Bastide (o romancista

meus cuidados, em 1995, na Bastidiana33. Bastide não insistiu e contentou-se em escrever sobre os romancistas e sobre os poetas.

Duvignaud publicou mais. Em nosso conhecimento ele escreveu oito romances, sobretudo, editados pela Gallimard, e uma dezena de ensaios sobre a arte e a literatura, mas certamente haverá outros, quando tivermos sua bibliografia completa. Não se pode falar das relações entre Duvignaud e Bastide sem evocar Leiris, que era amigo dos dois e que tinha, com ambos, vários pontos em comum, em particular a literatura. Leiris, que cultivava também a “bela língua”, escreveu mais romances, ensaios e poemas do que textos antropológicos. Seria necessário uma bibliografia completa de Leiris, mas relativamente aos 35 livros que conhecemos até hoje, 25 são romances, ensaios e poemas.

3. Último ponto em comum: o teatro.

Sabe-se que Duvignaud escreveu Sociologie du théâtre (1965), mas também mais L’Acteur (1965), Spectacle et société (1970), Le théâtre contemporain (1975), Théâtre et sciences de la vie (1986), sem esquecer seu estudo sobre Buchner (1954) e, sobretudo, sua peça Marée basse (1956). É, portanto, um tema muito importante em sua obra. De seu lado, Bastide escreveu vários textos sobre o teatro, em particular Sociologie du théâtre nègre brésilien (1974), mas também sobre Claudel (1941, 1942, 1963), Racine (1940, 1947, 1949), o teatro em Paris (1947, 1952, 1955, 1958), G. Marcel (1948), o teatro brasileiro (1950, 1951, 1957), Romance e teatro (1953), entre outros, seja um corpus de pelo menos 16 artigos.

Tanto em Bastide quanto em Duvignaud, o teatro não é apreendido somente do ponto de vista estético, mas, também, como “prática social”. Diz Duvignaud: “O teatro é bem mais do que o teatro […], o texto representado excita os movimentos coletivos […]. Existem espantosas semelhanças entre a vida social e a prática do teatro” (1965: 1,3). Mais adiante Duvignaud nota: “O enraizamento do teatro na experiência coletiva dos homens” (id.: 540). Logo, de maneira durkheimiana, podemos dizer que o teatro é um fato social. Mas, iremos mais longe com Leiris, Bastide e Duvignaud, colocando em concordância quase perfeita o teatro e o rito. É Leiris quem escreve em 1938: “No estado atual de nosso conhecimento, a possessão pelo zar aparece, de um lado, como participando do espetáculo de modo o mais direto, pelo fato deque ela é pretexto para danças e cantos públicos, de outro lado, como merecendo, em qualquer grau, o qualificativo ‘teatral’, em razão não

somente do que contém, desde o princípio, de convencional em suas formas definidas pelo ritual, mas ainda pelo modo como se vê nela intervir um lote de personalidades imaginárias, com traços dados de uma vez por todas, que o paciente representa de um modo objetivo, às vezes mesmo munido […] de roupagens ou de acessórios especiais que marcam, como poderia fazer uma máscara, o apagamento do portador atrás da entidade da qual ele desempenha o papel. Como respondendo à nossa noção de ‘teatr’, no senso estrito devem ser tomadas, seguramente, certas práticas, cujo objetivo essencial parece bem ser de divertir uma assembleia: as encenações paródicas, notadamente, o dos possuídos de um ou de outro sexo improvisam, às vezes, no curso de regozijos que acompanham inúmeras cerimônias. É inegável, igualmente, que fora mesmo de seus aspectos propriamente dramáticos o culto dos gênios zar comporta um elemento de espetáculo, se notarmos que a dança e o canto, empregados constantemente de maneira litúrgica nas reuniões de zar, não deixam de reencontrar seus amadores, mais ou menos esclarecidos, sem portar sobre eles um julgamento estético” (1938: 33-34).

O teatro é um ritual, mas o rito é também uma forma particular de teatro. No candomblé, os papéis são atribuídos previamente, no curso da iniciação, cada um tem o seu deus e seria inconveniente que um outro deus viesse “habitar” uma possuída no dia da cerimônia. Mas, Duvignaud, em Sociologie du théâtre, diz bem que o rito e o teatro não são exatamente a mesma coisa. São duas formas de um mesmo processo social.

4. Bastide utiliza muito pouco a palavra “festa”, ele prefere o termo “rito”. Em Duvignaud é o contrário. A festa é onipresente, e o termo “rito” (ou “ritual”), menos corrente e mais específico. A festa é um termo genérico englobante, do qual o rito faz parte. Entre os dois autores, é uma diferença semântica ou semiótica? Dois objetos diferentes ou duas palavras para designar um mesmo fenômeno? Trata-se de um amplo debate, sobre o qual eu não gostaria de me estender, pois penso que esse colóquio o fará mais abundantemente.

Os exemplos de Duvignaud em Fêtes et civilisations e em Le don du rien recobrem os objetos bastidianos: a festa de Iemanjá, o candomblé, e, mesmo, maio de 1968, onde Bastide vê a irrupção do sagrado selvagem (1975, último capítulo). Duvignaud estende o domínio da festa às máscaras do 14 de julho, às festas nazistas de Munique e, mesmo, aos saraus do Bus Palladium em Paris em 1967, etc. Bastide distingue o sagrado instituído dos ritos estabelecidos, onde os jogos são regrados segundo “partições” fixadas previamente (as missas cristãs, o candomblé) e o “sagrado selvagem”, que vem perturbar o rito estabelecido. A mesma distinção existe em Duvignaud entre o caráter “formal” de certas

festas e a “ruptura” de certas outras. Mas Duvignaud é muito mais atraído pelas festas de transgressão, de subversão, que Bastide, e, sobretudo, que a maioria dos etnólogos. Sabemos que para Duvignaud todas as festas são, em um grau mais ou menos forte, contestadoras, sejam “pequenas perturbações aleatórias” ou “subversão criadora (1975: 205)”: “Nem a antropologia, nem a filosofia não podem dar conta dessa manifestação subversiva que opõe à coesão dos conjuntos a destruição das formas instituídas” (id.: 213).

5. As obras de Duvignaud sobre a festa não comportam tipologia. Seu discurso não é racionalista, ele não faz categorização e classificação. À diferença de Bastide, que o faz muito frequentemente. No entretanto, encontrei nos arquivos Duvignaud, do IMEC, um manuscrito, sem título, sem data, destinado originalmente ao Correio da UNESCO em 1984, mas provavelmente inédito, que faz uma tipologia das festas (IMEC: DUG2.A13.19). Duvignaud distingue: as festas-acontecimentos da existência (nascimento, casamento, etc.); as festas de renovação; as festas rituais que reproduzem uma liturgia; as festas urbanas, precisando que elas estabelecem um pacto entre o povo e o Estado (ou o chefe), como, por exemplo, 14 de julho, 01 de maio; as festas de convivialidade privada (refeições, banquetes, etc.), onde os “rituais se impõem a si mesmos”; as festas de transgressão, ex: a algazarra, a comuna de Paris, Maio de 1968, etc., nas quais “a festa é um motor da existência coletiva”.

Com toda evidência, mais do que as outras, são as festas urbanas e, sobretudo, as festas de transgressão que interessam a Duvignaud, tal como testemunha um outro manuscrito inédito, não datado, do IMEC, cujo título é todo um programa: La rupture: la fête dans la rue (IMEC: DUG2.A13.46.). Já em Fêtes et civilisations, apoiando-se no conceito durkheimiano de “eferverscência coletiva”, Duvignaud, tenta mostrar que todas as festas são subversivas, mesmo as mais anódinas em aparência, mesmos as mais “enquadradas”. Todos os qualificativos de Duvignaud concernentes a festa vão neste senso. A festa é “o ajuntamento dos participantes em torno de um mesmo projeto […] o 'nós' exaltado se funda em um ‘todo’” (1984: 127), onde as pessoas experimentam “papéis diferentes daqueles que lhes propõe a vida social” (1977: 87). A festa é “clandestina”, sabemos que os primeiros candomblés, santerias, vodus, proibidos pelos senhores de escravos, desenrolavam-se a noite no segredo (1977: 87). A mesma coisa para os vodus beninenses, proibidos pelo regime marxista, ou para os cultos das periferias de Bamaco, desautorizados pelo governo militar e pelo Islã. Reação à destruição de elementos culturais, eles resistem. Diz Duvignaud: “Sou de opinião que a maneira pela qual as sociedades se conservam ou se reproduzem é inversamente proporcional à força que tende

à destruí-las ou as põem em questão” (ibd.: 206). Para Duvignaud, a festa é irrecuperável pelos poderes estabelecidos: “O sonho, a festa, o riso, o jogo, o imaginário constituiriam a parte irrecuperável para toda organização de alguma importância” (ibd: 200). A festa “contesta a própria cultura e, frequentemente, tenta rasgar o véu que envelopa os hábitos comuns […] para, assim, fazer um ato social, de desregramento e de transgressão” (1984: 178), ela é uma “contestação informulada”, uma “zona de hesitação”, uma “região confusa” (1977: 50), ela “é uma aposta, os homens [...] se colocam à prova da indeterminação e da contingência” (id.: 158), ela é “a-estrutural” (ibd.: 33), mas também é em vias de estruturação. Os escravos africanos esqueceram-se de faixas inteiras de seus ritos no Novo Mundo. Segundo o processo de “memória coletiva” de Halbwachs, preencheram os vazios do esquecimento por um bricolage. Aqui, Duvignaud retoma o conceito Lévi-Strauss e de Bastide (ibd: 40): “Somente o esquecimento, portanto, provoca a inovação” (ibd: 87). “A festa emerge. Ela surge com a arte da metamorfose (ibd.: 110). É neste senso que ela é “criadora”. E aqui, Bastide e Duvignaud se reencontram. Se Bastide, frequentemente, viu a regra, a organização no rito, em seu último grande texto (póstumo) que Duvignaud poderia muito bem ter escrito, ele reconhecia a irrupção do sagrado selvagem nas instituições frias e seu aspecto criador: “Deixe-me ver, nessas experiências de sagrado selvagem, a vontade de retomar o gesto de Moisés quando ele bateu com sua vara o solo dessecado para fazer dele brotar a água que faz reflorescer os desertos” (1975: 229).

Referências bibliográficas

Bastide, Roger. Le sacré sauvage. 1975. Paris, Payot. Critique v. 15, n. 142. 1959.

Duvignaud, Jean. Anthologie des sociologues français contemporains. 1970. Paris, Puf.

Duvignaud, Jean. Fête et civilisations. 1984. Paris, Scarabée & Compagnie.

Duvignaud, Jean. Le don du rien: essai d’anthropologie de la fête. 1975. Paris, Stock.

Duvignaud, Jean. Sociologie du théâtre. 1965. Paris, Puf.

Leiris, Michel. La possession et ses aspects theatraux chez les Ethiopiens de Gondar, 1938.

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 43-51)