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A procissão dos Passos em Lisboa

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 66-72)

Crendo em crer vivamente que não exista nada mais concreto do que a teoria, que, a vida, a própria vida, a vida própria, este pequeno, deslumbrante e misterioso acidente da matéria, que abre às infinitas possibilidades do existir, a vida é obra literária e filosófica, por excelência, quero, agora, partilhar algumas impressões sobre a festa para além da festa, que me evocadas/solicitada por um mergulho seletivo em profundidade amorosa, em algumas celebrações da semana santa em Lisboa, notadamente a procissão dos Passos46.

Não vou descrever o que vi, pois uma tal operação é impossível, a não ser sob o signo da morte da alteridade. Não tenho a menor intenção de relatar o que vi, mas de falar sobre o que senti. Não peço que acreditem em mim, que meu testemunho seja prova do que se passa no real, como quer a doxa populista de uma certa antropologia. Não!

A procissão dos Passos é feita em memória do encontro entre Jesus com sua mãe no caminho da via crucis, e que chamamos, por essa razão, de procissão do encontro. Nosso senhor dos Passos é uma invocação de Jesus Cristo e uma devoção especial, cuja hi[e]stória remonta à idade média, quando os cruzados, que visitavam os locais sagrados de Jerusalém quiseram, quando de volta à Europa, re-produzir espiritualmente este caminho sob forma de dramas sacros e de procissões, de ciclos de meditação, ou estabelecendo capelas especiais nos templos47. Vale lembrar igualmente que a procissão do encontro refere-se à quarta das sete dores de Maria, isto é, o doloroso encontro entre a mãe e seu filho no

46 Trata-se de pesquisa realizada no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, graças a uma bolsa de

estágio sênior de pesquisa da Capes, entre dezembro de 2009 a dezembro de 2010.

47 Como já disse em outro lugar, “o termo história é grafado propositadamente hi[e]stória para

ressaltar o double bind que o tropo comporta e solicita como fato e artefato histórico, como evento e acontecimento socioantropológico, como real factual e construção imaginária e/ou discursiva.

Double bind [duplo vínculo], proposto por Gregory Bateson em 1956, refere-se à existência de

injunções paradoxais [aporéticas], dupla postulação. Uso aqui na sua acepção derridiana, que remete ao senso mesmo da diferença e da indeterminação no que tange à solução e ao fechamento de uma questão de pensamento. Em uma só palavra: indecidibilidade” (Perez, 2011: 23, nota 4).

caminho do calvário. Em Lisboa, o culto do qual resultou a procissão do Senhor dos Passos remonta ao século XVI.

A primeira celebração que assisti foi uma procissão dos passos da Irmandade do Senhor dos Passos de Santos-o-Novo realizada no recolhimento de Santos-o-Novo, que pertence às Comendadeiras de Santos, da ordem de Santigo da Espada. Foi nesse mesmo prédio (o Mosteiro de Santos-o-Novo) que se localiza a residência do ISCTE, onde residi durante minha estadia em Lisboa, de modo que, parafraseando o poeta posso dizer que no meu caminho não havia uma pedra, mas uma procissão. Com isto quero dizer que não escolhi esta procissão, ela se colocou no meu caminho, tal como alpondras e serendipitys, ou seja, acaso, surpresa. Como maravilhosamente bem diz Otávio Velho, trata-se da “descoberta daquilo que não se está procurando”, e que aponta para a irrupção no trabalho do antropólogo da imprevisibilidade, “acentuando a centralidade dos indícios sensoriais e das conexões estabelecidas entre elementos aparentemente díspares e distantes entre si, tudo isso demandando paciência, sensibilidade e tempo”; “tempo, até, de desaprender teorias e pensamentos automatizados, inclusive os que veem revestidos de autoridade” (2006: 11)48.

A festa para além da festa na procissão dos Passos do mosteiro não foi propriamente a dos participantes, lá era um ritual, formal, solene, pesadamente barroco, pesado, mas a minha: face seja ao modo como se colocou no meu caminho, seja da minha surpresa ao aprender e apreender a magnificência nobre de que se reveste este evento, feito quase que em privado, num ambiente fechado e por um pequeno grupo de pessoas.

Festa para além da festa vi eclodir mesmo na procissão dos Passos das igrejas de Santo Estêvão e de São Miguel, na Alfama, em breves, brevíssimos instantes, comme il se doit. Remeto a dois deles, pois os percebo como exemplares das proposições de Duvignaud.

O primeiro aconteceu durante o encontro dos andores do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, que é o momento culminante da procissão. Ao pé da Alfama, no largo do Chafariz de Dentro, em frente ao museu do fado, teve lugar uma longa prédica do oficiante que provocou muita emoção, sobretudo quando evoca a todos a evocarem suas mães, as vivas e as mortas, como a dele. Abundaram lágrimas deles e minhas. Lágrimas das

48 Serendipity - “trata-se (ninguém é obrigado a saber) de palavra cunhada por Horace Walpole

(1717-1797) a partir de um conto de fadas persa (os três príncipes de serendip) para se referir à importância do acaso, da surpresa e da descoberta daquilo que não se está procurando” (Velho, 2006: 11). Sobre serendipity veja-se também o excelente artigo de Costa (1985).

mães que lá estavam, pelas mães que não estavam lá. Lágrimas minhas por mim, mãe, pela minha mãe, pelas mães que lá estavam. Lágrimas de todas as mães, pelas lágrimas de todas as mães. Como muitos dos presentes, eu mal podia tirar os olhos dos olhos de Nossa Senhora das Dores: sua dor era a nossa dor, a minha dor, a dor do amor que sabíamos perto do fim. Como se o coração de cada um e de todos ali estivesse, tal o de Nossa Senhora das Dores, transpassado pela espada encravada em seu peito49. O pequeno lenço branco que ela carrega em uma das mãos, como que neste instante torna-se um imenso manto/lençol que acolhe e abriga todos os filhos, que éramos, cada um ali presente e todos nós, um só filho. Lenço que desde a procissão do mosteiro me fixou o olhar50. Este instante breve, brevíssimo, mas que parece ter a duração da eternidade, da eternidade fugaz da vida, é de plena fusão comunial, de abandono de si e de encontro com autri, de explosão de emoções e de afetos, não necessariamente para todos e não de modo igual, com a mesma intensidade, mas existe e é forte, tout de même e que libera, como fala Duvignaud, os participantes para investir na interioridade e para experimentar a circulação geral dos seres.

O segundo momento de irrupção da festa dentro da festa aconteceu no cortejo de volta. A cena mais tocante de todas: de um balcão, forrado de uma simples, pobre mesmo, colcha branca, velhinha, de cobrir a cama. Uma senhorinha muito velha, e aos prantos, jogava pétalas de flores no andor de Nossa Senhora, no exato instante que o andor passa embaixo de seu balcão. Foi a mais intensa e viva emoção que vi. Solitariamente, em seu balcão, festivamente decorado, ela fazia a sua festa para além da festa que transcorria na rua.

Emoção talvez somente aquilatável [jamais comparável, porque para mim jamais se trata de comparar, equívoco antropológico] com a emoção de uma das senhoras, que carregava o andor de Nossa Senhora.

O olhar desta mulher concorria com o olhar de Nossa Senhora, com o meu olhar sobre o olhar dela olhando Nossa Senhora51. Impressionante a atenção/tensão desse olhar o

49 A espada, elemento fundamental da iconografia de Nossa Senhora das Dores, ícone de sua dor de mãe preste a perder seu filho, é objeto de inúmeras falas nas celebrações da paixão.

50 A alteridade, simultaneamente muito presente [e presente no/pelo olhar] e muito distante incita

o delírio pelo truchement da desrealização, de modo que se vê onde não há nada a ver e não se vê que há a ver (Affergan, 1987: 71).

51 Victor Segalen fala do olhar do chinês descobrindo o seu olhar descobrindo o olhar do chinês. Diz,

e este me parece ser o ponto de fuga de toda comparação classificante, típica da doxa antropológica, que não se compara senão sensações, subjetividades, pedaços de pertencimentos,

tempo todo, no cortejo, na prédica do padre, na missa. Chorei junto com ela, por ela, por mim52.

Em ambas as procissões, bem como nas procissões da via matris das Igrejas dos Mártires e do Sacramento que também assisti, a festa irrompeu na festa, sob uma outra forma, que estou chamando, na falta de uma expressão melhor, de frenesi do andor.

Pareceu-me a mim que carregar o andor é a tarefa mais importante e grave de todas. Cada movimento, cada parada é tensa, crítica. Tensão e densidade: vai cair, vai cair. A cada parada, a cada subida ou descida, a cada passagem por espaço mais baixo, o frenesi se apodera de todos. É quase que um corre-corre dos ajudantes com os apoios de descanso do andor, como se tudo parasse no instante mesmo daquela paragem. Se o andor cai, Deus do céu, cai todo o evento. É o fim, a morte da festa. É isto o frenesi do andor que é também, et pour cause, uma aposta, um desafio, um jogo de poder entre o frágil corpo humano e a fé sobre-humana, uma prova de resistência.

An-dor, andar com dor, andor é dor, tal como o refrão da música: andar com fé eu a fé não costuma falhar. O andor é o ponto culminante, o que religa tanto no senso do religare (o que une) a mãe e o filho, o encontro da mãe com o filho que se celebra ali, que liga com todos os participantes que estão ali à narrativa dramatizada, quanto no senso de relegare, o que separa o sagrado do profano, os que estão participando da procissão e os que estão assistindo.

O que vi, melhor, o que senti, para além da festa aquando dessas procissões é uma hi[e]stória de amor, de um encontro amoroso grave, intenso, mágico, místico, mítico, potente, entre uma mãe e seu filho votado ao sacrifício de uma vida que se sabe e que se quer breve, muito breve, de uma vida que se dá à morte por amor a nós, mortais e pecadores. O que experienciei nessas procissões foi a dramatização da paixão e da fé, da vida como paixão e como fé. Trata-se bela e bem de uma procissão do amor, sobre o amor e feita com amor, sobre um encontro amoroso, íntimo e grave, como deve ser todo encontro amoroso, que faz jus ao nome. Encontro de cada um dos participantes com o encontro de amor entre a mãe e seu filho. Um encontro de amor sobre/com um encontro

poeiras de visão. Para Affergan, entre todas as marcas simbólicas que o olhar pode revelar por uma aproximação antropológica da alteridade, a face ocupa um lugar, pois que se apresenta imediatamente, tal como uma forma já estruturada e pregnante, indissecável, induzindo, assim, atitudes afetivas, pois é o olhar e em um outro olhar que cria a reação afetiva. (Affergan, 1987: 104, 105, 152, 153).

52 Há olhar, diz Affergan, quando aquele que olha permite que o outro o olhe, fazendo-o aceder a

de amor. Encontro de amor individual, evidentemente, mas que somente se realiza quando é experimentado/vivido coletivamente. Trata-se da circulação geral dos seres, da qual já havia assinalado uma outra ilustração empírica. Jesus e Nossa Senhora, o filho e a mãe, cada um e todos os participantes das procissões de Lisboa, cada um de nós, todos nós, passamos pela vida, passamos a vida, pois que a vida é festa em busca do amor, do encontro do amor, do desejo do encontro do amor. Mas o desejo de amor, quando se realiza no encontro amoroso do amor, como lindamente nos contou Bataille, traz consigo [talvez seja esse o seu an-dor] inexoravelmente a morte. Todo encontro de amor é também, et pour cause, um encontro de morte, com a morte, a morte do amor. Morte do amor, tal qual um gesto sacrificial que lança, “o que existe de irreparável na vida, a morte”, no porvir (Pinto, 2008: 68).

Amor e fé, amorosamente de mãos dadas, fazendo eclodir inopinadamente a festa para além da festa. Vi, melhor, vivi, a festa em sua irrupção, em instantes fugazes, num olhar, numa lágrima, na festa solitária da senhoria na sacada, na exaltação do andor. A doce e violenta invasão do nada e da troca de sentimentos e de emoções que dão valor à vida, que fazem a vida valer a pena. Sinto-me feliz e orgulhosa de ter vivido e visto o que vivi e o que vi: alguma coisa de invisível, mas absurdamente concreta em sua realização. Uma festa para quem, como eu, busca ir além da festa-fato para alcançar a festa-questão.

Referências bibliográficas

Affergan, Francis. Exotisme et altérité: essai sur les fondements d’une critique de l’anthropologie. 1987. Paris, PUF.

Bataille, Georges. Théorie de la religion. 1973. Paris, Gallimard

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Da Costa, António Firmino. Espaços urbanos e espaços rurais: um xadrez em dois tabuleiros. 1985. Análise social XXI.

Duvignaud, Jean. El sacrificio inútil. 1997. México, Fondo de Cultura Económica

Duvignaud, Jean. Festas e civilizações. 1983. Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. (traduction et notes d'introduction L. F. Raposo Fontenelle)

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Perez, Léa Freitas. Dionísio nos trópicos: festa religiosa e barroquização do mundo – por uma antropologia das efervescências coletivas. 2002. Mauro Passos (org.). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis, Vozes.

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Perez, Léa Freitas. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil. 2011. Porto Alegre, Medianiz.

Velho, Otávio. Trabalhos de campo, antinomias e estradas de ferro. 2006. Interseções v. 8, n. 1.

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 66-72)