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2.3 SABERES DOCENTES E ALFABETIZAÇÃO

2.3.1 Formas tradicionais de alfabetização

O advento da República no Brasil fez emergir a necessidade de saber ler e escrever para a compleição do cidadão. Durante o Império, a leitura e a escrita eram aprendidas por poucos, no interior dos lares brasileiros ou em salas adaptadas. Na República precisou ser institucionalizada por meio de um ensino sistemático e organizado. Dessa forma era possível atingir aos que necessitavam desse instrumento para passar para esse novo mundo, o da cultura letrada (MORTATTI, 2006).

No entanto, para auxiliar, principalmente as crianças, nesse processo de aquisição da leitura e escrita, entendia-se necessário utilizar um método de alfabetização. Magda Soares descreve que o método, numa visão associacionista, que privilegia a experiência, foi um fator determinante no processo de aquisição da língua, “já que seria por intermédio da exercitação

de habilidades hierarquicamente ordenadas que a criança aprenderia a ler e escrever” (SOARES, 2011, p. 89).

Os primeiros métodos difundidos no Brasil, principalmente na segunda metade do século XIX, foram os sintéticos, desdobrados em três modalidades diferentes de ensino, o alfabético, o fônico e o silábico. No alfabético se partia do nome das letras, no fônico do som dessas letras e no silábico partia-se das sílabas. Portanto, esses métodos consistiam em ensinar a leitura e a escrita das partes para o todo, partindo das letras e seus sons ou das famílias silábicas para enfim trabalhar as palavras, frases e pequenos textos (MOLL, 1996; MORTATTI, 2006).

Mortatti (2006), em sua conferência proferida durante o Seminário "Alfabetização e letramento em debate", promovido pelo Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, realizado em Brasília, relata que com esses métodos era necessário

[...] iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/ou sons e/ou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras (MORTATTI, 2006, p. 5).

Os métodos sintéticos foram conhecidos por meio de cartilhas, utilizadas por décadas nas escolas do país. Ancoradas na certeza de que a percepção auditiva relacionada à grafia das letras e a repetição tanto oral como escrita levava a aprendizagem, essas cartilhas traziam lições que adotavam tais pressupostos (MOLL, 1996). Ainda segundo Jaqueline Moll, com o método sintético “a leitura mecânica precede a leitura compreensiva, estabelecendo-se o total esvaziamento contextual da mensagem” (MOLL, 1996, p. 54).

O segundo método difundido no Brasil no final do século XIX foi o método analítico. Tendo a Escola-Modelo, anexa da Escola Normal de São Paulo, como referência na implantação da reforma dos métodos de ensino da língua escrita. O método adota o sentido oposto do método sintético. Sua característica principal era o ensino da leitura partindo do “todo”, que podia ser a palavra, a sentença ou uma pequena história, ou seja, ensinava-se por meio da palavração, da sentenciação ou dos contos ou historietas (MORTATTI, 2006).

[...] apoiando-se na Psicologia infantil, o aprendizado da leitura deve partir do concreto para o abstrato. Isto quer dizer que, através de uma frase, é possível que se tenha uma imagem completa, ao passo que as letras são altamente abstratas para as crianças. O aprendizado será favorecido se se apresentar ao aluno como algo real, próximo, com sentido completo. Além disso, os autores argumentam que a frase precede às vezes a palavra na linguagem do menino, ou, pelo menos, que cada suposta palavra de sua linguagem representa uma considerável variedade de formas de frases (MACIEL, 2001, p. 114).

Pode-se afirmar que Decroly foi o grande mentor do método analítico ou global de leitura (MACIEL, 2001). Com o auxílio de seus discípulos, no Instituto de Ensino Especial de Bruxelas, foi pioneiro “na sistematização dos princípios biopsicológicos do processo de aprendizagem da criança no processo da leitura” (MACIEL, 2001, p. 114) e experimentador do método no Instituto Especial, em Bruxelas, de 1904 a 1914.

Buscava-se com esse novo método uma aprendizagem mais concreta e significativa da língua. Partindo-se do concreto para o abstrato, ou seja, de uma história, um conto, uma frase conhecida para chegar às letras, que isoladas não possuem significado, o aprendizado seria favorecido e teria sentido para a criança.

Maciel ainda reitera:

Em suas conclusões, Decroly e Degand afirmam a correlação existente entre a habilidade para identificar e reter frases, palavras, sílabas e letras de um lado, e o nível intelectual de outro, ou seja, quanto mais inteligente a criança, maior facilidade terá em aprender a ler. No entanto, a leitura de elementos abstratos, tais como as letras e as sílabas isoladas, exige uma intervenção maior da inteligência que a leitura das frases e das palavras, mais concretas, mais inteligíveis, porque estão mais relacionadas ao interesse das crianças (MACIEL, 2001, p. 114).

O método analítico para o ensino da leitura foi obrigatório no estado de São Paulo até a aprovação da Lei nº 1750 de 1920, também chamada Reforma Sampaio Dória. Essa lei passou a dar autonomia didática às escolas para adotarem o método de alfabetização desejado. Porém, antes da aprovação da referida Lei, o método disseminou-se por todos os estados brasileiros, por meio dos professores paulistas e de publicações como cartilhas, artigos em jornais e artigos em revistas pedagógicas da época (MORTATTI, 2006).

Com a Reforma Sampaio Dória a seu favor, os professores foram criando resistência em utilizar o método analítico e passaram a buscar novas propostas para a alfabetização. O que se viu então nas décadas seguintes foi a utilização de métodos mistos ou ecléticos, chamados analítico-sintéticos, que os professores consideravam mais rápidos e eficazes. Com

isso, a importância de dominar um método específico para alfabetizar foi enfraquecendo e surgindo, em contrapartida, o método global de contos (MORTATTI, 2006).

Para Mortatti (2006) esse enfraquecimento foi ocasionado com a “disseminação, repercussão e institucionalização das então novas e revolucionárias bases psicológicas da alfabetização contidas no livro Testes ABC para verificação a maturidade necessária ao

aprendizado da leitura e escrita” (MORTATTI, 2006, p. 9). O livro, de Lourenço Filho

publicado em 1934 é resultado de suas pesquisas com crianças do 1º ano do 1º grau.

Nesse livro, o autor propõe oito provas para medir o nível de maturidade das crianças que são necessárias para a aprendizagem. Por meio desses testes, as crianças eram classificadas e organizadas em classes homogêneas, para facilitar o ensino da leitura e escrita. Os testes eram realizados individualmente a fim de averiguar, além do nível intelectual, possíveis deficiências de visão e audição, blesidade ou gagueira, problemas de vocabulário, emotividade, alguma dificuldade de adaptação ou instabilidade, permitindo assim uma triagem para possíveis exames especiais se a escola teria condições de encaminhar (LOURENÇO FILHO, 2008).

Na leitura do manual de Lourenço Filho (2008, p. 108-119), destacam-se algumas indicações, entre elas a de que um exame completo consome aproximadamente oito minutos e que as provas devem respeitar a ordem de apresentação indicada no guia. Além disso, que o teste deve ser aplicado em sala silenciosa e desprovida de ornamentação, para não distrair a criança. Recomenda o gabinete do(a) diretor(a) como o ideal para isso, bem como que o teste deve ser aplicado na quinzena inicial do trabalho do ano, respeitando-se os dois ou três primeiros dias de aula, tempo em que a criança ainda encontra-se intimidada com a escola. Também orienta para o examinador deixar a criança à vontade, não mencionando provas ou testes, mas dizendo que realizarão juntos um jogo ou brincadeira. O manual propõe a notação de cada prova em quatro graus: superior (3 pontos), médio (2 pontos), inferior (1 ponto) e nulo (zero ponto), sendo que a pontuação máxima para as oito provas alcançaria 24 pontos e a mínima de zero. A nota final corresponde à soma dos pontos de cada prova e o resultado é tomado como um indicador do nível de maturidade (NM) para a leitura e a escrita. Para estabelecer o NM da criança considera-se: o quartis médios, entre 12 e 16 pontos, inferior, de 11 pontos para baixo e superior, de 17 pontos para cima, numa escala que vai de 0 a 24 pontos. Dessa forma, as classes poderiam ser separadas em grupos homogêneos, conforme os pontos obtidos pelas crianças.

Outro ponto diz respeito ao prognóstico sobre o tempo que a criança levaria para se alfabetizar de acordo com o resultado do teste ABC. O manual aponta que com um NM de 17

pontos ou mais, a criança aprenderia a ler e escrever em um semestre letivo; com um NM de 12 a 16 pontos a aprendizagem se daria em um ano letivo; com um NM de 11 pontos ou menos, a criança não aprenderia, necessitando assim maiores cuidados por parte do professor alfabetizador e com menos de 7 pontos o ensino escolar comum seria inútil. Crianças com um desempenho dentro da última faixa precisariam de atenção especial e exames complementares para um possível tratamento (LOURENÇO FILHO, 2008).

Com a utilização do teste ABC, há um enfraquecimento na utilização de um método único para alfabetizar. Com isso, surge o método global de contos, que apesar de ser um método analítico, desperta maior interesse das crianças, por partir de uma historieta do universo infantil. Esse método foi defendido pela professora do curso de formação de professores na Escola de Aperfeiçoamento, em Minas Gerais, Lucia Casasanta, no período entre 1929 a 1946, que, apesar de não ter deixado grande produção teórica, influenciou a alfabetização no Brasil (MACIEL, 2001).

Segundo Maciel (2001), a principal característica do método consistia em escrever na lousa uma pequena história estimuladora do interesse infantil, com sentido completo, ou seja, com início, meio e fim, formando um enredo. Para despertar o interesse das crianças, recomendava-se que a história envolvesse a vida familiar dos alunos, seus brinquedos, aventuras infantis, etc., estimulando assim a participação e a expressão oral do aluno (MACIEL, 2001). De acordo com o manual da professora Casasanta, pesquisado por Maciel (2001, p. 123), “inicia-se o processo do todo para as partes, seguindo-se a decomposição do texto em sentenças, palavras, sílabas”.

Lucia Casasanta enriquece o método propondo cinco fases, que deveriam ser seguidas no processo de alfabetização. Em grandes linhas, propõe: a) fase do conto ou historieta, que tem por objetivo familiarizar o aluno com o texto escrito e despertar o desejo de ler; b) fase da sentenciação, que prepara a criança para perceber as unidades menores do texto; c) fase da porção de sentido, que consistia em utilizar partes de sentenças para formar outra de sentido novo; d) fase da palavração, onde os alunos passam a decompor as sentenças em palavras; e) fase da silabação, que consistia em decompor as palavras em sílabas (MACIEL, 2001, p. 124- 130). Maciel ainda aponta que Casasanta destaca algumas recomendações comuns a todas as fases: “a passagem de uma fase à outra deve ser gradual; a memorização deve ser natural e não forçada; a maturidade e o interesse da classe é que determinam o avanço para a próxima fase” (MACIEL, 2001, p. 124).

Apesar de todos os estudos em relação aos métodos de alfabetização na história da república, o fracasso em alfabetizar crianças persistiu, assombrando as escolas brasileiras. Foi

a partir da década de 80 que, com as descobertas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky e a publicação da Psicogênese da Língua Escrita, que se passou a pensar a alfabetização, deslocando o foco de como se ensina para o como a criança aprende, ocasionando com isso uma revolução no processo de ensino da leitura e escrita.