• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO AOS CONCEITOS DE

1.2 Heinz Heckhausen

Heckhausen15 considera que para entender plenamente o termo “interdisciplinar” é necessário que o termo “disciplina” seja tratado sob vários ângulos, de modo a apoiar melhor a compreensão do interdisciplinar. Ele enumera sete critérios que permitirão conceber a disciplina sob os aspectos da epistemologia, os quais não se aplicam às disciplinas empíricas, já que se apoiam na observação “[...] et non sur la déduction pure, comme les mathématiques” (HECKHAUSEN, 1973, p. 83)16.

A disciplina aqui é entendida como ciência, muito embora o autor também a considere noção de ensino de uma ciência. Ambas, ciência e ensino, possuem papéis diferentes a desempenhar enquanto atividades de ensino e de pesquisa, porém têm certa interdependência, se levarmos a termo que o ensino clarifica o pensamento científico e, por conseguinte, a própria ciência. Desse modo, deve-se refletir sobre o papel da disciplina nesses dois níveis de ação, conectados a um propósito de desenvolvimento.

Por disciplina se entende “[...] l’exploration scientifique spécialisée d’un domaine determiné et homogène d’étude [...]”17, que possibilita o surgimento de novos conhecimentos que poderão substituir os mais antigos (HECKHAUSEN, 1973, p.83). A partir dessa definição, os sete critérios são a ela atribuídos na intenção de caracterizar uma dada disciplina de outras, o que possibilita uma melhor compreensão do interdisciplinar, conforme afirma o referido autor.

15 Heinz Heckhausen: * 24 mar. 1926, Barmen, Alemanha; † 30 out. 1988, Oktober. Foi psicólogo e

professor universitário.

16 “[...] e não na dedução pura, como as matemáticas” (tradução nossa).

17 “[...] a exploração científica especializada de um determinado e homogêneo domínio de estudo [...]”

As disciplinas são por ele caracterizadas de acordo com seu objeto de estudo. O autor discorre sobre aspectos concernentes ao domínio material delas, a seu domínio de estudo, ao nível de integração teórica, a seus métodos, a seus instrumentos de análise, a suas aplicações práticas e às contingências históricas em que se desenvolvem (HECKHAUSEN, p.83 - 90).

Enquanto domínio material a disciplina é definida pelo objeto de estudo ao qual ela se atém. Por exemplo: a zoologia se ocupa dos animais, a botânica das plantas, as comunicações das diversas linguagens. Muitas dessas disciplinas possuem vizinhança por conta de seu objeto de estudo, o que possibilita certo encaixamento (chevauchements) entre si, que pode resultar na cooperação de umas com as outras ou mesmo em sua fusão, permitindo o nascimento de uma só disciplina, já que, do ponto de vista do domínio material, elas comportam aproximações.

O domínio de estudo de uma ciência consiste em subconjuntos de fenômenos relevantes a ela claramente circunscritos, configurando um modo mais refinado que o domínio material. Ou seja, o domínio de estudo depende de axiomas, de decisões pré- elaboradas concernentes a seus conceitos, à elaboração de suas teorias e de sua metodologia. Por exemplo: a ciência do comportamento, por razões de ordem teórica e metodológica, esforça-se em excluir da psicologia os dados pessoais derivados da introspecção. Trata-se ainda, quando falamos sobre domínio de estudo, de uma noção vagamente definida de tipos de dados de certo domínio material que interessam a uma disciplina em particular.

O nível de integração teórica entre as disciplinas é tratado pelo autor como o critério mais importante de uma disciplina. Todas elas ─ com exclusão das puramente teóricas, como a matemática ─ empenham-se em reconstruir a realidade a partir de suas bases teóricas, a fim de apreender essa realidade extraordinariamente complexa, compreendê-la, explicá-la e buscar prever os fenômenos observáveis e os eventos pertencentes a seu domínio de conhecimento. O autor assemelha esse domínio ao sistema molar, em que os sistemas e as teorias de uma disciplina emprestam conhecimento de outras ciências para compor seus axiomas. Assim, muitas disciplinas estreitam laços entre si por proximidade de base em relação a seu objeto de estudo, o que possibilita certa integração entre as mesmas. Contudo, é relevante que se compreenda que no interior de uma mesma disciplina pode haver incompatibilidade teórica, como é o caso da psicologia,

ao se esforçar em definir as variáveis dos estímulos e das reações em termos “quasifenomenológicos”18.

Embora as disciplinas que se relacionam nesse nível possam parecer mais próximas, ainda é prematuro concebê-las no âmbito da interdisciplinaridade, já que se trata de uma intradisciplinaridade19.

Quanto aos métodos, o autor considera que a disciplina se estabelece quando desenvolve métodos específicos para seu domínio de estudo. Os métodos são julgados apropriados à disciplina desde que sejam adequados ao domínio de estudo ao qual se dirigem, de modo a revelar informações essenciais e estabelecer correspondência indutiva entre sua aplicação e as leis gerais formuladas ao nível da integração teórica. Dessa maneira, os métodos constroem teorias, e estas, por sua vez, estimulam a criação de novos métodos.

Os instrumentos de análise possuem um caráter formal que adquire valor geral e podem ser aplicados a diversos níveis disciplinares. Eles repousam sobre estratégias lógicas e modelos complexos de feedback, servindo aos propósitos disciplinares mais diversos, desde que seja respeitado seu domínio de estudo e que este seja referendado por seu nível de integração teórica.

As aplicações práticas são, de modo geral, as disciplinas orientadas para aplicações nos domínios profissionais. São de ordem eclética, do ponto de vista epistemológico que as valida enquanto ciência. Um bom exemplo é a medicina, notadamente de caráter pluridisciplinar. Muito embora o que se percebe nos dias atuais seja uma miscelânea disciplinar, os professores não abordam essa questão na universidade, mascarando essas disciplinas como puristas, fato que conduz a uma não reflexão sobre o tema e, por consequência, gera um atraso nas aplicações práticas dessas disciplinas e no desenvolvimento do ensino e da pesquisa pela possibilidade de eliminar as diferenças entre os vários níveis de integração teórica estabelecidos em um campo pluridisciplinar de aplicação. Para o referido autor, as disciplinas estreitamente ligadas à prática profissional sofrem um atraso científico considerável entre o exercício da profissão e o estado puro de pesquisa em seu domínio de estudo correspondente. Temos informação que atualmente alguns cursos de medicina procuram organizar sua

18 Termo utilizado pelo autor (HECKHAUSEN, 1973, p. 85). 19 Termo utilizado pelo autor (HECKHAUSEN, 1973, p. 85).

metodologia de ensino em bases interdisciplinares, contudo são ensaios recentes de aplicação de uma nova metodologia educacional.

As contingências históricas se relacionam com a ideia de que cada disciplina decorre de uma evolução histórica e está o tempo todo em fase de evolução. Enquanto algumas disciplinas evoluem de modo cada vez mais elaborado e rápido, outras parecem ter se esgotado em termos de possibilidades de desenvolvimento. Ademais, deve-se considerar que a evolução das disciplinas está presente não só em fatores internos (lógica interna, domínio de estudo), mas também em fatores externos. Sendo assim, os fatores exógenos também concorrem na condução das preocupações teóricas e dos temas de pesquisa produzidos pelos homens de ciência, gerando um clima mais ou menos propício para o crescimento científico, de acordo com sua aprovação enquanto “[...] opinião pública, valores sociais e culturais, ideologias políticas e condições econômicas [...]” (HECKHAUSEN, 1973, p. 86).

Entendidos os critérios que para Heckhaussen (1973) definem uma disciplina, é possível explanar a conceituação de interdisciplinaridade. A interdisciplinaridade é aqui considerada pelo referido autor como a ciência das ciências. Para ele, todo ensino universitário deveria começar pela explicação das características de uma disciplina, das implicações da disciplinaridade e de seu caráter enquanto ciência, a fim de instrumentalizar o estudante para perceber os limites e as possibilidades da ciência disciplinar. Desse modo, o aluno poderá tomar consciência desse universo, comparar seus domínios de estudos e se sentir compelido a buscar estudos complementares em outras disciplinas próximas a sua. Constitui-se, com isso, uma forma inovadora de ensinar.

Assim conduzido, o ensino favorecerá o exercício profissional amplificado. Isso porque, se contarmos com profissionais que reconhecem a importância da abertura do diálogo entre várias disciplinas como uma constante necessidade de melhor compreender e atender seus objetivos de trabalho e adaptação à inerente condição do desenvolvimento científico, o ensino se constituirá em elemento colaborativo para o avanço dialógico nesses e em outros espaços da ação humana.

São apresentados pelo autor seis tipos de relações interdisciplinares em ordem ascendente de maturidade: Interdisciplinaridade heterogênea, Pseudointerdisciplinaridade, Interdisciplinaridade auxiliar, Interdisciplinaridade compósita, Interdisciplinaridade complementar e Interdisciplinaridade unificadora. A Interdisciplinaridade heterogênea e a Pseudointerdisciplinaridade nos são apresentadas

como dois termos que designam uma forma mais elaborada de pluridisciplinaridade, em que as disciplinas permutam informações sem que haja troca entre si. Trata-se de uma relação de dependência e/ou subordinação em que as disciplinas se caracterizam como auxiliares.

A Interdisciplinaridade heterogênea se aproxima de um ensino enciclopédico oferecido a determinadas profissões que necessitam do conhecimento de várias disciplinas para que possam atuar profissionalmente. É o caso de trabalhadores sociais ou professores de ensino primário, sendo indispensável que possuam conhecimento de outras áreas, como a psicologia, a sociologia, a economia do trabalho, entre outras. São tidas aqui como disciplinas satélites ou disciplinas anexadas, utilizadas com o objetivo de enriquecer um determinado programa de ensino enciclopédico, o que não pode servir como método de pesquisa, por ser abalizado superficial e ingênuo nesse nível de integração.

Considerando a Pseudointerdisciplinaridade, pode-se afirmar que é errôneo admitir a existência de interdisciplinaridade entre disciplinas que possuem os mesmos instrumentos de análise, já que esses são os mais neutros dentro da lógica disciplinar. Por exemplo, a matemática e a computação podem confundir os menos avisados, que acreditam existir entre elas uma relação intrinsecamente interdisciplinar, dado o caráter transdisciplinar que apresentam. O que é possível admitir nesses casos é certa justaposição disciplinar, exemplificada pelo autor (HECKHAUSEN, 1973, p. 88), por meio do Curso Modelos Matemáticos e Modelos de Computação da Escola de Ciências Sociais da Universidade da Califórnia, Virgínia, o qual pode fazer a ponte entre os domínios de estudo e os níveis de integração teórica de diversas disciplinas como a economia, a psicologia e a geografia.

Os quatro últimos termos ─ Interdisciplinaridade Auxiliar, Interdisciplinaridade Compósita, Interdisciplinaridade Complementar e Interdisciplinaridade Unificadora ─ indicam a existência de trocas recíprocas. Essa contribuição acontece de forma ascendente entre essas gradações. Não há supremacia entre as disciplinas, e o enriquecimento entre elas chega a seu estágio máximo (interdisciplinaridade unificadora), de modo a possibilitar a origem de uma nova disciplina.

A Interdisciplinaridade Auxiliar em alguns casos é passageira, enquanto em outros é mais durável. Fornece um nível de integração bastante enriquecedor, como é o caso da pedagogia, que utiliza métodos da sociologia para compor sua base teórica.

Na Interdisciplinaridade Compósita várias disciplinas colaboram na análise de um mesmo objeto de estudo, desde que seus métodos, seus conceitos e suas epistemologias estejam resguardados, somando um ajuntamento disciplinar empenhado em oferecer uma solução técnica para determinado problema, como a fome ou a poluição que atualmente enfrentamos. Outro exemplo bastante ilustrativo, indicado pelo autor para esse nível de integração na pesquisa, é o projeto Apolo da NASA, que tinha entre outros objetivos a construção de um foguete para conduzir o homem à Lua, o que ocorreu no ano de 1969.

A Interdisciplinaridade Complementar é constituída pelos laços de estudo criados entre disciplinas de mesmo domínio material. Essa complementaridade ocorre no nível de integração teórica de modo colaborativo entre essas disciplinas, na intenção de favorecer um melhor caminho para atingir um objetivo, não ultrapassando a provisoriedade dessa necessidade. Esse tipo de interação disciplinar não se estende a todas as disciplinas, ficando estreitamente delimitada entre disciplinas fronteiriças.

Por fim, a Interdisciplinaridade Unificadora designa a inter-relação entre disciplinas de um mesmo domínio de estudo, por exemplo, a biologia, a física, a química, que comportam níveis teóricos e metodológicos muito próximos, possibilitando o surgimento de uma nova disciplina, como a bioquímica ou a biofísica. Embora tenhamos muitas pesquisas que utilizam a interdisciplinaridade unificadora, as universidades ainda persistem em um ensino disciplinar distinto e fragmentário, aproximando-se apenas do nível da interdisciplinaridade auxiliar.