• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 INTERDISCIPLINARIDADE E PRÁTICAS

3.2 Os ginásios vocacionais

Os ginásios vocacionais fazem parte de um passado próximo da educação brasileira. Na década de 1960 ganharam expressão como escola democrática, “[...] constituindo-se como um dos mais importantes projetos educacionais paulistas do século XX” (FERNANDES, 2005, p. 3).

Essas eram escolas inovadoras para a época. Nelas se exercia uma metodologia avançada, que estimulava a participação dos alunos na vida da escola e da comunidade. Eram discutidos temas de vanguarda, como assuntos relacionados à comunidade em que estavam inseridos e questões acerca da sexualidade. Além disso, havia aulas de arte e música. Essas características as diferenciavam das escolas tradicionais da época. O trabalho com os alunos era coordenado por um eixo transversal de caráter social, conferindo a esse espaço educacional uma dimensão política, caracterizada pelo exercício da cidadania, da autonomia e da crítica.

Os professores e toda a equipe da escola participavam de cursos de formação continuada, nos quais tinham contato com teorias inovadoras, que poderiam utilizar em

suas ações pedagógicas com os alunos, os pais e a comunidade, objetivando uma transformação e uma participação social por meio do processo educativo. Na literatura nacional, conforme Tamberlini (s.d.), embasado nos poucos documentos dessa época que foram recuperados, Paulo Freire era uma referência importante nesses cursos. Ademais, a esse respeito, a professora Manhuchia41, em Medina (2008), comenta que nos cursos que ministrava aos professores dos ginásios vocacionais e da Escola Experimental da Lapa eram lidos não só Piaget, mas também outras literaturas estrangeiras pertinentes à educação, demonstrando o vanguardismo dessas ações à época.

Tanto para os professores ─ que sentiam a cisão entre teoria e prática, entre sua formação e a ação ─ quanto para os alunos em seus estudos reflexivo-críticos eram apresentados diversos autores e teorias. Nenhuma era considerada a melhor a ser seguida. Era disponibilizado um leque de informação-formação em que cada um pudesse decidir pelo que mais considerasse adequado a justificar seu fazer.

As relações de respeito, solidariedade e humildade com a especialização de cada profissional estavam presentes nas ações expressas metodologicamente. O domínio teórico e técnico de um se mesclava com o do outro, havia um enriquecimento interdisciplinar, agregando maior flexibilidade e abrangência aos conteúdos trabalhados com os alunos.

As metodologias de “projetos” e “estudo do meio” se encarregavam da efetivação das propostas curriculares, assentadas em uma concepção de totalidade em que o processo educativo é entendido como indissociável entre as matérias curriculares e entre o ensino e a vida. Assim, é traçado um contorno singular para as práticas pedagógicas, articuladas a um trabalho de abordagem interdisciplinar, inovando o currículo escolar e a metodologia.

O projeto já trabalhava com o que hoje define-se como interdisciplinaridade, estudo do meio, processo de avaliação ao longo do bimestre, formação contínua do professor, trabalho em equipe, vínculo entre escola e comunidade, entre outros. Além disso, os Vocacionais contaram com uma metodologia muito particular de ensino de História e Geografia. Ambos eram integrados na área de Estudos Sociais, mantendo-se a especificidade de ambos, com um professor para cada disciplina, porém trabalhando juntos. Essa área integrava-

41 A professora Manhuchia Liberman é referência na Educação Matemática, foi sócia fundadora do GEEM

- (Grupo de Estudos do Ensino da Matemática), elaborou e ministrou cursos de formação de professores nessa área de ensino, publicou livros didáticos e atuou na formação de professores dos ginásios vocacionais e no Grupo Escolar Experimental Edmundo Carvalho (Escola Experimental da Lapa).

se com as demais devido à própria proposta do currículo. Os Estudos Sociais eram o instrumento para o estudo da comunidade e do meio onde a escola era situada. (CHIOZZINI, 2003, p.3).

As ações pedagógicas deflagradas por essas práticas tinham como eixo a área/núcleo de Estudos Sociais. Estes “[...] começavam com o estudo da comunidade onde a escola estava situada, visando selecionar temas/questões a serem abordados por todas as disciplinas de maneira integrada” (CHIOZZINI, 2010). Assim, eram estudados temas sobre o bairro, a cidade, o estado, o Brasil e o Mundo, conforme o ano em que o estudante se encontrava; até que, ao chegar ao último ano do ginásio (que inclui atualmente desde o 6º ao 9º ano do ensino fundamental), o aluno poderia optar pelo tema que mais lhe interessasse, chamado de Eixo Livre.

O trabalho exercido nos ginásios vocacionais era sempre pautado no projeto pedagógico da escola. Tal projeto era discutido e reorientado em reuniões de orientação pedagógica e orientação educacional juntamente com a equipe de direção.

Outra novidade que essa escola apresenta como princípio pedagógico se refere à função do diretor educacional. Ela era exercida por um coordenador, de modo a salvaguardar as questões pedagógicas das administrativas. Segundo Fernandes (2005, p. 4), “[...] não tinha relação com a centralização burocrática e a hierarquização do poder defendida pelo tecnicismo muito em voga naquele contexto histórico, mas procurava-se fazer da coordenação uma função de articulação pedagógica”. Desse modo, o diretor estava envolvido diretamente com as propostas de cunho pedagógico, participando ativa e efetivamente dos rumos, das orientações e das reorientações educativas.

As reflexões sobre os objetivos propostos se firmavam nas avaliações dos alunos, dos pais e dos professores no curso de todo o ano letivo, tangenciadas pelo exercício da crítica voltada à reflexão-ação-reflexão. Essa prática era exercida ao longo do ano letivo, em um movimento constante de análise crítica dos conteúdos e das estratégias de ensino diante dos objetivos propostos (SILVA, 2008), o que reforçava um posicionamento de cumplicidade e comprometimento assumido por essas escolas com as questões políticas que sustentavam seu projeto pedagógico.

As relações de colaboração e parceria com os alunos, os pais e a comunidade traçavam o cotidiano do trabalho educativo. Isso contribuía com um mútuo enriquecimento na aprendizagem de todos, em especial na dos alunos.

Os ginásios vocacionais foram extintos na década de 1960 pela ditadura militar. Muitos documentos e registros dessas escolas foram destruídos, o que tem dificultado o

resgate dessa experiência educacional, restando aos interessados o recurso da história oral, conforme relata Tamberlini (2005, p. 29):

[...] a experiência foi ceifada violentamente por um regime ditatorial que a extinguiu, tendo havido inclusive a destruição de boa parte dos documentos e material pedagógico, fez-se necessário elaborar a memória não oficial desse projeto educacional complementando as fontes documentais com o recurso às fontes orais, recurso este, perfeitamente legítimo e justificável, já que os idealizadores da experiência foram calados pelos detentores do poder no regime militar.

Muitos educadores que trabalhavam nos ginásios vocacionais foram perseguidos, considerados como ameaça ao país, dadas suas concepções de educação e sociedade e a ideologia subjacente às ações pedagógicas ali exercidas. Isso porque “[...] preconizavam uma intervenção social e política através da ação educativa [...]” (TAMBERLINI, s. d., p. 1).