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Mapa 10 – Síntese dos conflitos socioambientais da RDS do Rio Iratapuru

1.1 HOMEM-NATUREZA: DA NATUREZA INTOCADA À UNIDADE SOCIEDADE-AMBIENTE

As concepções acerca da relação entre sociedade e meio ambiente se refletem e são reflexos das condições materiais de produção, do meio e da cultura, constituindo um sistema de representações que indivíduos e grupos fazem de seu ambiente (THOMAS, 1988; DIEGUES, 1996).

Diegues (1996) destaca dois enfoques dessa relação: o biocêntrico e o antropocêntrico. O enfoque biocêntrico aborda a natureza em sua totalidade, onde o homem estaria inserido como qualquer ser vivo e não teria o direito de dominar a natureza. O enfoque antropocêntrico trabalha com a dicotomia entre homem e natureza, em que o primeiro tem direitos de controle e posse sobre o segundo, sobretudo por meio da ciência moderna e da tecnologia.

No enfoque antropocêntrico, a natureza não possui valor em si, mas representa tão somente uma reserva de recursos naturais a serem explorados pelo homem. Essa condição foi levada ao extremo pelo desenvolvimento da ciência moderna, que passou a considerar o conhecimento objetivo, verificável por métodos científicos, como a única fonte da verdade universal, colocando a natureza numa posição de objeto do conhecimento racional.

Thomas (1988) também vê a ciência como uma das responsáveis pela visão dominante em que a natureza aparece a serviço do homem. Em sua compreensão, todo o propósito em estudar a natureza resume-se em dominá-la, modificá-la e utilizá-la a serviço do homem, para atender suas necessidades.

Foster (2005) faz uma crítica à visão dualista e defende que a questão não é antropocentrismo versus biocentrismo (ou ecocentrismo), mas de co-evolução. Segundo ele, a concepção dualista não consegue reconhecer que estas categorias são dialeticamente conectadas

na sua unilateralidade, e precisam ser transcendidas juntas, pois representam a alienação da sociedade capitalista.

O autor entende que a “dominação da natureza” pelo homem, embora tendendo para o antropocentrismo, não implica necessariamente uma extrema desconsideração da natureza ou de suas leis. É assim que,

Os homens, na luta com a natureza (isto é, na luta pela liberdade), entram em certas relações uns com os outros para conquistar essa liberdade... Mas os homens não podem mudar a natureza sem mudar a si mesmos. A plena compreensão desta mútua interpenetração do movimento reflexivo dos homens e da natureza, tendo como mediador as relações necessárias e em desenvolvimento conhecidos como sociedade, é o reconhecimento da necessidade, não apenas na natureza mas em nós mesmos e portanto na sociedade. Vista objetivamente, esta ativa relação sujeito-objeto é a ciência; vista subjetivamente, é a arte; mas, como consciência emergindo em ativa união com a prática, ela é simplesmente a vida concreta – todo o processo de trabalhar, sentir, pensar e comportar-se como indivíduo humano num mundo único de indivíduo e natureza (CAUDWELL, 1937 apud FOSTER, 2005, p.27)

Compartilhamos dessa concepção dialética que enfatiza a ‘reflexibilidade’. Nessa perspectiva, entende-se a relação homem-natureza como um processo infindável de co-evolução e interação dialética, que se concretiza na práxis. Inclusive, na complexa interrelação de ordem espiritual com as condições terrenas e materiais.

Por seu lado, Thomas (1988) destaca a religião como outro fator determinante na conformação da relação sociedade-natureza. Para ele, essa relação aparece entre os filósofos clássicos e na Bíblia como sendo de dominação, isto é, a natureza teria sido criada para servir ao homem. Assim, os animais e vegetais servem para suprir as necessidades humanas mais básicas como a fome, a obtenção de medicamentos, ou mesmo a diversão derivada da caça e pesca esportiva e da montaria.

O autor destaca ainda que a teologia da época das grandes navegações forneceu os alicerces morais para um contínuo predomínio do homem sobre a natureza. Essa visão tem forte influência judaico-cristã (DIEGUES, 1996), embora também sejam encontradas situações de degradação ambiental em sociedades que se orientam por outros princípios religiosos e/ou espirituais. É o queevidencia Ellen (1986) em seu estudo sobre os índios norte americanos, onde destaca que

a espiritualidade ambiental dos Sioux anda de mãos dadas com uma dieta vorazmente carnívora, da mesma maneira que o vegetarianismo hindu é encontrado em uma sociedade de extrema pobreza e desequilíbrio ambiental (...) nenhuma cultura humana detém o monopólio da sabedoria ambiental, e (...) parece improvável que possamos um dia escapar de alguns dos mais profundos dilemas da vida social humana (ELLEN apud FOLADORI e TAKS, 2004).

Intui-se daí que, independente do grau de conhecimento e/ou desenvolvimento tecnológico das diferentes sociedades, é recorrente a ambigüidade e a contradição da prática social humana. Como demonstra o caso japonês, a cultura e o sistema econômico (THOMAS, 1988; DIEGUES, 1996) também representam outros aspectos determinantes da relação sociedade-natureza.

Thomas (1998) destaca que o Japão, mesmo cultuando a natureza e possuindo uma religião que vê o homem como um dos elementos do mundo natural, não evitou a poluição industrial local causada pela expansão econômica e a conseqüente degradação do ambiente natural.

Em que pesem as diferenças entre os casos citados, estes evidenciam a existência de um paradoxo, isto é, mesmo possuindo uma cultura voltada para uma relativa simbiose homem-natureza, é inegável a ocorrência de danos ambientais por ambas as sociedades. Pode-se dizer que toda sociedade constrói sua noção de natureza que, no extremo, tem na cultura a condição de existência da mesma. Nesse sentido, é difícil conceber a natureza independentemente da percepção que o homem tem dela.

Pode-se afirmar que a concepção de dominação do homem sobre a natureza, fortemente enraizada nas sociedades por influências religiosas, como por fatores culturais, econômicos e ambientais, é uma das responsáveis pelas degradações ambientais mundiais (THOMAS, 1988; FOLADORI e TAKS, 2004; DIEGUES, 1996).

Para Diegues (1996) os modos de perceber a relação homem e natureza, são influenciados por diferentes visões de mundo. Um dos enfoques tem origem na Ecologia Profunda, cujos princípios básicos se baseiam em que

A vida humana e não humana tem valores intrínsecos independentes do utilitarismo; os humanos não têm direito de reduzir a biodiversidade, exceto pra satisfazer suas necessidades vitais; o florescimento da vida humana e das culturas são compatíveis com o decréscimo substancial da população humana (DIEGUES, 1996, p.44)

Nessa visão de mundo tudo está integrado; tudo é importante porque tem valor próprio. O ser humano passa, assim, a ser mais uma espécie e não mais “a espécie”. Essa linha de pensamento tem Arne Naess como um dos principais defensores, e vem sendo chamada de holística e tem afinidades com escritores como Kapra (Ponto de Mutação) e Lovelock (Teoria de Gaia).

Na abordagem da Ecologia Social, o homem é visto como um ser social e trabalha com a visão de um homem mais integrado a natureza. Por outro lado, “considera o equilíbrio e a integridade da biosfera como um fim em si mesmo, insistindo que o homem deve mostrar um respeito consciente pela espontaneidade do mundo natural” (DIEGUES, 1996, p. 46). Na perspectiva do ecossocialismo, considera-se que as forças da natureza são fundamentais tanto para o funcionamento das sociedades pré-capitalistas como das sociedades capitalistas.

Moscovici (1975) faz uma crítica à oposição entre culturalismo e naturalismo. O autor propõe um “novo naturalismo”, tomando como princípio que “o homem é natureza e a natureza, seu mundo” (MOSCOVICI apud DIEGUES, 1996). Nesse sentido, é vital uma mudança ética profunda da atual relação humana destrutiva da natureza, para uma nova interação homem-natureza, uma nova aliança, na qual a separação será substituída pela unidade.

Assim, o novo naturalismo trabalha com a percepção de uma sociedade em que a natureza se constitui numa realidade presente e inerente ao homem. Nessa visão é urgente e imperativo, repensar a inevitável e necessária intervenção humana sobre o ambiente, de modo a permitir um outro desenvolvimento.

Nos debates entre as mais diferentes correntes ideológicas, foram forjados os conceitos de conservacionismo e preservacionismo. É comum haver confusão entre os termos conservação e preservação que, muitas vezes, são usados para significar a mesma coisa. Na verdade, ambos referem-se à proteção da biodiversidade, mas expressam relacionamentos diferentes do ser humano com a natureza.

O preservacionismo tende a compreender o não uso ou a proteção da natureza, independentemente do interesse utilitário e do valor econômico que possa conter. Visa garantir a integridade e a perenidade de algum recurso natural. O termo se refere à proteção integral, à "intocabilidade", para garantir a manutenção de determinado bem em suas condições originais.

A visão conservacionista permite o uso sustentável e assume um significado de manter a natureza para algum fim. Significa a proteção dos recursos naturais com a utilização

racional, garantindo sua sustentabilidade e existência para as futuras gerações. A preservação se faz necessária quando há risco de perda de biodiversidade, seja de uma espécie, um ecossistema ou de um bioma como um todo.

Na contemporaneidade, pensar em desenvolvimento para além do crescimento econômico significa perceber que o problema não está na intervenção em si, mas na maneira como ele se processa e nas conseqüências por ele geradas, tanto para a sociedade como para a natureza.