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Mapa 10 – Síntese dos conflitos socioambientais da RDS do Rio Iratapuru

1.5 PRODUÇÃO FAMILIAR AGROEXTRATIVISTA: UMA INTERPRETAÇÃO CONCEITUAL

Neste trabalho, adota-se como uma das principais categorias a ‘produção familiar agroextrativista’. Essa escolha implica em assumir uma opção metodológica que nos leva a fazer inclusões e exclusões de diferentes abordagens. Como destaca Neves (1995, p. 21-22), em muitos casos, caracterizar um tipo de produção como familiar, é pautar-se por uma classificação dualista cujo oposto é a produção capitalista. Por vezes a dicotomia é tão acentuada, que a caracterização de um tipo leva a traçar uma caricatura do outro.

Nesse sentido, atribui-se à unidade de produção capitalista características como: trabalho assalariado, apropriação da mais-valia, reprodução ampliada, busca de aumento da produtividade e rentabilidade, enfim, uma racionalidade capitalista. Em contraposição, na produção familiar ressalta-se o trabalho da família, a resistência à apropriação dos excedentes, centrada na reprodução familiar e na manutenção dos meios de produção, busca de autonomia, menor dependência do mercado e manutenção do autoconsumo. Em síntese, uma racionalidade camponesa.

No Brasil, a expressão “agricultura familiar” emerge a partir de meados da década de 1990, com a visão de um agricultor familiar como um personagem diferente do camponês. Segundo Schneider (2003), sua emergência está relacionada a dois eventos que tiveram um impacto social e político muito significativo no meio rural naquele período.

De um lado, no campo político, a adoção da expressão parece ter sido encaminhada como uma nova categoria-síntese pelos movimentos sociais do campo, capitaneados pelo sindicalismo rural (...) De outro lado, a afirmação da agricultura familiar no cenário social e político brasileiro está relacionada à legitimação que o Estado lhe emprestou ao criar, em 1996, o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) (SCHNEIDER, 2003, p. 99-100).

Nessa perspectiva, o PRONAF e outros programas de apoio a agricultura familiar, apresentam-se como resposta às pressões do movimento sindical rural desde o início dos anos de 1990. Sua finalidade é prover crédito agrícola e apoio institucional às categorias de pequenos produtores rurais, alijados das políticas públicas e que se encontravam sérias dificuldades de se manter na atividade. Enfim, esses programas são

legitimados pela necessidade de promover o desenvolvimento econômico e social, e vem para inserir o agricultor familiar no mercado.

Esse contexto parece consolidar o entendimento que a modernização da agricultura mudou o significado do conceito de campesinato, de produção de subsistência e sem vínculos com o mercado, para uma unidade de produção familiar tecnificada e com forte integração mercantil (IANNI, 1986; GRAZIANO, 1982).

Por outro lado, tendo de se adaptar às exigências da agricultura moderna, a chamada agricultura familiar mantém seu traço camponês. Este campesino luta por sua reprodução social e econômica, ao mesmo tempo em que é útil na acumulação de capital (SOTO, 2002). Enfim, trata-se de um campesinato amplamente heterogêneo e que apresenta inúmeras diferenças regionais (WANDERLEY, 1999).

Ao associar agricultura familiar e campesinato, Wanderley entende que a agricultura familiar tem uma história e que é a do camponês. Para ela, a agricultura familiar é “aquela que não pode separar a família da unidade de produção” e o campesinato é “uma forma social particular de organização da vida e da produção”. Este caráter familiar se expressa nas formas sociais que associam patrimônio, trabalho, consumo e que orientam uma lógica de funcionamento específica.

Para a autora, o agricultor familiar é um ator social do mundo moderno que desenvolve suas atividades em continuidade com os pertencimentos antigos e resiste contra as formas de dominação. Ele enfrenta desafios para se inserir no mercado de trabalho, recebe influência da sociedade via informação dos meios de comunicação, mas, pelo seu modo de vida, está atrelado à tradição da família, onde a terra trabalhada é um espaço individual conquistado sobre a sociedade.

No caso da produção familiar agroextrativista, o espaço conquistado é um território coletivo. Pode-se dizer que ela não é tipicamente camponesa, nem tampouco é moderna e fortemente tecnificada e mercantilizada, mas guarda traços de campesinato e mantém relações de mercantilização. O trabalho é fundamentalmente familiar, mas lança mão de “ajuda - mútua” e de assalariamento em atividades sazonais específicas, inclusive urbanas.

Essa complementaridade de diferentes atividades para obtenção de renda e inserção econômica, não representa uma situação inteiramente nova na vida de grupos sociais de origem agrária. Dois autores de estudos clássicos sobre campesinato, Kautsky e Chayanov,

trataram dessa realidade. O primeiro faz referências às “formas de trabalho acessório” e o segundo trata de “outras atividades não-agrícolas”.

Para Kautsky (1980), o desenvolvimento do capitalismo na agricultura é comandado pela dinâmica do progresso tecnológico, tendendo a uma “lenta e gradual” subordinação da agricultura à indústria. Com isso, completa-se uma longa evolução que resulta na afirmação da superioridade técnica da grande propriedade sobre as unidades camponesas.

Para o autor, o processo de transformação estrutural da agricultura sob o capitalismo não elimina, necessariamente, as pequenas propriedades desde que elas desenvolvam “formas de trabalho acessório” que lhes permitam manter sua reprodução social. Essa permanência de pequenos proprietários estaria relacionada à própria natureza do processo de desenvolvimento capitalista na agricultura, que precisaria dos mesmos para fornecer a força de trabalho para as grandes unidades. Nesse sentido,

[...] não devemos pensar que a pequena propriedade territorial esteja em vias de desaparecer na sociedade moderna, ou que possa ser inteiramente substituída pela grande propriedade. A grande propriedade, por mais que rechace os camponeses livres, sempre manterá uma parte deles à sua ilharga, uma parte que ressuscita como pequenos arrendatários (KAUTSKY, 1980, p. 178).

Esse “trabalho rural acessório”, pode ou não, estar ligado à agricultura e ser realizado dentro ou fora da propriedade. Para além da tradição marxista, essas características o aproximam da idéia de “atividades rurais não-agrícolas”, de Alexander Chayanov (1974).

Para esse autor, o recurso às atividades não-agrícolas se constitui em uma estratégia de uso da força de trabalho familiar, como expressão da racionalidade que a família imprime às suas atitudes, de modo a manter o equilíbrio entre trabalho e consumo, garantindo sua reprodução social. Enfim,

Trata-se de atividades artesanais e comerciais que fornecem uma remuneração muito mais elevada por unidade de trabalho. Com sua ajuda pode-se obter ganhos maiores com menos esforço, e a família prefere ajustar o equilíbrio básico entre consumo e desgaste da força de trabalho principalmente por meio da ocupação em artesanato e comércio [...]. Em outras palavras, podemos assegurar teoricamente que a divisão do trabalho na família camponesa entre atividades agrícolas e não- agrícolas (artesanato e comércio) é levada a cabo pela comparação da

situação de mercado desses ramos da economia nacional. (CHAYANOV, 1974, p. 120).

O autor entende que, apesar das atividades não-agrícolas poderem ser exercidas fora da propriedade, isso não comprometeria o caráter indivisível dos rendimentos familiares. Trata-se, pois, de um “sistema único de equilíbrio básico” que faz com que haja uma interdependência entre os ganhos totais dos membros da família.

Essas características são, em parte, identificadas no grupo social em estudo. Por outro lado, optou-se por trabalhar muito mais no campo dos “híbridos”, a partir da noção de ethos do agroextrativista (PICANÇO, 2005), que incorpora elementos teóricos de diferentes matizes sobre o campesinato (SOUZA, 2002). Nessa perspectiva, a interpretação aqui usada sobre a idéia de ethos está muito próxima à de campesinidade.

A noção de ethos tem presente a incorporação de novos elementos econômicos e culturais, num constante vir a ser. Trata-se de representações inseridas, produzidas e emitidas sobre o vivido e a realidade social do indivíduo, que se traduzem em seu comportamento (TEDESCO, 1999, p. 20). É assim que o agroextrativista absorve e redefine estilos de vida e visões de mundo, no confronto com os processos sociais.

Quando me refiro à produção familiar agroextrativista, estou tratando do caboclo amazônico como uma síntese sui generis do seringueiro – castanheiro – camponês – ribeirinho – pescador – caçador – agricultor – extrativista – produtor familiar agroextrativista amazônida. Esse ser social de formação dinâmica, como que ‘hibridizado’ numencontro dialético, com e na natureza, vai forjando o ethos do agroextrativista.

A produção familiar agroextrativista se imbrica através do desenvolvimento de diferentes formas de adaptabilidade ao ecossistema local, numa estratégia de sobrevivência baseada em complementaridades de múltiplas atividades. Vive fundida nas práticas da roça de subsistência, da criação animal (aves e porcos para a maioria; gado bovino e bubalino para alguns), do extrativismo vegetal (madeira, fibras, plantas medicinais, frutas, resinas, óleos, sementes, etc.), da caça e da pesca. Lança mão ainda, de atividades sazonais, de assalariamento e garimpagem.

Esse conjunto de atividades, que garante a reprodução social das famílias agroextrativistas, caracteriza o que vem sendo chamado de pluriatividade. Segundo Schneider (2003), não há consenso em torno de uma das mais rigorosas definições de Fuller:

A pluriatividade permite reconceituar a propriedade como uma unidade de produção e reprodução, não exclusivamente baseada em atividades agrícolas. As propriedades pluriativas são unidades que alocam o trabalho em diferentes atividades, além da agricultura familiar (home- based farming). [...] A pluriatividade permite separar a alocação do trabalho dos membros da família de suas atividades principais, assim como o trabalho efetivo das rendas. Muitas propriedades possuem mais fontes de renda do que locais de trabalho, obtendo diferentes tipos de remuneração. A pluriatividade, portanto, refere-se a uma unidade produtiva multidimensional, onde se pratica a agricultura e outras atividades, tanto dentro como fora da propriedade, pelas quais são recebidos diferentes tipos de remuneração e receitas (rendimentos, rendas em espécie e transferências) (FULLER apud SCHNEIDER, 2003, p. 105).

Essa amplitude e ambigüidade da noção de pluriatividade, permite a incorporação de diferentes atores e situações, e vem sendo questionada por vários autores. Schneider compartilha da opinião de Carneiro, para quem a pluriatividade “[...] é um termo de criação recente do vocabulário técnico, do qual o campo acadêmico se apropriou. Assim, a noção só ganha sentido se for relacionada com a política agrícola que estimulou a especialização da produção e do trabalho” (1996b, p. 10 apud SCHNEIDER, 2003, p. 105). Nessa perspectiva, defende o autor, a pluriatividade é, de fato, uma noção ou, no máximo, uma categoria social que se refere ao fenômeno da combinação de múltiplas inserções produtivas por um indivíduo ou uma família.

Segundo Castro (1997), as diversas atividades da produção familiar agroextrativista apresentam-se complexas e organizadas em múltiplas formas de relacionamento com os recursos, que asseguram a reprodução do grupo. Essa adaptação a um meio ecológico de alta complexidade realiza-se graças aos saberes acumulados sobre o território e pelas diferentes formas que o agroextrativista realiza seu trabalho.

Nesse sentido, as atividades realizadas pelo produtor familiar agroextrativista possibilitam a construção de uma cultura integrada à natureza e com diferentes formas de manejo, que se mostram adequadas à realidade local. Contém e combinam formas materiais e simbólicas com as quais esse grupo age sobre o território. É assim que,

o trabalho que recria continuamente essas relações reúne aspectos visíveis e invisíveis, daí porque está longe de ser uma realidade simplesmente econômica. Nas sociedades ditas ‘tradicionais’ e no seio de certos grupos agro-extrativistas, o trabalho encerra dimensões múltiplas, reunindo elementos técnicos com o mágico, o ritual, e enfim, o simbólico (CASTRO, 1997, p. 223).

Fazendo uso de uma tecnologia simples, mas eficiente localmente, resultado da experimentação através dos tempos, a produção familiar agroextrativista garante os meios de sua sobrevivência. Esta desenvolveu uma cultura mítico-religiosa intimamente relacionada com o meio, ao mesmo tempo em que organiza suas atividades com base em suas necessidades materiais de modo a garantir sua reprodução social.

A legitimação de áreas protegidas como território dos agroextrativistas, a exemplo de RESEX e RDS, estabeleceu novas oportunidades e limitações a esse grupo social. Parte-se do pressuposto de que as populações locais façam uso dos recursos numa combinação de desenvolvimento econômico, social e ambiental.

Para atender esse requisito, a população passou a se organizar em associações e cooperativas para gerir projetos comunitários sociais e econômicos, baseados em atividades de extração e industrialização de produtos da floresta. Isso representa uma reinvenção da vida comunitária exigida pela institucionalização das reservas.

O desafio é enorme para essas populações, não somente pelas condições ambientais que impõem inúmeros limites decorrentes do tamanho e dificuldade de controle de seu território. Há outros condicionantes da própria realidade social, marcada por um histórico de exploração e violência, analfabetismo, inexistência/ineficiência dos serviços sociais básicos e falta de confiança mútua.