• Nenhum resultado encontrado

IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICT

5.4 JESUS JOYCE

Estes resquícios e reminiscências são mais perceptíveis nos capítulos quanto custa jesus e jesus jacobina, mas antes vamos nos ater ao quinto capítulo, a escritura crística. Nele, Leminski deita suas atenções mais uma vez, e agora de forma mais detalhada, na linguagem. O capítulo traz uma epígrafe – Mateus, 10,27 – tem onze páginas e um foco: a análise da riqueza e dos mistérios das parábolas. Logo a principio ele tece algumas considerações: o título do capítulo é impróprio, já que Jesus não deixou nada escrito; a palavra “cristo” é grega e descende do vocábulo hebraico “meshiah”, que significa “ungido”, e portanto seu biografado nunca ouviu falar nessa palavra, posto que era falante do aramaico; essa língua era tratada, no centro do império romano, como um idioma de povos sem importância,

comparados ao guarani do Paraguai, ao quéchua e o aimará dos Andes ou o basco na Europa. (LEMINSKI, 2014b, p. 192).

Para avolumar o mistério, Jesus falava em parábolas, que em grego significa “desvio do caminho”, ou seja, não tinha um ordenamento racional. Para Leminski, as parábolas eram “estórias paralelas” feitas por unidades poéticas e ficcionais, “capazes de irradiar significados espirituais e práticos, abertas à exegese, à explicação, à liberdade. Jesus, Joshua Bar-Yosef, pensa concreto.” (Ibid., p. 193). É evidente que a palavra “concreto” aqui não representa concretude, e sim a vanguarda concretista paulista, da qual Leminski foi herdeiro. Existe, portanto, uma ligação entre as parábolas de Jesus e a poesia concreta dos irmãos Campos, de Décio Pignatari e do próprio Leminski (ligação essa que o poeta estabelece também por meio de Joyce e seu Finnegans Wake62, obra basilar para a concepção da vanguarda concreta, como

está exposto no Plano-piloto para a poesia concreta e em demais ensaios dos irmãos Campos e de Décio Pignatari.

Valendo-se de um procedimento já adotado nas demais biografias, Leminski traz para sua análise referências surpreendentes, neste caso, James Joyce: “A parábola é um gênero oriental, encontradiço entre todos os povos da Ásia, a revelação de verdades abstratas através da materialidade de uma anedota, uma unidade ficcional mínima. Aquilo que Joyce chamava de ‘epifania’.” (Ibid., p. 194). As parábolas de Jesus são “epifanias” cujo procedimento é o de “revelar ocultando” e ele “tem um sabor, indisfarçavelmente, zen.” (Ibid., p. 194).

E ao escolher seu sucessor, Simon Bar-Jona, deu-lhe o nome de Quefas = “pedra”, em aramaico, “Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra, edificarás a minha igreja”, paronomástico veio que, no século XX , foi radicalizado, no Finnegans Wake, pelo irlandês e católico James Joyce.

A escritura crística está muito presente, nessa prosa máxima da modernidade, gigantesca e monstruosa parábola que conta a história da queda de um pedreiro irlandês (“the pfjschute of Finnegan”) e sua 62 Insta mencionar – posto que abordamos no capítulo anterior outro poeta essencial para o concretismo, Mallarmé – que Augusto de Campos via em Finnegans Wake e em Un coup de dés inúmeras semelhanças, o que nos leva a crer que Leminski, leitor voraz das obras críticas dos concretistas, também detinha esse mesmo conhecimento. Um dos artigos mais importantes em que essa relação é feita por Augusto de Campos é poetamenos: “O ‘micro-macrocosmos’ joyciano, a atingir seu ápice em Finnegans Wake, é outro altíssimo exemplo do problema que vimos expondo. O implacável romance-poema de Joyce realiza também, e de maineira sui generis, a proeza da estrutura. Aqui o contraponto é moto perpetuo, o ideograma é obtido através de superposições de palavras, verdadeiras ‘montagens’ léxicas; a infra-estrutura geral ‘é um desenho circular onde cada parte é começo, meio e fim’. O esquema círculo-vicioso é o elo que liga Joyce a Mallarmé, ‘por um cômodo vicus de recirculação’. Muito se aproxima o ‘ciclo mallarmeano’ de Un coup de

Dés do ciclo de Vico reinventado por Joyce para Finnegans Wake. O denominador comum, segundo Robert

Greer Cohn, para quem aquele poema de Mallarmé tem mais pontos de contato com Finnegans Wake do que com qualquer outra criação literária, seria o esquema: unidade, dualismo, multiplicidade, e novamente unidade. Expressão evidente, a uma mera inspeção, dessa estrutura circular comum a ambas as obras é o fato de a frase inicial de Finnegans Wake ser a continuação da última, assim como as derradeiras palavras do poema mallarmeano são também as primeiras: ‘Toute penséé émet un coup de dés’.” (CAMPOS, Augusto de. In: CAMPOS, Augusto. de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de, 2006, p. 40, 41).

subsequente ressurreição no velório, quando gotas de uísque dos convivas tocam seus lábios. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 199, 200)

Segundo Manoel Ricardo de Lima, no já citado Entre Percurso e Vanguarda, ao comparar as parábolas ao romance de Joyce, Leminski está atualizando o discurso de Jesus, arrolando-o entre os nabis e, ao mesmo tempo, ressaltando sua faceta de poeta. Para Lima, Leminski lê as palavras e a vida de Jesus sem nunca desassociar a dicotomia poesia/vida e vida/poesia, a qual também é bastante evidente em suas biografias, e não apenas em jesus a.c.. Soma-se a isso o fato do biógrafo mesclar o erudito (histórico e poético) e o popular (as gírias e as expressões comuns): “é o múltiplo signo linguístico que Jesus representa que interessa a Leminski”. (LIMA, 2002, p. 42).

Para Leminski, o “olho/ouvido trocadilhesco de Joyce” é capaz de notar as semelhanças dos nomes Pedro e Patrick (a paranomásia ressaltada pelo biógrafo, um trocadilho por excelência) e brinca com isso logo no começo do livro: “’thuartpeatrick’, ‘you are Peter/Patrick’, ‘tu és Pedro e sobre essa pedra...’”. (JOYCE apud LEMINSKI, 2014b, p. 200). A queda de Finnegan do alto do muro é um emblema, segundo Leminski, da queda de toda a humanidade após o pecado de Adão, a legenda fundante da mitologia judaico-cristã. Indo no sentido da leitura de Lima, e respaldado pela carta de intenções, em que afirma o desejo de ler o signo-Jesus, o biógrafo destaca que as parábolas são signos muito específicos – são ícones: “signos produtores de informação, signos emissores.” (LEMINSKI, 2014b, p. 195). Para Leminski, há mais de dois mil anos que dos ícones de Jesus, ou seja, de suas parábolas, extraem-se significados.

A linguagem de Jesus é cifrada.

É a linguagem de um nabi, um profeta, como tantos que o povo de Israel produziu, a linguagem de um poeta, que nunca chama as coisas pelos próprios nomes, mas produz um discurso paralelo, um análogo, que os gregos chamavam parábola, “desvio do caminho”. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 195)

A palavra de Jesus é cifrada como a de Joyce em Finnegans Wake e suas parábolas são epifanias, num sentido joyceano. Leminski traduziu uma obra de Joyce para o português, Giacomo Joyce, e escreveu sobre o célebre irlandês em alguns ensaios, como Beckett, o apocalipse e depois. Mas é em Um texto bastardo, incluído em Ensaios e Anseios Crípticos, que ele se debruça com mais veemência sobre o autor, a quem chamou de “o maior prosador do século XX”. (LEMINSKI, 2012, p. 220).

Leminski enumera os motivos para tamanha adoração: o insuperável domínio dos poderes de som e sentido (que só conhece um paralelo possível nas sinfonias de Beethoven,

Wagner e Stravinski); e a coerência arquitetônica que Joyce imprimiu ao conjunto de sua obra. (Ibid., p. 221). Para Leminski, Ulysses é uma obra do século XX, já Finnegas Wake é uma capsula do tempo ainda ilegível, e mais: “Wake já um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê?”. (Ibid., p. 220). Mais adiante ele responde: “Finnegans Wake: síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.” (Ibid., p. 223). Entre as obras Dublinenses e Wake, Joyce foi levado a níveis cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventividade arquitetônica, sempre retratando um mesmo universo: “vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido” (que se paraleliza com Jesus, que falava aos simples e humildes, e deles se cercava). (Ibid, p. 220). A “pura linguagem” de Finnegans Wake, seu poder trocadilhesco e a possibilidade de ser lido como poesia reverberam características da “linguagem cifrada” das parábolas, que podem ser entendidas como epifanias joyceanas apregoadas a Jesus, o “superpoeta”. Nada mais natural na escrita dispersiva de Leminski que ler as parábolas de Jesus através de um dos exemplos máximos, senão o exemplo máximo, em se tratando de elevar os jogos de palavras e trocadilho ao patamar da mais alta excelência em literatura, afinal: “De acordo com os evangelhos, Jesus adorava jogos de palavras. Inúmeros momentos de sua vida e militância são marcados por trocadilhos.” (LEMINSKI, 2014b, p. 199).

As parábolas de Jesus são epifanias (em grego, “sobreaparições”), nós de histórias donde se desprende um princípio geral.

Assim fez Confúcio. Assim fez o autor do Gênesis. Assim fizeram os cínicos gregos. Assim fizeram os rabinos. Assim fizeram os gurus da Índia. Assim fizeram os sufis do islã. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 195)

Leminski crê, porém sem certeza, que toda a doutrina de Jesus – os axiomas, teorias e conceitos que sofreram interpolações e comentários posteriormente - está concentrada nas parábolas, essas verdades ocultadas – as epifanias num sentido joyceano – pelos jogos de palavra, pelas paranomásias, em suma, pelos trocadilhos.

A multiplicação dos peixes, um dos milagres mais célebres de Jesus, é, no fundo, a multiplicação infinita dos significados.

A melhor parte da mensagem de Jesus é transmitida através de parábolas e trocadilhos, recursos de arte que só um poeta, como um profeta de Israel, podia produzir.

[…] Ninguém nunca soube direito o que Jesus queria dizer. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 201)

A primeira vista, no entanto, pode espantar o fato de Leminski trazer à tona uma obra como Finnegans Wake para contextualizar e comparar o potencial de “som e sentido”, o poder lírico e trocadilhesco, e especialmente a riqueza de múltiplos sentidos das parábolas de Jesus, cuja força como um signo emissor, como um ícone a ser eternamente desvendado, assemelha-

se à cápsula do tempo de Joyce. Porém, ambos, parábolas e o texto joyceano em questão, estão vinculados unicamente pelo fato de terem sido concebidos por um “superpoeta” e pelo “maior prosador do século XX”, o que significa dizer que por trás de tamanho esplendor literário estão dois incríveis artífices da palavra, cujo imenso talento está na habilidade de produzi-las – palavras e seus jogos de esconde-esconde de significados, trocadilhos, signos que emitam múltiplos sentidos. Ora, Leminski é um poeta celebrado justamente por este mesmo potencial, que nele recebeu a alcunha de “sacada” (algo como um poder lírico que faz do trocadilho e dos jogos de palavra um poema relâmpago, telegráfico). Uma parte considerável de sua obra, e não apenas sua produção poética, se constrói a partir de jogos de palavras, de paranomásias, de trocadilhos – esses são a argamassa das “sacadas” e do que veio a ser chamado de “poesia de sacação63”. Catatau, seu livro mais joyceano, que incontáveis

vezes foi comparado a Ulysses, talvez seja o exemplo mais notável, caudaloso e impressionante desse procedimento artístico – a “sacada” elevada à excelência da literatura através de Catatau, assim como fez Joyce com o trocadilho em Finnegans Wake. Dessa forma, me parece que ao avizinhar as parábolas de Jesus às epifanias e trocadilhos de Joyce, Leminski está também ressaltando, explicando e justificando uma característica importante de sua própria poesia, de seu próprio fazer como escritor. Característica essa que não raro o fez receber críticas ferozes, e não de todo incorretas, como a do escritor e jornalista Luciano Trigo, no artigo ‘Toda Poesia’ mostra a força e a fraqueza de Paulo Leminski, publicado em sua coluna Máquina de Escrever, no portal G1.

Por outro lado, a qualidade dos poemas era também menos importante que a sua eficácia, que a sua circulação semi-clandestina que espalhava ar para respirar, que semeava a ideia de que nem tudo estava perdido. (…) Morreu cercado de um quase-silêncio, com uma aura de dinossauro porra-louca, como bem demonstra a competente biografia lançada por Toninho Vaz em 2001, Paulo Leminski – O bandido que sabia latim.

[…] Mas esse epitáfio, tão tipicamente leminskiano, é também revelador de uma característica da sua poesia: seus poemas dependem de “sacadas”, mais que do exercício de recursos formais que ele dominava, mas utilizava com moderação. E nem sempre as sacadas funcionam, como nem sempre as epifanias conservam o seu impacto algumas décadas depois de escritas: não por acaso, Leminski também foi redator publicitário, onde praticou seu talento de transformar golpes de judô em pequenos textos feitos para o momento, não para a posteridade. Daí o epíteto de “poeta-piada” com que o combatiam, acusação injusta mas não inteiramente falsa, já que em muitos

63 Sobre esse tema indico o artigo Poética da sacada: do corpo ao caco contemporâneo, de Pedro Marques, do qual retiro um trecho: “[...] poética da sacada, faz do poema a performance do instante, o lampejo da ideia, o caco poético em coletâneas às vezes até coletivas. Há poetas, óbvio, que transitam ou atuam em mais de uma linhagem. […] Na acepção corrente, sacada é tirar bruscamente alguma coisa do seu lugar. Aplicada à linguagem, tal deslocamento, daquilo que era estável, revive a tradição que entende a poesia como palco propício à renovação linguística. A sacada ecoa, assim, a teoria da metáfora sedimentada por Aristóteles na

poemas seus – como aliás em boa parte da produção daquele período – a gracinha é um dos recursos poéticos utilizados com mais frequência.

[…] Por importante que seja o seu resgate, com poucas e boas exceções (algumas, diga-se até brilhantes), os poemas de Leminski não justificam de forma alguma a ideia de que sua obra reunida o coloca “no topo da poesia brasileira”, como decretou outro dia um crítico de um grande jornal, que chegou a compará-lo a (Jesus!) Carlos Drummond de Andrade. (TRIGO, Luciano, 2013)