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3 LEMINSKI – O BRANCO NEGRO

3.5 POESIA NÃO É LITERATURA

O próximo capítulo chama-se cruz e sousa e sua orquestra, possui duas epígrafes – um trecho de Sonata, de Cruz e Sousa; e um excerto da música Logunedé, de Gilberto Gil – e soma no total seis páginas. O tema é a aproximação e o afastamento entre a música e o texto, particularmente a poesia, ao longo das escolas literárias e das vanguardas, com especial relevo, é claro, para o simbolismo.

Poesia não é literatura. É outra coisa: é arte, mais para o lado da música e das artes plásticas, como Pound viu (ou ouviu) muito bem.

Da imprensa às vanguardas do início deste século, durante o período de sequestro da poesia pela literatura (na Idade Média, a lírica era oral, envolvendo canto, dança e festas, camponesas ou cortesãs; os textos, raros, eram manuscritos, primores caligráficos de forma e cor; com a imprensa, a poesia virou “letra”, na homogeneidade linear dos inodoros, insípidos e incolores ABC s de Gutenberg; no século XX, com as vanguardas e a música popular, a poesia volta à vida dos sentidos, em forma, voz e cor), nesse período, algumas coisas ficaram dizendo que a poesia não era bem a literatura que estavam querendo fazer com ela. Entre essas coisas, a métrica. E, sobretudo, a rima. Nessas materialidades a poesia manteve sua individualidade. Não basta dizer. Tem que dizer bonito. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 64, 65)

No decorrer deste capítulo, Leminski vai nos munido de pistas sobre os motivos que o levaram a referenciar tantos cantores, em especial Gilberto Gil. Segundo Leminski, é no simbolismo que a música passa a destruir os significados do poema: “um massacre do sentido pelos sons”. (LEMINSKI, 2014b, p. 65). Ele exemplifica seu ponto com os versos de Ângelus, de autoria de seu biografado, os quais, em sua análise, não permitem que se encontre sentido, afinal neles os sentidos “são apenas retratos do meio enquanto mensagem”. Dessa forma, além e um destruidor de sentidos, Cruz e Sousa, para o biógrafo, “é um sonoplasta”. (Ibid., p. 67). Na poesia simbolista, ainda segundo Leminski, a métrica só se justifica pela presença da melodia, portanto os simbolistas mudaram o sentido do poema do olho para o ouvido: a partir deles há a necessidade de voltar a escutá-lo, e não apenas de lê-lo. É interessante notar que, nesse viés, Leminski propõe uma ideia oposta à de Celia Pedrosa a respeito da questão visual

e icônica do signo. Essa dupla e ambígua valorização também diz respeito à posição dúplice de Leminski, ancorado entre o concretismo e a contracultura.

Nunca foi tão funda a saudade da poesia pela música perdida quanto no simbolismo. […] O poeta simbolista é um músico. Músico de palavras, de sílabas, de vogais e consoantes. Seus poemas: baladas, sonatas, sinfonias. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 65)

Nessa direção, o poeta simbolista se torna um músico, um destruidor de sentidos, alguém que devolve à palavra escrita sua melodia perdida. Nada mais justo para uma biografia de sua lavra, portanto, que ombreá-la aos seus ecos na contemporaneidade, aos ecos que o biógrafo ouviu e identificou entre os músicos destruidores de sentidos de seu tempo. Assim, temos a conexão feita, repetida e afirmada através de menções, citações literais e principalmente através das epígrafes, entre um poeta-músico simbolista negro do século XIX, e um músico-poeta tropicalista negro do século XX: Cruz e Sousa e Gilberto Gil – o último sendo o eco mais forte e distinguível da poesia do primeiro, à luz do texto de Leminski.

O penúltimo capítulo, cruzamentos, traz duas breves epígrafes dos dois: “Largos Silêncios interpretativos – CRUZ E SOUSA, ‘SILÊNCIO’”; e “Olha, lá vai passando a procissão – GILBERTO GIL, ‘PROCISSÃO’”. (SOUSA; GIL apud LEMINSKI, 2014b, p. 69). É neste capítulo de seis páginas que Leminski se dedica a analisar mais detidamente os poemas de Cruz e Sousa, como diz, a “cruzi-ficá-los” por meio de um método “pound- faustino-paideumático”. (LEMINSKI, 2014b, p. 69). Os poemas escolhidos são Acrobata da dor, O assinalado, Caveira, Dupla via láctea, Esquecimento e Rir!. As análises dos poemas seguem o estilo telegráfico, com frases e parágrafos curtos e abundância de referências. Através de O assinalado (poema que já havia aparecido integralmente no livro, antecedendo o primeiro capítulo) Leminski estabelece uma conexão direta entre seu biografado e os músicos negros de seu tempo: Cruz e Sousa foi marcado e assinalado, portanto destacado dos demais membros da sociedade por algo que lhe é essencial – a pele negra – assim como Itamar Assumpção, Djavan e Gilberto Gil também foram muitos anos depois.

Foi quando, contaminado, Cruz sintetizou a experiência poética e a loucura, o desvario, num só momento. Sem falar na loucura social de um negro retinto, no Brasil do século XIX , possuir o repertório de bens abstratos que um Cruz e Sousa possuía.

O poeta como assinalado. O marcado (Caim?) por um sinal. Sinal para ver mais longe. Mas para sofrer mais fundo.

A negritude como sinal total: visibilidade integral.

Itamar Assumpção e Djavan, presos pela polícia paulista. Apenas porque eram negros. Gil, em Florianópolis.

Mas como é bonita essa “algema” que anagramatiza, mas que rima, em “tua AL-ma suplicando GEMA ”. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 65)

O último capítulo tem como título um trecho do poema Meu filho, publicado no livro póstumo Faróis: ah! vida! vida! vida! incendiada tragédia (meu filho). Ele tem duas epígrafes e tão somente 33 palavras, menos do que a segunda epígrafe, um longo trecho da música You are what you is, de Frank Zappa, com 61 palavras. A primeira epígrafe é um excerto de Aqui e agora, de Gilberto Gil. Apesar de curto, este capítulo me parece um dos exemplos mais notórios do estilo telegráfico e poético que Leminski empregou ao longo da obra, e também uma confissão de sua inscrição autobiográfica.

Perfeição só existe na integração/dissolução do sujeito no objeto. Na tradução do eu no outro.

É por isso que você gostou tanto deste livro. Você, agora, sabe.

Você, eu sou Cruz e Sousa. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 75)

Você, leitor, agora sabe que eu, autor, sou meu personagem: eu, Leminski, sou Cruz e Sousa, e quem sabe você, leitor, também seja. O Cruz e Sousa de Leminski, um gênio marcado, assinalado e distinguido pela pele negra, mestiçado pela cultura branca, a qual ousou enfrentar como um rebelde que singra sua trincheira no fronte da poesia e na retaguarda de uma sociedade escravocrata. Além de uma inscrição de alteridade, esse trecho derradeiro na biografia de Cruz e Sousa traz consigo uma significação importante para Leminski. Como escreveu Alice Ruiz no prefácio de Vida.

“Você, eu sou Cruz e Sousa.” Assim termina o livro que começa esta série. Um brinde à inquietude desse Cruz e Sousa, poeta negro e de cultura acima da média entre os poetas de sua época. O “acrobata da dor” que nos “transcendentaliza” deu brilho próprio ao simbolismo no Brasil. O simbolismo passou, mas o pôr do sol lilás, na Curitiba esotérica, conserva seus reflexos, deixando marcas na poesia de seus filhos mais sensíveis. Como Paulo Leminski, também um pouco negro, também excessivamente culto, tão culto que teve raríssimos e esparsos interlocutores, e sofreu daquela dolorosa solidão para a qual não existe anestésico, a não ser, talvez, a transcendentalização. Em comum, também, a poesia como ideia fixa, apesar e por causa da marginalidade. (RUIZ, Alice. In: LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 11, 12)