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3 LEMINSKI – O BRANCO NEGRO

3.6 UMA BREVIDADE E UMA EXUBERÂNCIA

Por fim, destaco dois aspectos que trazem consigo relevantes traços autobiográficos: a breve bibliografia consultada e a incrível abundância de referências a nomes dos mais variados – de Khlébnikov a Bob Marley. É ônus comum aos biógrafos esquadrinharem a

fundo a vida de seus personagens, e quando estes já são póstumos há muitas décadas, uma ampla pesquisa bibliográfica passa a ser prioridade. Era o caso de Cruz e Sousa, mas não foi o que Leminski fez. Para a feitura deste livro, o poeta cita as fontes consultadas: Poesia Completa, do próprio Cruz e Sousa; Panorama do movimento simbolista brasileiro, de Andrade Muricy; Poesia e vida de Cruz e Sousa, de Magalhães Júnior; e Cruz e Sousa: literatura comentada, escrito por vários autores e organizado por José Gonçalves Aguinaldo.

Não creio que esta enxuta bibliografia insinue uma displicência de Leminski para com a fonte mais rica onde poderia colher dados biográficos, afinal este primeiro livro seria decisivo para a continuidade de seus trabalhos na editora Brasiliense, e como vimos, há um método de divisão temática cujo objetivo é traçar uma ideia de quem foi Cruz e Sousa, contextualizando-o e construindo pontes entre ele, seu contexto e os anos 1980. Sugere, desta forma, que o poeta estava mais interessado em dados paralelos e análises contextuais, bem como em sua produção artística, que fossem capazes de conectar Cruz e Sousa com expoentes da cultura contemporânea, particularmente com artistas negros daquela década e com referências literárias, teóricas e biográficas do próprio biógrafo – em particular o registro e o reconhecimento de sua mestiçagem (que se dá no campo biológico, mas também no campo cultural).

O biógrafo e amigo de Leminski, Domingos Pellegrini, tem uma percepção similar, e assim qualificou o livro Cruz e Sousa – o negro branco: “Parece um tributo a seu sangue negro, mas também reúne algumas sacadas brilhantes sobre a poesia do ferroviário e sobre o simbolismo.” (PELLEGRINI, 2014, p. 125). A biografia é sobre Cruz e Sousa, mas o livro é uma ode às origens negras do biógrafo, origens que o fazem um mestiço.

Atentemos agora, e a princípio de maneira meramente quantitativa, ao caráter extremamente referencial da biografia de Cruz de Sousa. Leminski cita os nomes e transcreve poemas e citações de inúmeros escritores, poetas, compositores, músicos, teóricos, pensadores e pintores ao longo do livro. Este recurso, para além de dinamizar os saltos em tempo e espaço e assim afastar o texto do padrão de uma biografia tradicional, reforça o ponto de vista do biógrafo no sentido de iluminar sua própria trajetória intelectual: são suas referências culturais e teóricas que fazem a costura dos temas enfocados em cada capítulo, em cada parágrafo, com seu biografado. Paralelo a isso, é por meio deste recurso recorrente na biografia de Cruz e Sousa que Leminski cria uma ponte de significados entre passado e presente. Nas palavras de Everton de Oliveira Moraes, este é um sinal de “sobrevida” do texto e do autor.

Nas epígrafes são citados Nina Simone, Bob Marley, Jorge Ben, Eduardo Kac, Frank Zappa, Mallarmé e Gilberto Gil (dez vezes). Nas notas de rodapé ele cita Antonio Austregésilo. Leminski transcreve trechos de músicas e poemas de Nestor Vítor, Carlos Fernandes, Cecília Meireles, Gilberto Gil, Torquato Neto, Pethion de Vilar e Khlébnikov. Há aspas com breves citações literais de Baudelaire, Reginald Horace Blyth, Caetano Veloso, Rimbaud, Mallarmé, Verlaine e Virgílio. Nas Legendas de imagens, ele menciona Oscar Rosas, Von Hofman, Franz Werfel, Mallarmé, Poe, Nestor Vítor, Alphonsus de Guimarães, Rimbaud e Baudelaire. Já no texto corrido, há menções a Camões, Rimbaud (cinco vezes), Ezra Pound (três vezes), Maiakóvski, Oswald de Andrade, Machado de Assis (duas vezes), Gilberto Gil (duas vezes), Pelé, Bashô (duas vezes), Hipócrates, Byron, Baudelaire (sete vezes), Álvares de Azevedo, Sartre, Antonioni, Proust, Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, “Big” Bill Broonzy, Lead-Belly, T-Bone Walker, Bessie Smith, Billie Holliday, Mallarmé (seis vezes), Edgar Alan Poe (três vezes), Darwin, Euclides da Cunha, Cabral, Mãe Stella, Nestor Vítor, José Simões Nunes Borges, Vladimir Propp, Ray Charles, Stevie Wonder, Medeiros e Albuquerque, Huysmans, Villiers de l’Isle-Adam, Olavo Bilac (três vezes), Raimundo Correia (três vezes), José Veríssimo, Wilson Martins, Silvio Romero, Odorico Mendes, Sousândrade, Gérard de Nerval, Novalis, Peirce, Raul Pompeia, Van Gogh (duas vezes), Emil Nolde, Kadinsky, Paul Klee, Kokoschka, Schönberg, Kafka, Trakl, Gottfried Benn, August Stramm, Brecht, Albert Soergel, Freud, Otto Maria Carpeaux, Júlio Ribeiro, Dario Vellozo, Alberto de Oliveira, Manuel Bandeira, Gilka Machado, Marinetti, Soffici, Apollinaire, Breton, Éluard, Arnaut Daniel (duas vezes), T.S. Eliot, John Donne, Andrew Marvell, Richard Crashaw, William Shakespeare, Gutemberg, Lênin, Wagner, Beethoven, Verlaine (duas vezes), Goethe, Ferdinand de Saussure (três vezes), Starobinski, Castro Alves, Itamar Assumpção, Djavan, Khlébnikov e Haroldo de Campos.

É interessante notar a fartura de referências ao universo pop – Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan, Nina Simone, Bob Marley, Jorge Ben, Frank Zappa, Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, Bessie Smith, Billie Holliday, Ray Charles, Stevie Wonder e etc. -, grande parte deles ainda bastante ativa durante a década de 1980, e na maioria dos casos, expoentes de negritude da época. Isso nos permite inferir que o excesso de referenciação, para além de uma característica comum nos textos em prosa do poeta, era também uma forma de aproximar Cruz e Sousa da contemporaneidade, como pedia o conceito da coleção Encanto Radical. Mas essas citações trazem consigo também outras possibilidades de análise e interpretação: a exuberância de citações é também uma forma de Leminski evidenciar sua própria exuberância intelectual e registrar seus próprios caminhos teóricos.

Não era apenas na vida – nas conversas com amigos, nos papos de bar – que Leminski pavoneava-se de seu amplo repertório literário e intelectual. Em sua obra sobre Cruz e Sousa, esse proceder – ou seja, a superabundância de citações, referenciações, registros e conexões com músicos, poetas, pensadores, pintores e etc. – é uma das técnicas constitutivas de seu fazer biográfico. E mais: é constitutivo principalmente de seu fazer autobiográfico. Importante parte dos inúmeros nomes citados fazem parte do repertório constitutivo de Leminski como poeta, como pensador, como homem: Vladimir Propp, estruturalista russo, impactou tanto o paranaense que foi ficcionalizado e tornou-se personagem de sua novela Agora é que são elas; Bashô foi de tal maneira um norte em sua produção poética que foi escolhido como um de seus biografados; Ezra Pound, poeta com quem Leminski viveu uma intensa relação de admiração e repulsa, foi citado inúmeras vezes nas cartas enviadas a Régis Bonvicino; Edgar Allan Poe, um símbolo de marginalidade para o poeta; Sousândrade, também muito quisto pelos concretista, e sobre quem Leminski gostaria de ministrar palestras36. Há inúmeros outros

exemplos nessa linha, mas destaco um bastante notável: as referencias a Mallarmé.

O poeta simbolista francês, para André Dick no artigo Paulo Leminski: depois do acaso, incluído em A linha que nunca termina, é a figura principal e indispensável para entender o poeta paranaense. Isso porque Mallarmé, segundo Dick, é o “mestre de seus mestres”, ou seja, mestre dos concretistas, um homem a quem Leminski chamou, em carta a Régis Bonvicino, de “papa Mallarmé”. (LEMINSKI. In: LEMINSKI; BONVICINO, 2007, p. 67). Nesse sentido, dentro da biografia de Cruz e Sousa, o poeta francês se torna um evidente rasgo autobiográfico, dado também detectado por André Dick.

A obsessão de Leminski por Mallarmé já se fazia perceber na minibiografia sobre outro simbolista, Cruz e Sousa, no início dos anos 1980, quando, na busca de uma aproximação do blues com o Simbolismo do poeta em questão, Leminski recorda o “l’azur” insistente de Mallarmé. […] Talvez seja Mallarmé o autor que reúna características de Propp (o professor perfeccionista e estruturalista que enlouquece o aluno em Agora é que são elas), e Occan (o vírus linguístico de Catatau) e de Narciso (à espera de um riocorrente que traga imagens mitológicas em Metaformose).

(DICK, André. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano, 2005, p. 70, 71)

36 “Logo que foi possível, Leminski escreveu aquela que seria a primeira de uma longa série de cartas a Augusto de Campos, a 23 de agosto de 1963, um dia antes de completar 19 anos. Ele dizia (como de costume, iniciando as frases com letras minúsculas): Amigo Augusto, são e salvo, cheguei sem mais, 10 da noite — Neiva e sogra esperavam na rodoviária, turma aqui toda entusiasmada com a coisa, ontem mesmo relatei as ocorrências da semana na aula de literatura portuguesa, levei todo o material — noigandres, invenção, apresentei à classe que está no momento lendo Garret, imagine. surpreendente, ninguém por aqui conhece o cavalheiro de nome Sousândrade. Providenciarei, conferências na biblioteca, talvez já na semana próxima, ó mas possibilidades de aceitação, o ar fresco é sempre bem recebido na estufa, bons elementos não faltam, em especial meu amigo Sérgio Zippin, bom latinista, conhecedor do inglês, o dono da antologia grega, lembra-se?”. (LEMINSKI apud VAZ, 2009. p. 51, 52)

Mas é possível que o traço autobiográfico mais evidente nessa superabundância de referenciações seja as menções a artistas que faziam parte do círculo de convivência de Leminski, alguns deles amigos e parceiros de composição, como Itamar Assumpção, Caetano Veloso e especialmente Gilberto Gil. Aos baianos, o poeta manifestou profunda admiração em carta a Régis Bonvicino. Um detalhe: ele conta do show em que Gilberto Gil dedicou a ele a canção Logunedé, a qual teve um trecho destacado como epígrafe do oitavo capítulo.

Nos 3 dias de show, Gil dedicou para mim “Logunedé” (soube depois q em Porto Alegre ele dedicava a mesma música a Caetano q estava lá) com o seguinte comercial: para Paulo Leminski, grande poeta do Paraná, poeta realce, uma das inteligências mais faiscantes deste país...

Num dos shows, Caetano cantou a pedido meu “Cajá”, dizendo “esta música é para um amigo meu, o grande Paulo Leminski”...

Quer dizer: em matéria de ego, não posso querer mais...

definitivamente, meus ídolos são meus fãs. (LEMINSKI, Paulo. In: LEMINSKI, Paulo; BONVICINO, Régis, 2007, p. 155)

Na biografia de Cruz e Sousa há também a citação a um de seus mestres, Haroldo de Campos, além de Dario Vellozo, simbolista curitibano fundador do Templo das Musas (atual Instituto Neo-Pitagórico), que além de ser constantemente frequentado por Leminski, fazia parte do roteiro alternativo que o poeta fazia questão de percorrer com os amigos que vinham visitá-lo pela primeira vez em Curitiba. (VAZ, 2009, p.186).

Através das alusões a todos estes nomes, Leminski foi capaz de registrar parte importante de sua trajetória de leituras, de seu aprendizado autodidata, assim como de suas parcerias musicais. Alinhavou, portanto, sua vida e sua obra – e o fez nas linhas e entrelinhas de sua primeira biografia, portanto dentro de uma obra que narra a vida de outro, com quem mantém uma relação de afeto (reverberando aqui as características do biografema). Na versão biográfica proposta por Leminski, portanto, compreendemos Cruz e Sousa através dos poemas de Nestor Vítor e Cecília Meireles, das concepções linguísticas de Vladimir Propp, das ideias sobre religiosidade e negritude da ialorixá Mãe Stella, lemos suas reverberações poéticas na canção Clara, de Caetano Veloso e etc. Mais do que ajudar a compreender o poeta catarinense, é através de Itamar Assumpção, Djavan e principalmente de Gilberto Gil que Leminski propõe a revelação do legado de Cruz e Sousa como um poeta negro, seu reflexo na contemporaneidade, seus ecos líricos negromestiços (como bem colocou Antonio Risério) com a roupagem dos anos 1980. Não por acaso, este reflexo só encontra unidade quando o espelho é o próprio Leminski – é ele, sua obra e sua história que conectam Cruz e Sousa a Gil, Djavan, Caetano Veloso, Dario Vellozo, Edgar Allan Poe, Sousândrade e Bashô.

Elisa Helena Tonon, na tese Vida, coisa pra ser dita: envio, metamorfose e (auto)biografia em Paulo Leminski, tem uma percepção similar. As referências, e o deslocamento no tempo e no espaço que elas ensejam, bem como as aproximações que Leminski faz entre seus biografados e estas referências, lhe são muito próprias, ajudam a compor lacunas deixadas no texto, ao mesmo tempo em que insinuam possíveis respostas para completá-las – Leminski, mais uma vez, é a chave para acessá-las.

É surpreendente, também, a relação traçada entre o simbolismo, com toda a sua sinestesia, e o concretismo brasileiro no seu caráter verbivocovisual; ou mesmo a aproximação entre o haicai japonês e a tradição dos epigramas latinos. Mais do que uma desierarquização entre culturas e procedimentos, o que os textos de Leminski nos revelam é a concepção anacrônica do tempo. Essa leitura não percebe os elementos estéticos e culturais de forma sucessiva e evolutiva, mas observa insistentemente como os tempos se tocam, como as questões estéticas e culturais retornam sob variadas formas, e continuam a vibrar, a exigir respostas da arte e da história. (TONON, Elisa Helena, 2014, p. 101)

Já para Everton Oliveira Moraes, em Um corte radical no tecido da História, para além deste anacronismo – que ecoa de Cruz e Sousa e repercute em Gilberto Gil, Bob Marley, Itamar Assumpção – as epígrafes, menções e citações compõem uma espécie de montagem de fragmentos de tempos heterogêneos, cuja função não é apenas recuperar o passado e reconhecer traços dele no presente, mas também de afetar o presente, de exercer nele um papel de criação. A montagem e a reorganização das imagens do passado, em que a abundância de referências é recurso importante, é o método que Leminski usa para selecionar o que lhe parece relevante dentro da tradição e então presentificá-la.

Recuperar para a atualidade as potências “malditas e minoritárias” do passado é inseri-las em uma “linhagem de radicalidades”, rearranjá-las em outra ordem de legibilidade. Um gesto que permite não apenas entender de outro modo o lugar que ocupam em sua própria temporalidade, mas perceber como essa linhagem de radicalidades pode fazer parte de uma política do presente, que busca abrir novas possibilidades para o futuro. (MORAES, Everton Oliveira, 2015, p. 203)

Ao conectar passado e presente através de referências que lhe são muito particulares, e que ajudaram cunhá-lo como sujeito, Leminski se insere nesta “linhagem de radicalidade”, coloca sua assinatura na tradição dos rebeldes, na biografia dos inconformados e insurretos. Para assim proceder, de acordo com Moraes, Leminski se vale de referências anacrônicas e inusitadas – como quando coloca poemas de Cruz e Sousa próximos de canções de Gilberto Gil; ou quando um poema de Torquato Neto surge como uma aparição no meio do parágrafo.

Essa montagem heteróclita parte de uma reminiscência (“como não lembrar de...”) para sugerir não uma continuidade ou influência, mas uma

sobrevivência, uma apropriação, como se os poetas contemporâneos tivessem, em seus poemas, sabido ocupar o espaço aberto a duras penas pela luta de Cruz e Sousa. (MORAES, Everton Oliveira, 2015, p. 203)

Como vimos, a biografia de Cruz e Sousa escrita por Leminski traz as mais diversas referências – de Djavan a Van Gogh – ou seja, artistas e pensadores vindos de diferentes campos, tempos e saberes. No entendimento de Moraes, essas analogias não têm caráter didático, tampouco explicativo, mas sim uma função de multiplicar sentidos. Leminski não deseja ler Cruz e Sousa, nem sua poesia, como um produto de um local e tempo específico (a poesia catarinense do século XIX, por exemplo), da mesma forma que não pretende lê-la por meio de um paradigma lógico, mas sim entender as conexões de Cruz e Sousa e sua poesia com o mundo, por meio da alteridade e da multitemporalidade que o atravessam. Cruz e Sousa torna-se, assim, um agregado de temporalidades que envolve as lutas que encampou na vida e na literatura, contra o racismo, a burocratização da vida cotidiana, os padrões literários da corte e etc. Moraes acredita que as menções a poetas europeus do século XIX - Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud, etc. - são uma forma de evidenciar que a poesia de Cruz e Sousa não é apenas um produto de seu contexto, mas que se comunica com outras temporalidades, espaços, pessoas, imagens – todos eles também elementos da poesia de Cruz e Sousa e formas dela abrir-se para o futuro. Em outras palavras, ao alinhavar analogias e aproximar citações e fatos díspares, Leminski estava construindo sentidos, e seu território preferido eram lugares insuspeitos (como por exemplo no meio do capítulo eco do poeta enquanto ponto, quando aproximou, em parágrafos sequenciais, Vladimir Propp e Stevie Wonder37). Essa é “uma das formas de alertar para as sobrevivências na atualidade de um

passado que se acreditava estar morto.” (MORAES, 2015, p. 204). É, portanto, a experiência levada a cabo no texto biográfico, com suas diversas instâncias de comunicação entre passado e presente, para Moraes, o que constitui a historicidade desta obra de Leminski.

Trata-se, nessas biografias literárias, de pensar um livre uso do passado, contra toda exemplaridade, objetividade e lucratividade. Para usar a expressão de Walter Benjamin, está em questão saquear a tradição, ir ao passado para buscar armas para as lutas políticas do presente, mas também fazer da própria tradução desse passado uma arma. “Recuperar” as “invenções” dos “malditos e minoritários”, reconstituindo uma “linhagem de radicalidades” que pode funcionar como inspiração para uma atitude radical

37 “Para falar com ‘propp’-riedade, isto é, conforme a Morfologia da fábula do teórico russo Propp, o Herói saiu de Casa para Enfrentar o Dragão. Só que na excursão da companhia teatral Cruz não seria ator, nem diretor, muito menos dramaturgo: o seu era o trabalho obscuro, inglório, subalterno, de ponto, a voz oculta no subsolo, soprando as falas para as estrelas do show.

Nos palcos da vida, Cruz se sentirá sempre aquele ponto invisível, trabalhando na peça sem direito a aplausos. Invisível. Negro. Cego. Ray Charles. Stevie Wonder.

no presente. Mas, também, rasgar o “tecido da história” deixando ver o emaranhado de tempos que se agitam sob a superfície aparentemente lisa e contínua do presente. (MORAES, Everton Oliveira, 2015, p. 206)

Este trabalho não pretende entender a fundo a historicidade de Leminski na produção de suas biografias, no entanto, percebê-la em seu anacronismo qual uma ponte entre passado e presente, no qual o poeta é curador da cancela, permite-nos espiar algumas pistas autobiográficas interessantes: os saltos no tempo e no espaço, que muitas vezes se dão pela abundância de referências, revelam percursos muito particulares do biógrafo, dos quais ele se valeu para biografar, a sua maneira, Cruz e Sousa, um expoente de rebeldia na vida e na poesia, tal qual Leminski.

Em termos formais, se comparada às biografias de Bashô e de Jesus, cruz e sousa – o negro branco mostra-se mais tradicional, menos inventiva. Apesar de na biografia de Trótski, como veremos, essa característica ser mais pujante, em Cruz e Sousa ela também é perceptível. É provável que por se tratar do livro inaugural, que abriria caminho para os demais, Leminski estivesse mapeando o terreno, contendo em certa medida os devaneios (mas não todos, evidentemente), construindo sua maneira particular de narrativa biográfica, ainda em desenvolvimento. De qualquer forma, em cruz e sousa – o negro branco, Leminski parece preocupado em explorar o viés sonoro da poesia, a migração do olho para o ouvido, um lirismo que se aproxima da música, o que fica mais evidente nas inúmeras aproximações que Leminski faz entre Cruz e Sousa e o simbolismo com compositores e canções de sua época, no destaque que deu à sonoridade dos poemas de seu biografado. Além do mais, através de cruz e sousa – o negro branco, me parece que o biógrafo debate, ainda que nas entrelinhas, conceitos e ideias bastante subjetivas a respeito da literatura, da poesia e do que é ser um poeta. Ele introduz Cruz e Sousa em sua própria tradição seletiva, em outros termos, em seu paideuma. O poeta, aqui, é um rebelde, um subversor e literatura e poesia são os campos onde sua insurgência se expressa, se exalta para, a partir delas, lograr um impacto social. Dessa forma, a poesia e a literatura são espaços e ferramentas de luta, seu conteúdo e especialmente sua forma oferecem possibilidades de intervenção literária e social – cabe ao poeta, ao rebelde, valer-se delas.