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4 BASHÔ O JAPÃO EM MIM

4.4 SANTOS E ANALOGIAS

Por conta de suas andanças pelo Japão, Bashô teve, se diz (e assim também diz Leminski), mais de três mil alunos: “destacam-se alguns, entre os quais este grupo dos Dez, comparáveis aos discípulos de Cristo: Sampu, Kyorai, Rantêtsu, Kyorôku, Kikáku, Josô, Yaha, Shikô, Etsujin e Hokúshi.” (LEMINSKI, 2014b, p. 92). Bashô dedicou-se, durante estes anos, ao aprendizado da cultura e da poesia chinesa, também da prática zen no mosteiro de Komponji, sob a direção do monge Bucchô, que o recriminava por dedicar tempo demais ao haicai, o qual, segundo Leminski, antes de Bashô era apenas uma espécie de diversão social frívola, feito de versinhos trocadilhescos e humorísticos. Ao explicar que Bucchô finalmente compreendeu a importância do haicai após uma única frase de Bashô - “Haikai é apenas o que está acontecendo aqui e agora” – Leminski inclui um verso de Alice Ruiz: “Francisco conseguia / entender / o que a ave dizia / Bashô enxergava / a lágrima no olho do peixe”. (RUIZ apud LEMINSKI, 2014b, p. 94).

Dessa forma, e já no primeiro capítulo, Leminski insere uma referência bastante pessoal: um poema de Alice Ruiz. É importante frisar que mesmo sendo um capítulo único sobre fatos da vida de Bashô, que contabiliza apenas 13 páginas, Leminski mantém um estilo dispersivo, incluindo histórias do Japão que apenas lateralmente falam de Bashô, mas que contextualizam sua vida. Para explicar a vida samurai de seu biografado e fortalecer a ideia de que se trata de um grupo com um código de honra particular, ele narra o ataque de quarenta e sete samurais de Asano, Takumi no Kami, senhor da torre de Ako, à casa de Kotsukê no Sukê, um homem do imperador. O ataque ocorreu sete anos depois da morte de Bashô, mas é através dele que Leminski dá a seu texto cenas narrativas, insere personagens, conta histórias e as aproxima da vida de seu biografado.

Mas há outros desvios de foco – uma das características do texto de Leminski. Um exemplo: ele disserta por uma página inteira sobre seu conceito, bastante particular, de santidade, e apenas no fim o conecta a Bashô, com a seguinte frase: “Como essa concisa extravagância que se chamou Matsuó Bashô, santidade e sentido, guerreiro de nascença e formação, monge por escolha, poeta por fatalidade.” (LEMINSKI, 2014b, p. 95). Santos, para Leminski, são aqueles que se comunicam de forma privilegiada com a transcendência, o que permite a existência de inúmeras espécies deles: “Santos artistas, santos poetas, santos atletas, santos marxistas, inclusive.” (Ibid., p. 95). Deus, ou os deuses, são aquilo que nos fazem viver em plenitude espiritual e mental, e que recebe e recebeu muitos nomes: “Ra, Amon, Aton, Zeus, Iavé, Jesus, Xangô, Buda ou revolução. O sentido: a interpretação final do gesto de

existir. O para quê. E o porquê.” (Ibid., p. 95). Para Leminski, é possível vislumbrar nos santos um pouco dos deuses, e nos radicais um pouco da Ideia: “Que outro adjetivo calharia, por exemplo, para os bolcheviques de Outubro, esses Lênin, Trótski, Stálin, Kamenev, Zinóviev, Bukhárin, Rádek, Dzerjhinski, santos da Revolução”. (Ibid., p. 95).

Como na biografia de Cruz e Sousa, Leminski se vale de inúmeras menções, mas desta vez de forma mais comedida: neste primeiro capítulo há apenas 24 alusões a escritores e pensadores, além dos nomes dos discípulos de Bashô e de seus mestres. Entre as referências constam Euclides da Cunha, Marx e Haroldo de Campos. Note-se que algumas, como as citadas, se repetem, entre elas as menções a Trótski e Jesus, dois de seus biografados.

Na sequência do capítulo, e numa de suas guinadas bruscas de tema, Leminski passa a escrever sobre o teatro nô47: “uma das mais extraordinárias criações do gênio nipônico, teatro

semiótico, antinaturalista, misto de ópera, tragédia grega e missa”. (LEMINSKI, 2014b, p. 96). O biógrafo faz questão de lembrar que o livro Sendas de Ôku tornara-se roteiro, no Japão moderno, para uma peça de teatro nô, tendo um personagem representando o próprio Bashô como protagonista.

Mas Bashô não assimilou apenas saberes verbais, prossegue o biógrafo, que em mais uma mudança temática abrupta passa a abordar as paixões do poeta japonês: a arte do chá, o chá-dô, um dos caminhos do zen. Bashô também se interessou pela pintura, a qual aprendeu com um de seus discípulos. Mas o que ele fazia de melhor, e ao que mais dedicou sua vida, foi ao haicai. Leminski passa então a traçar paralelos entre seu biografado e outras figuras ocidentais, a começar por Marco Túlio Cícero: Bashô, japonês, se valeu da cultura chinesa; Cícero, romano, se valeu da cultura grega. No Brasil, Leminski traça dois paralelos. O primeiro com Euclides da Cunha, que também era um ex-militar, como Bashô: “Tenente e engenheiro, Euclides, construtor de pontes, como Bashô era superintendente de águas, fez um haikai chamado Os sertões”. (LEMINSKI, 2014b, p. 98). O segundo é com Taunay, oficial do exército de d. Pedro II, também desenhista e escritor. Na literatura francesa do século XIX, encontra similaridade com Alfred de Vigny, também militar e poeta.

Dando substância às analogias inusitadas e surpreendentes d’a lágrima do peixe, Leminski traça outra semelhança entre Bashô, Marco Túlio Cícero, Almirante Taunay, Euclides da Cunha e Alfred de Vigny: além do fato de serem homens das letras e das armas, outra analogia que os une, segundo Leminski, é que todos buscaram a síntese. Bashô a encontrou no haicai, que reúne, segundo o biógrafo, tudo que há de melhor na produção de

cultura do extremo oriente: “transcendentalismo hindu, realismo e materialismo chinês, simplicidade japonesa. Confucionismo, pintura, arte do chá: teatro nô, zen.” (Ibid., p. 99).

Essa relação traçada por Leminski entre Bashô, Cícero, Taunay, Euclides e Vigny, segundo Elisa Helena Tonon, novamente em Vida, coisa para ser dita, demarca um procedimento recorrente, a analogia: o texto relaciona culturas diversas no tempo e espaço, aproximando a reflexão do biógrafo ao universo do leitor. (TONON, 2014, p. 97). Trata-se, segundo Tonon, de uma característica partilhada por todos os quatro livros que compõem Vida.

As comparações estão presentes ao longo dos quatro relatos e realizam interpolações entre eles: o cristianismo é comparado ao zen budismo de Bashô, a doutrina de Jesus é lida como socialismo utópico, as parábolas cristãs são relacionadas a epifania de James Joyce, o zen é aproximado ao cinismo filosófico, enfim. Os elementos são sempre colocados em contato e em confronto, ainda que pertençam a culturas díspares, não há hierarquia entre os universos. (TONON, Elisa Helena, 2014, p. 98)

Neste trabalho traço analogias entre Vida, de Leminski, e Sade, Fourier e Loyola, de Roland Barthes. Ambos se debruçaram sobre as palavras e a vida de personalidades importantes para o universo das ideias. O primeiro se deteve, em suas próprias palavras, num “grande poeta negro de Santa Catarina”, no “pai do haicai”, no “profeta judeu” e no “ideólogo”. (LEMINSKI, 2014b, p. 10). O outro mirou, também em seus próprios termos, “o escritor maldito, o grande utopista e o santo jesuíta”. (BARTHES, 2005, p. 9). No entanto, Barthes afirma, em Roland Barthes por Roland Barthes, que sempre resistiu à analogia, pois ela “implica num efeito de Natureza: ela constitui o ‘natural’ como fonte de verdade”. (BARTHES, 2003, p. 56). Trata-se do que chamou de “demônio da analogia”: sempre que algo é visto, ou lido, é preciso que ele se assemelhe a algo, particularmente a algo que lhe é natural, a algo que remeta a sua própria natureza. Portanto, estar no plano da analogia, para Barthes, é estar no plano do imaginário, que por si só é bastante subjetivo. Para explicar essa relação ele recorre justamente a uma analogia, neste caso com a tourada.

(O touro vê tudo vermelho quando o engodo lhe cai sob o focinho; os dois vermelhos coincidem, o da cólera e o da capa: o touro está em plena analogia, isto é, em pleno imaginário). Quando resisto à analogia, é de fato ao imaginário que resisto: isto é: a coalescência do signo, a similitude do significante e dos significado, o homeomorfismo das imagens, o Espelho, o engodo cativante. Todas as explicações científicas que recorrem à analogia – e elas constituem legião – participam do engano, formam o imaginário da Ciência.) (BARTHES, Roland, 2003, p. 57)

Ainda segundo Barthes, é por este motivo que a humanidade está condenada à analogia, ou seja, à natureza, à sua própria natureza – daí o esforço de pintores, de escultores

(e, porque não, de escritores e poetas) de tentar escapar delas. Há duas rotas de escape para estes artistas, duas “transgressões”, dois “excessos contrários”, duas “ironias que ridicularizam a Analogia”: a cópia (e seu fingimento espetacularizado de respeito para com aquilo que se está comparando), e a deformação regular do objeto mimetizado. (BARTHES, 2003, p. 56). Parece-me que, em Vida, o procedimento de Leminski seja o da deformação regular, o que explicaria, por exemplo, a comparação entre Bashô e Euclides da Cunha. A falta de hierarquia entre os universos, como escreveu Elisa Helena Tonon, cria analogias inusitadas e surpreendentes, que deformam ora significante ora significado. A ironia de Leminski na configuração de suas analogias é uma forma de transgressão da própria natureza da analogia, especialmente do caráter conservador implicado nela. Mas ao passo que a analogia é, segundo Tonon, um aspecto fundante e estruturante do texto biográfico de Vida, me parece que essa ironia torna-se também uma transgressão da natureza do próprio texto: transgredir a analogia, em Vida, é uma autotransgressão, posto que ironiza um elemento fundante e estrutural de si mesmo, ou seja, do próprio texto.