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O terceiro livro da tetralogia de Vida é jesus a.c., lançado em 1984. Trata-se de uma obra de 84 páginas, dividida em 12 capítulos curtos e acrescida de uma dedicatória e uma carta de intenções. Sandra Novaes, em O reverso do verso, inclui uma entrevista dada por Leminski a Rosimeri Gemael, do Correio do Povo, em 1986, em que o poeta lança um olhar retrospectivo sobre suas escolhas: "[…] Me chamaram para colaborar com a coleção Encanto Radical e aí também fui eu que indiquei os nomes e a editora topou. A biografia de Jesus eles nem tinham imaginado...". (LEMINSKI apud NOVAES, 2003, p. 65).

Antes de iniciarmos a análise do livro, é importante conhecermos a relação entre Leminski e a religião católica, e especialmente com sua figura mais significativa, Jesus. Isso nos remonta à infância do poeta: quando tinha 11 anos de idade, foi matriculado no colégio Marista Paranaense, em regime de semi-internato, para cursar a 1° série. Segundo Toninho Vaz, em O bandido que sabia latim, foi neste período que tomou contato pela primeira vez com o francês e o latim, e passou a se interessar pelos clássicos. No ano seguinte, 1957, o inglês entrou no currículo, completando uma sequência de idiomas que o auxiliariam pelo resto da vida em seu trabalho como tradutor e em suas longas horas de leitura. Foi neste ano que Leminski passou a se interessar pela religião católica: foi apresentado pelos padres maristas à obra completa do padre Antonio Vieira e também tomou gosto pela literatura religiosa. Quando entrou na 3° série, encantou-se por Camões, Homero e Antero de Quental e foi aconselhado pelos religiosos do colégio a aumentar o rigor dos estudos a fim de responder a uma suposta vocação religiosa. (VAZ, 2009, p. 29, 30)

Foi assim que Paulinho, durante um período de pesquisa autogerenciada e informal, acabou conhecendo o Colégio São Bento, em São Paulo, uma instituição secular mantida pelos monges beneditinos.

Descobriu que os monges viviam em mosteiros misteriosos e lúgubres, concentrados em leituras e análises meticulosas de palimpsestos e manuscritos da Idade Média. Ficou sabendo que a Ordem dos Beneditinos fora fundada por São Bento de Núrsia (480-547), também criador das Regras, uma espécie de “normas para a vida no Monastério”.

[…] Em poucos dias estava com o endereço do mosteiro na mão e pôs-se a escrever uma carta para o coordenador da escola, D. Clemente, pedindo informações sobre como devia proceder para tornar-se um monge. A mensagem foi escrita de próprio punho e nela Paulinho se candidatava a uma vaga na 3a série do curso ginasial, em regime de internato. Anos mais tarde, D. Clemente recordaria esta troca de correspondência:

— Ele fez tudo sozinho, apesar de sempre consultar a família. Eu respondi explicando as regras do Colégio, lembrando que por uma questão de idade, ele deveria vir para o curso dos oblatos, como são chamados os alunos do ginasial ainda sem idade para o noviciado. Ele gostou da idéia e prometeu cuidar de tudo. (VAZ, Toninho, 2009, p.31, 32)

Aos 13 anos, em companhia do pai, embarcou de Curitiba para São Paulo a fim de estudar no Colégio São Bento – que havia formado nomes como Godofredo da Silva Teles, Sérgio Buarque de Hollanda, Guilherme de Almeida, Américo Brasiliense e Francisco Prestes Maia – e começar sua caminhada para se tornar um monge beneditino. Além do estudo religioso, o colégio contava com uma ampla biblioteca com mais de 70 mil livros, onde Leminski passaria a maior parte do tempo. Segundo Vaz, o poeta não teve dificuldade de adaptação ao colégio e aos novos amigos, tampouco à vida simples do internato. Em poucas semanas fez amizade inclusive com os monges mais eruditos, dentre os quais D. João Mehlmann, considerado um intelectual sofisticado que organizava a Basílica. D. João: “passava o dia lendo e fumando charutos, reagiria com surpresa ao saber que um certo aluno, oriundo da turma dos oblatos, se vangloriava de ter lido, aos doze anos, uma enciclopédia inteira, de A a Z.” (VAZ, 2009, p. 36).

Foi D. João Mehlmann, um doutor na Sagrada Escritura, cuja especialidade era estudar os autores gregos no original, quem apresentou a Leminski a biblioteca do mosteiro, no segundo andar. Ali, o garoto encontrou o que procurava: obras de autores clássicos servidas de bandeja por um orientador (tradutor) ideal para a tarefa. Interessou-se por latim e grego, tendo se aprofundado no estudo do Panteão, onde se perfilam os deuses sagrados da mitologia. Atualizou estes estudos religiosos através de Spinoza (Baruch), um expoente do panteísmo moderno, que organizou e catalogou as religiões, conferindo-lhes definições, axiomas e postulados.

(VAZ, Toninho, 2009, p. 37)

Segundo Vaz, foi a partir deste encontro com D. João Mehlmann que Leminski mergulhou, de fato, nos estudos religiosos e na investigação das línguas clássicas, especialmente grego e latim. Mehlmann tornou-se uma espécie de tutor e transferiu muito de seu conhecimento ao novo oblato, particularmente dicas de tradução e de pesquisa. A poesia, no entanto, continuou a encantar Leminski: era visto com Os Lusíadas debaixo do braço e, por inspiração de D. Clemente, ajudou a fundar a Academia de Letras Miguel Kruse (homenagem ao abade que fundou o colégio), a redigir os regulamentos internos e distribuir as cadeiras, sendo a primeira delas para Carlos Franscisco Berardo.

Como vimos na introdução deste trabalho, foi nessa época que Leminski esboçou suas primeiras biografias, que relatavam a vida dos principais santos da Ordem Beneditina, com especial atenção ao patriarca, São Bento de Núrsia. “O resultado da empreitada parece ter sido um pequeno caderno escolar com dezenas de folhas preenchidas, das quais não se conhece nenhum vestígio.” (VAZ, 2009, p. 41). Vaz acredita que esses estudos e descobertas seriam influências marcantes para a futura vida intelectual do poeta, devidamente utilizadas em ensaios, poemas e em suas biografias.

Leminski logrou as notas necessárias para passar do 3° para o 4° ano, porém ele tinha um hábito pouco quisto entre os religiosos do lugar: guardava recortes com fotos de vedetes e atrizes debaixo do colchão, com notável predileção para Brigitte Bardot. Sua coleção foi descoberta no começo do ano letivo e o fato abalou a relação entre o oblato e a direção do colégio. Apesar dos esforços de pesquisa e da inclinação para o estudo religioso, Leminski era indisciplinado e extremamente expansivo, características que não iam ao encontro das normas do colégio. Após um ano de estudos no São Bento, os monges escreveram para sua família recomendando a transferência para outra instituição de ensino, o que foi atendido pelos pais em 20 de janeiro de 1959. Ele trocaria cartas com D. Clemente até dezembro de 1960 e visitaria o velho internato algumas vezes, porém sem nunca passar da recepção e sempre acompanhado de Alice Ruiz e das filhas. A última visita foi em 1986.

Em entrevista publicada vinte e quatro anos depois (a 29 de outubro de 1982), no jornal O Estado do Paraná, ele deixaria registrado:

— Acontece que eu descobri a mulher. No mosteiro eu sentia a umas coisas, uns arrepios que me faziam pensar: ou é o arcebispo ou é alguém. Era a mulher. Então, tinha coisa melhor que Deus.

Depois, discretamente, revelaria ter boas razões para suspeitar que a descoberta do “álbum secreto da Brigite” era resultado de uma trama urdida a partir das revelações feitas no confessionário, onde acumulava penitências pelas rotineiras “homenagens” às belas e sensuais vedetes — aludindo-se à mitologia, uma referência a Onan. Com o passar do tempo e com a repetição sistemática destas penitências, os monges teriam identificado em sua personalidade (ainda em formação) pontos visíveis de soberba, vaidade e sensualidade, elementos considerados incompatíveis com a vida monástica. Ou, analisando de outra forma, havia evidências suficientes de que faltava ao aluno “vocação espiritual para a vida religiosa”. (VAZ, Toninho, 2009, p. 46)

Na mesma entrevista, escreve Vaz, Leminski afirma: “aos 40 anos ainda me sinto um Beneditino – e vai ser assim pra sempre...”. (LEMINSKI apud VAZ, 2009, p. 49). Em 1990 foi encontrado entre seus alfarrábios o poema Sacro Lavoro, publicado no livro póstumo o ex- estranho.

sacro lavoro

as mãos que escrevem isto um dia iam ser de sacerdote

transformando o pão e o vinho forte na carne e sangue de cristo

hoje transformam palavras

num misto entre o óbvio e o nunca visto O que o amanhã não sabe,

o ontem não soube. Nada que não seja o hoje jamais houve.

Toninho Vaz ressalta ainda um outro poema, IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICTI, também publicado postumamente, no livro la vie en close. O biógrafo de Leminski identifica neste poema uma verdadeira pegada autobiográfica lavrada no bojo de sua obra. (VAZ, 2009, p. 48). O interessante deste poema, além da temática altamente autobiográfica, é a data em que foi escrito: agosto de 1984, mesmo ano em que Leminski finalizou e publicou jesus a.c.