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IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICT

5.8 UMA NOVA TRADUÇÃO

O próximo capítulo, o que foi feito de jesus, ocupa um tema importante para Leminski, já visitado na biografia de Bashô: as traduções. Ele tem quatro páginas e traz duas epígrafes bastante diferentes dos demais, uma de Santo Agostinho e outra de Oswald Spengler.

Deus factus est homo ut homo fieret Deus. Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus. AGOSTINHO Uma nação de estilo mágico é a comunidade confessional, a associação de todos aqueles que conhecem o caminho da salvação e que são unidos, intimamente, pelo idjma desta crença. OSWALD SPENGLER, O DECLÍNIO DO OCIDENTE (AGOSTINHO; SPENGLER apud LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 222)

Segundo Leminski, as traduções católicas e protestantes dos evangelhos trazem incontáveis modificações, como adições de nomes e títulos de capítulos que não existem no original, formado por blocos episódicos e relatos divididos em partes. “Tanto quanto possível, os evangelhos procuram manter uma cronologia lógica e linear de biografia, nascimento, desenvolvimento e morte de Jesus.” (LEMINSKI, 2014b, p. 222). No entanto, o evangelho de João se difere dos demais. Ele teria sido o apóstolo mais jovem e são atribuídos a ele três epístolas do Novo Testamento, entre eles o Apocalipse, derradeiro livro da sagrada escritura. “A ser assim, João é um dos maiores poetas da literatura hebraica antiga: inexcedível, o esplendor imagético do Apocalipse.” (Ibid., p. 222). O texto de João, pontua Leminski, se difere completamente dos demais, chamados sinóticos, pelo fato de complementarem-se. Com João, contudo, isso não acontece.

Incontáveis gerações de exegetas despenderam eternidades para colocar em concordância o evangelho de João e os sinóticos.

Mas não é esta diferença “ficcional” que separa João e os outros. Jesus, nas palavras de João, parece ser outra pessoa. De fato, já é.

Na lembrança da sua “eclésia”, o nabi galileu começa a se transformar na Segunda Pessoa da Trindade, não mais filho de Deus, como todo mundo, mas Deus mesmo, sua parte que se fez carne e se envolveu, irremediavelmente, com a história concreta dos homens.

Começa o mistério da Encarnação, mito fundante do cristianismo e fonte de toda a sua vitalidade duas vezes milenar: a noção de que Deus, a Transcendência Absoluta, viveu, gozou e padeceu na carne do homem toda a miséria e a desgraça da condição humana.

A coincidência homem/deus era comum no Oriente. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 223)

É com João que Jesus deixa de ser uma pessoa de carne e osso e passa a ser uma ideia, algo que traz consigo um sentido para a vida. Leminski finaliza o capítulo lembrando que o

catolicismo, bem como o judaísmo, sobreviveram aos inúmeros deuses com quem competiram, com quem foram contemporâneos. “Católico ou protestante, o cristianismo é, sob muitos aspectos, o triunfo do judaísmo.” (Ibid., p. 225). Isso porque o catolicismo, para Leminski, é a modalidade expansiva, imperialista, proselitista e universal do judaísmo. Em outras palavras, pode-se dizer que o cristianismo, na visão de Leminski, é uma tradução do judaísmo, ainda que numa modalidade particular, que talvez se assemelhe à cocriação pregada por um de seus mestres, Augusto de Campos.

O último capítulo, parabolário, tem doze páginas, não traz epígrafes e se mostra como um exercício de tradução e de seleção de trechos da Bíblia feitos por Leminski. Trata-se de um capítulo muito similar ao cruzamento, de cruz e sousa – o negro branco, e o posfácio de bashô – a lágrima do peixe. Parabolário é dividido em três partes: parábolas do reino, outras parábolas e fragmentos de um apócrifo, do qual já tratamos. Em parábolas do reino, Leminski seleciona e traduz trechos bíblicos que abordam o tema do reino de Deus. Ele aponta que todas elas têm um símile no mundo do trabalho, especialmente a agricultura, artesanato, culinária, comércio, piscicultura e haliêutica. “O semeador, o grão de mostarda, o fermento do pão: é do mundo material, do trabalho simples, que Jesus extrai os símiles para anunciar o advento de uma nova ordem das coisas.” (Ibid., p. 227).

Em outras parábolas, Leminski escolhe trechos de diversas parábolas e tergiversa a respeito, ressaltado o caráter ficcional de algumas delas. “Quanto à parábola do filho pródigo, nenhuma dúvida: nela, ‘Lucas’ realiza a mais inteiriça peça ficcional dos evangelhos.” (Ibid., p. 232). Lucas realiza, ainda segundo o biógrafo, uma novela arquetípica com todos os requisitos do gênero, entre eles a surpresa, rompimento, aventura, fuga da origem e volta às origens.

Seja como for, a chamada Parábola do Filho Pródigo é a unidade ficcional mais rica e mais redonda, mais ampla e mais realizada, de todo o Novo Testamento. A inspiração artística que a conduz faz com que transcenda qualquer finalidade doutrinária mais imediata. E a afirma como objeto artístico autônomo, para figurar com brilho em qualquer antologia da narrativa mundial. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 235)

É interessante notar que a tradução feita pelo poeta se difere bastante das traduções recorrentes da Bíblia. Uma das principais diferenças, como veremos abaixo, é que Leminski promove uma partição do texto corrido em versos, e o traduz compondo rimas, o que faz com que algumas das parábolas se mostrem como poemas, levando a cabo seu intuito de ler Jesus como um poeta. Como nesta tradução de um trecho de Mateus, 6,26.

Assim são os filhos do pai dos céus.

Seu sol, ele faz que resplandeça sobre os bons e os perversos e chova igualzinho

sobre os errados e os certos. Teu olho

é a lâmpada do teu corpo. Se teu olho está bem, todo o teu corpo está lúcido. Se teu olho não estiver,

todo o teu corpo está tenebroso. Pois se a luz que tens em ti são trevas,

como não vão ser as próprias trevas? Olhem só as aves do céu

que não plantam nem colhem nem armazenam no paiol, e o pai celeste

as abastece.

(MATEUS apud LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 230)

Por fim, as duas últimas partes da biografia são sobre jesus, em que Leminski explicita a bibliografia usada; e naquele tempo, que repete as demais biografias traçando uma linha do tempo da vida de seu biografado. A partir da análise que desenvolvemos do livro jesus a.c.. me parece que Leminski de fato conduziu sua biografia através das premissas explicitadas na carta de intenções: as interpretações das parábolas bíblicas e suas implicações nas traduções e na visão que a figura de seu biografado, feitas no corpo de quase todos os capítulos, vão ao encontro da leitura do signo-Jesus, ou seja, das reverberações e múltiplas significações que sua mensagem recebeu ao longo dos séculos. Da mesma forma, o homem por trás do santo recebeu grande atenção, particularmente nos capítulos o profeta em sua terra, a voz gritando no deserto, capítulo 0, versículo 1, jesus macho e fêmea e jesus jacobino. Mas a intenção mais manifesta durante a biografia é a leitura de um Jesus poeta, reiterada inúmeras vezes com o uso dos adjetivos “poeta” e “superpoeta”, além das traduções das parábolas particionadas em versos - é flagrante o fato de Leminski, um poeta, traduzir e recortar as palavras de Jesus de forma a compor poemas numa espécie de cocriação, posto que suas traduções criam rimas que evidenciam a poética das parábolas, jogam luz, por fim, em sua leitura lírica das passagens. Tais traduções, aliás, foram levadas a cabo em grande medida por conta do aprendizado em idiomas clássicos, particularmente o latim e o grego – o último foi usado em

larga escala, já que Leminski admitiu ter lançado mão, para a feitura da biografia, do texto original da Bíblia, em grego, e a versão latina de Jerônimo.

Assim, em jesus a.c. a busca pelo signo-Jesus, esse milenar emissor de significados cuja matéria-prima, em grande medida, está nas parábolas, esses poemas meio joyceanos capazes de convulsionar extraordinariamente aspectos profundos da sociedade, da política e das relações humanas e espirituais, leva Leminski a encontrar seu superpoeta, que é, ao mesmo tempo, um visionário e um revolucionário, um ser com poder de sublevar o mundo através das palavras e vislumbrar um horizonte novo. A poesia, dessa forma e mais uma vez, instrumento de luta68, argamassa de insurgência com imensa capacidade de transformação

que, qual uma cápsula do tempo, pode revelar significados inéditos para cada nova geração. Nesse sentindo, Leminski tentou traduzir esse potencial poético de Jesus para sua geração, como explicitado em trecho de O bandido que sabia latim, já incluído neste trabalho: “Para mim, Jesus é um sinal que deve ser lido a cada geração. E cada qual dará a sua própria interpretação, conforme o seu repertório e interesses.” (LEMINSKI apud VAZ, 2009, p. 245).

68 Em entrevista a Ademir Assunção, intitulada Paulo Leminski: um kamiquase na Idade Mídia, Leminski responde a uma pergunta bastante direta: Você acredita que a arte pode causar revoluções? “Pode, claro. Mas revoluções não acontecem toda segunda-feira. As vanguardas do início do século surgiram quando a burguesia desabou, com a Primeira Guerra. A Europa passou para segundo plano como potência mundial, e a hegemonia foi assumida pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Na Segunda Guerra isso se consagrou. O que é a Europa hoje? É um imenso museu. Então, as vanguardas europeias, surrealismo, cubismo, futurismo, dadá, surgiram num momento histórico irrepetível. Hoje nós estamos vivendo numa época retrô: neoexpressionismo, neodadá, neocubismo. Não está acontecendo nenhuma revolução.” (LEMINSKI. In: ASSUNÇÃO, 2012, p. 34).

6 O LEÃO RUSSO

Leon Trótski foi o último biografado de Leminski. Trótski – a paixão segundo a revolução foi publicado em 1986, tem 14 capítulos, além da dedicatória, apêndices, bibliografia e uma parte reservada à listagem da obra trotskiana. No total, o livro soma 146 páginas. É importante reforçar que esta obra, diferente das demais, não foi publicada na coleção Encanto Radical, mas em outra, intitulada Antologias e Biografias, também da editora Brasiliense. As diferenças, contudo, não param por aí. As três biografias anteriores trazem a marca premente do texto leminskiano dispersivo, com conexões bastante voláteis entre temas e longas digressões que contornam o universo do biografado, que orbitam em torno dele, mas que não falam diretamente a seu respeito – alguns exemplos: a negritude, no caso de Cruz e Sousa; o haicai em Bashô; a subversão na história de Jesus. Estas biografias, que para muitos autores já citados, estão, na verdade, mais próximas do ensaio, têm por característica uma estrutura não cronológica e um texto fragmentado: cada capítulo traz um tema novo, um assunto que aborda um aspecto da vida ou da obra de seu biografado, mas que muitas vezes não traz nenhuma conexão direta com os capítulos anterior e posterior. E isso não ocorre apenas entre capítulos: há uma fragmentação interna, que ocorre no corpo do texto, que o faz dar guinadas temáticas bruscas sem qualquer aviso ou divisão visível. Como vimos, partes deste texto foram compostas inclusive com a ajuda de colagens de outros trabalhos, mas cujo encaixe final foi capaz de formar uma ideia bastante particular a respeito do personagem. No caso da biografia de Trótski, essas características se fazem notar, mas não são estruturantes.

Trótski – a paixão segundo a revolução traz um texto cronológico, com reflexões mais pontuais e contidas, através de um cercamento que não se dá num sentido lírico ou na experimentação de linguagem, mas num sentido temático: a impressão é de que, neste livro, Leminski delimitou, e na maioria dos casos respeitou, um raio muito menor de digressão e dispersão em suas reflexões, quando colocadas em relação ao personagem e ao assunto em questão. Seus voos não são menos profundos, mas certamente são menos distantes – ele se detém mais nos detalhes dos entornos imediatos, o que faz suas conexões serem menos surpreendentes e mais firmes. Isso é particularmente notável entre o quarto e o décimo segundo capítulo: os três primeiros (enquanto os mongóis não vêm, aliócha e ivan) e os dois últimos (trótski e a guerra e trótski e a cultura), ao contrário, se assemelham mais aos ensaios de Leminski e às demais biografias.

Essas características da biografia de Tróstki, ao passo que a desassemelha das de Cruz e Sousa, Bashô e Jesus, a aproxima das biografias tradicionais, o que diminui a incidência de traços autobiográficos aparentes, ainda que muitos estejam lá, como veremos no decorrer deste capítulo. Antes, porém, é importante pontuar que, apesar das diferenças mencionadas, a paixão segundo a revolução guarda também semelhanças com as demais biografias de Vida. A linguagem veloz e a exuberância de referências, o regozijo intelectual e também, como escreveu Elisa Helena Tonon, o compromisso com o deslocamento de perspectivas cristalizadas, uma fidelidade não com os fatos e relatos, mas com a história como escritura, como signo. Disso decorre outra semelhança: o poder de valer-se de um personagem para abordar temas mais amplos e seu oposto, o poder de valer-se de temas mais amplos para abordar seus personagens. É certo que em Trótski essa abordagem é mais contida, mas o líder bolchevique é usado por Leminski para tocar, de forma geral, no tema das revoluções, e de forma particular, na Revolução Russa. Essa constatação também foi feita por Domingos Pellegrini, em Minhas lembranças de Leminski.

Na também “biografia” de Trótski, o (anti)método é o mesmo, usar o homem como pretexto para falar de algo maior, a Revolução Russa ou mesmo todas as revoluções em geral; pois Leminski extrai da experiência soviética lições perenes e universais, “historiador que escreve com a pena embebida no tinteiro da crítica”, como diz a Pé Vermelho num de seus rompantes definidores.

Começa indicando que a história da Rússia serve ao Brasil como a uva serve à mão ou vice-versa. É só trocar os mongóis fundadores da Rússia pelos portugueses, e trocar também Pedro, O Grande, por D. Pedro I e II. (PELLEGRINI, Domingos, 2014, p. 127)

As aspas na palavra biografia fazem eco à percepção de Pellegrini, já apontada neste trabalho, de que os livros de Vida não são propriamente biografias, mas ensaios biográficos. No que diz respeito ao “(anti)método” faço aqui uma ponderação: não me parece que Leminski use Trótski como pretexto para falar da Revolução Russa. O que faz é falar de Trótski durante esta revolução – a vida do bolchevique antes da Revolução de 1905 (que Lênin chamou de “ensaio geral” para Revolução de 1917) e depois de 1929 (ano em que é expulso da URSS por Stálin) são abordadas apenas panoramicamente. O foco de Leminski está na trajetória que levou Liev Davidovitch a se tornar Leon Trótski, o que fez com que um judeu ucraniano – que viveu a infância no campo e a juventude na cosmopolita Odessa, ambas sem penúria e com acesso a alguns luxos e participação em seletas rodas da intelectualidade da classe média russa – se transformasse num líder revolucionário marxista-leninista, num ministro da guerra capaz de bombardear sem piedade antigos aliados e, ao mesmo tempo, ser o mais sensível dos bolcheviques às vanguardas artísticas da época. Acredito que, diferente do

que propõe Pellegrini, Leminski não toma Trótski como pretexto para falar da Revolução Russa, ao contrário, toma a Revolução Russa para falar de Trótski – apropria-se do principal fato histórico que marca a vida de seu personagem para, a partir disso, balizar todo o conjunto temática da biografia.

Abundam, nos escritos e na história de vida de Leminski, registros de sua admiração por Trótski: poemas como para a liberdade e luta e o velho leon e natália em coyoacán; ensaios como Arte inútil, arte libre? e Estado, mercado. Quem manda na arte?, além de menções ao líder revolucionário e ao marxismo nas cartas trocadas com Régis Bonvicino, como nos seguintes trechos.

como vs. veem

andei lendo bolcheviques de novo... task... task... trotsky!

[…] faço balanço das posições contraculturais à luz de critérios marxistas, para salvar e recuperar a contracultura neste Brasil-1980, que vai ser politico PACAS, tenho certeza (a História! o relógio das História voltou a funcionar nesse país, e na Nicarágua...)

[…] viver é duro. mas é bom. (quando fraquejo, me lembro de trotsky, meu exu, e viro hulk de novo)

[…] talvez meu material (contracultura &/x marxismo) dê ótimos ensaios. dê impulso a minha poesia. e me dê até motivos para viver. mas não dá um romance. (LEMINKI, Paulo. In: LEMINKI, Paulo; BONVICINO, Régis, 2007, p. 100, 131, 148)

Alice Ruiz, no prefácio de Vida, reitera a importância de Trótski para a vida e a poesia de Leminski. Há, segundo Alice Ruiz, uma necessidade do poeta em sublinhar o caráter revolucionário de seus biografados, cada qual em sua esfera – algo que seja capaz de enfatizar a necessidade de ruptura com o sentido que o próprio Leminski escolheu para si mesmo. “Talvez por isso, Trótski encerre essa tetralogia que, mesmo parecendo assistemática à primeira vista, traduz uma lógica coesa, inovadora e extremamente poética, como foi a do autor.” (RUIZ. In: LEMINSKI, 2014b, p. 13). Segundo Alice, foi a partir de Trótski que o poeta pôde escrever sobre a Revolução Russa e sobre a própria ideia de revolução (reverberando a impressão de Pellegrini), e deixa a pergunta: mas porque justamente Trótski?

Seria por sua fecunda habilidade com as palavras, por ser ele o mais intelectual de todos, por seu afastamento do poder, por sua participação na revolução? A soma de tudo isso e algo mais fez com que, apesar de anarquista, o eslavo Leminski escolhesse Trótski. Além da afinidade com o pensamento político e da profunda reflexão ideológica contida nesse trabalho, que Paulo considerava a chave de ouro para sua série de biografias, havia algo mais que o identificava com Trótski: o sentimento do exílio. Trótski exilado da terra pela qual lutou é Moisés impedido de entrar na terra

prometida que ele ajudou a encontrar. (RUIZ, Alice. In: LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 13)

Este sentimento de exílio será tema de nossa discussão no próximo capítulo. Alice prossegue afirmando que era desejo de Leminski que, caso tivesse um terceiro filho, receberia o nome de Leon, em homenagem ao líder bolchevique. A vida presenteou o casal com uma filha, que foi batizada de Estrela – ao ter seu próprio filho, Estrela lhe deu o nome de Leon, dessa vez em homenagem ao pai. Isso porque, de acordo com Alice Ruiz, “vivemos juntos o sonho político representado por Trótski. Sonhamos e experimentamos juntos a revolução de valores da contracultura e, acima de tudo, amamos a poesia.” (Ibid., p. 13).

Em meio ao plano político brasileiro do início dos anos de 1980, as ideias trotskistas, já permeadas pelos escritos do ex-líder soviético durante o exílio, bastante críticos ao socialismo soviético e imbuídos, em parte, de uma autoreflexão e autocrítica, representavam uma alternativa menos radical para o marxismo e para a esquerda, já envolta nas premissas da redemocratização. Trótski exilou-se no México, o que fez com que voltasse seus olhos para a América Latina, fato basilar para que suas ideias penetrassem com bastante vigor em países como Brasil, Chile, Argentina e México. Segundo Ronald H. Chilcote, professor do departamento de economia da Universidade da Califórnia e editor do periódico Latin American Perspectives, no artigo Trotsky e a teoria latino-americana do desenvolvimento, o líder revolucionário desafiou ideias ortodoxas sobre o desenvolvimento na Rússia e na Europa, porém se preocupou também com a América Latina, especialmente após sua chegada ao México, em 1937.

Em uma coletânea de ensaios intitulada Pelos Estados unidos socialistas da América Latina (1961) ele esboçou sua estratégia para o socialismo na América Latina, argumentando que a melhor maneira de lá combater o fascismo seria através da luta contra o imperialismo e da implementação de uma revolução agrária, apontando para o México como um exemplo de país semicolonial capaz de quebrar a dependência servil, dar terras aos camponeses e elevar os índios ao nível mais alto da civilização. A principal tarefa dos países atrasados, segundo ele, é lutar contra o capital estrangeiro e reconhecer que a industrialização depende menos da burguesia do que do proletariado. O papel do Estado é trabalhar com a classe operária para resistir ao imperialismo. O proletariado das zonas atrasadas deve contar com a colaboração do proletariado dos centros metropolitanos e da classe trabalhadora de todo o mundo. […] Ele mergulha em uma breve análise do regime “semifascista” de Getúlio Vargas no Brasil, sugerindo que seu sentimento nacionalista pode servir à luta anti-imperialista. Ele observa o papel dos camponeses na Bolívia e defende a manutenção de suas parcelas