• Nenhum resultado encontrado

IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICT

5.7 O SIGNO SUBVERSOR DE JESUS

Jesus jacobino é o título do oitavo capítulo, o mais estratégico para um dos propósitos explicitados em sua carta de intenções, “o de ler o signo-Jesus como o de um subversor da ordem vigente, negador do elenco dos valores de sua época e proponente de uma utopia”. (Ibid., p. 159). O capítulo tem três epígrafes: “Meu reino não é deste mundo – Jesus”; “A história é um pesadelo do qual quero acordar – James Joyce”; “Eis que o reino de Deus está dentro de vocês – Lucas, 17,21.”. (JESUS; JOYCE; LUCAS apud LEMINSKI, 2014b, p. 216). A inclusão de Joyce já demonstra que estamos diante de um capítulo cujas referências serão bastante surpreendentes. Ao mesmo tempo, as demais epígrafes antecipam um argumento central deste capítulo: a revolução proposta por Jesus mostrava seu lado subversivo ao tornar mais agudas as exigências da fé, ao pregar a interiorização dos ritos, fazendo assim um movimento para dentro de si, ou, como escreveu Leminski: “O dentro e o fora começam a desaparecer: exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito. Jesus está inventando a alma: o supersigno que todos somos ‘dentro’. Essa, talvez, foi a sua revolução, a mais imperceptível de todas.” (LEMINSKI, 2014b, p. 217).

Leminski inicia o primeiro parágrafo com uma pergunta: “Jesus, reformador ou revolucionário?”. (Ibid., p. 216). Durante as seis próximas páginas ele tentará provar que seu biografado era, de fato, um revolucionário. Ele explicita que essas categorias – reformador e revolucionário – são muito modernas para incluir Jesus. No entanto, a doutrina do cristianismo tomou o poder no Império Romano sem disparar uma flecha, nem levantar uma espada – algo inédito nas histórias antiga e moderna das revoluções. Para Leminski, foi a burguesia quem inaugurou essa era revolucionária, começando com a francesa - “que Lênin e Trótski, pais da russa, chamavam A Grande Revolução”. (Ibid., p. 216). Foi durante a breve ditadura dos jacobinos que milhares de cabeças foram cortadas na guilhotina através de condenações sumárias. Os jacobinos, prossegue Leminski, desejavam a pureza do ideal revolucionário, que incluía democratização, republicanismo e secularização.

Robespierre pode parecer o paralelo mais inadequado para Jesus. Nenhum símile entre quem salvou a adúltera de apedrejamento, contra as leis de Moisés, e o advogado que, 1790 anos depois, condenou à morte, implacável, seus próprios companheiros de partido e de militância, com o rosto de pedra de um rei assírio. Uma coisa, porém, Jesus e Robespierre têm em comum. Eles querem o exagero, a pureza de um princípio.

Nisso, são revolucionários. Apenas os métodos diferem.

Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé.

Um dos pontos essenciais de sua doutrina é a interiorização dos ritos. Daí, sua hostilidade constante contra o exibicionismo da piedade dos fariseus.

Jesus os detesta porque mandam tocar trombeta na hora em que vão depositar esmolas no templo, para que todos saibam como eles respeitam a Lei. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 217)

Uma vez mais, Leminski destaca o exagero como uma característica de Jesus, que neste caso faz eco também em Robespierre: ambos desejam agudizar seus princípios, um através da interiorização dos ritos; outro através da guilhotina. No entanto, o biógrafo é claro: o exagero é um elo entre eles pois faz dos dois revolucionários. Vale relembrar: como vimos anteriormente, o exagero é uma característica partilhada pelo próprio Leminski, mas ele vai ainda mais longe: “Jesus ocupa um lugar muito especial na lista dos Cromwells, Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lênins, Trótskis, Maos, Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mihns, Samoras Machel.” (Ibid., p. 217). Dessa forma, ele ombreia uma vez mais dois de seus biografados – Jesus e Trótski – elencando-os como homens que levaram a cabo, cada qual a sua maneira, suas revoluções. Duas modulações distintas para dois revolucionários.

A diferença entre eles se dá nos métodos e objetivos: Trótski esteve a frente de uma revolução ideológica, com implicações sociais, econômicas, administrativas, pedagógicas, bélicas e laicas. No caso de Jesus, que vivia num mundo de máxima intensidade religiosa, em que a religião atravessava todas as esferas da existência, a revolução era espiritual, transformava conceitos e costumes, a moralidade e as crenças, impactando em todo um modo de viver.

Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, desregrado(r) da pregação de Jesus. Nem vamos sublinhar o teor popular de sua doutrina. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 218)

Com letras bastante nítidas em passagens como essa, que se repetirão, Leminski colore a imagem de Jesus como um utopista, mais do que isso, como o criador de uma utopia violenta (contrariando, uma vez mais, Capelli e Vasconcellos). Sendo a utopia a negação da ordem vigente, e carregando consigo todo um imaginário subversivo, Jesus torna-se um radical: um revolucionário radical, um violento subversor do establishment – um revolucionário no sentido proposto por Raymond Williams. Jesus, nesse sentido, não era um revolucionário comum, afinal, como escreveu Leminski, ele não levantou uma espada, não mirou nenhuma flecha – suas armas não eram bélicas, mas líricas; sua violência estava concentrada na palavra, a argamassa das parábolas, ou seja, no poder do signo e suas inúmeras possíveis interpretações. Mesmo a leitura de Jesus como um subversivo, para Leminski, está mediada pelo Jesus poeta – sua poesia guarda e encerra sua utopia, e vice

versa, nelas está o embrião revolucionário. Nada poderia ser mais autobiográfico para um poeta como Leminski do que ler em Jesus, seu biografado, uma utopia lírica, uma revolução desencadeada pela poesia, a palavra como bandeira da subversão. Essa percepção é mais notável no artigo Inutensílio, incluído em Ensaios e Anseios Crípticos, que explicita a visão de Leminski sobre o poder rebelde e utopista da poesia. Neste ensaio reverbera ainda uma espécie distinta e disforme, talvez mais vanguardista e pós-moderna, da interiorização dos ritos proposta por Jesus: nesse caso é a poesia que traz em si o poder de mudar uma pessoa por dentro, ao interiorizar-se e assim promover a subversão de dentro para fora.

A poesia é o princípio do prazer no uso da linguagem. […]. A função da poesia é a função do prazer na vida humana.

Quem quer que a poesia sirva para alguma cosia não ama a poesia. Ama outra coisa. Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucro ideológico.

O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos.

[…] As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias. A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem chamamos poesia, inestimável inutensílio. (LEMINKSI, Paulo, 2012, p. 87)

Não à toa Jesus é um superpoeta para Leminski: utopias são obras de arte; obras de arte são rebeldias, bens absolutos que se manifestam, na linguagem, através da poesia. Leminski considera Jesus como o criador de uma utopia radical, portanto de rebeldias e de poesias também radicais: “O programa de Jesus é uma utopia. Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.” (LEMINSKI, 2014b, p. 221).

Mas como entender uma utopia que parte das palavras para só então, muitos anos depois, instituir-se como uma doutrina religiosa? Roland Barthes, em Roland Barthes por Roland Barthes, traz uma reflexão importante a esse respeito: para ele, a utopia serve, exatamente, para se fazer sentido. “Em face do presente, de meu presente, a utopia é um termo segundo que permite o desencadeamento do signo: o discurso sobre o real se torna possível, saio da afasia na qual me lança o desassossego de tudo o que vai mal em mim, neste mundo que é o meu.” (BARTHES, 2003, p. 89). Leminski deseja ler esse desencadeamento do signo-Jesus que tornou possível sua mensagem utópica vencer os séculos e se assentar como uma verdade para muitos. Além do mais, para Barthes, a utopia é familiar aos escritores

(também aos poetas e superpoetas), pelo fato de que todo escritor é um doador de sentidos, e ele só pode fazê-lo caso haja um paradigma. O próprio texto, ainda segundo Barthes, é uma utopia cuja função semântica é dar sentido à literatura, à arte, à linguagem. Da mesma forma, ao questionamento de Leminski a respeito da doutrina de Jesus não estar alocada entre os socialismos utópicos, Barthes parece oferecer uma resposta.

Os escritos revolucionários representaram sempre pouco e mal a finalidade quotidiana da Revolução, o modo como ela entende que viveremos amanhã, ou porque essa representação corre o risco de edulcorar ou de futilizar a luta presente, ou então porque, mais justamente, a teoria política visa tão somente instaurar a liberdade real da questão humana, sem prefigurar nenhuma de suas respostas. (BARTHES, Roland, 2003, p. 91)

A utopia de Jesus, diferente da dos demais socialismos utópicos, arriscava-se a dizer como seria o amanhã – o Reino de Deus – e trazia consigo, através das parábolas, as respostas para as questões humanas – sua revolução partia de dentro, moldando o ser humano por meio de novos costumes, novas práticas e uma relação diferente com a santidade. Ainda segundo Barthes, a utopia é o tabu da revolução, e o escritor teria a função de transgredi-lo: “só ele poderia arriscar essa representação; como um sacerdote, ele assumiria o discurso escatológico, ele fecharia o círculo ético, respondendo por uma visão final dos valores à escolha revolucionária inicial”. (BARTHES, 2003, p. 91). O teor revolucionário da doutrina de Jesus, em toda sua radicalidade, incorporava a utopia, fazia dela uma sebe sobre a qual se erguer e a prometia a seus seguidores: as palavras de Jesus, como um superpoeta, e sua própria biografia, foram (e ainda são) a razão que faz com que sua utopia seja também seu cerne revolucionário.

Um dos elementos que conferia radicalidade à mensagem utópica de Jesus era a afirmação da santidade da pobreza, da frugalidade. Segundo Leminski, seu biografado era um ebionista – ebio, em hebraico, significa “pobre” - e levava adiante uma tradição modulada muitas vezes na história do cristianismo, “sempre com implicações subversivas e, claro, utópicas: Francisco de Assis67, um de seus momentos mais altos”. (LEMINSKI, 2014b, p.

219). Mas a subversividade mais essencial pode ser lida na grande promessa que Jesus fazia: a vinda de um reino, o Reino de Deus.

Um momento de atenção na palavra “reino”, vocábulo político, com implicações de poder, autoridade e mando. Jesus não inventou a expressão nem o tema. Já está lá em Abdias, o mais antigo dos profetas (século VII a.C.).

O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na

67 Identifico aqui um breve resquício autobiográfico quando lido a luz da dedicatória de jesus a.c.: “Para

crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse o suporte material, socioeconômico- político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder. Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir.

As duas grandes Revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 219)

Nesta passagem, Jesus não é apenas um utopista, mas o conformador de um padrão utópico que seria emprestado, por meio de uma veste ideológica, pelas duas grandes revoluções. E sua mensagem mais subversiva, a vinda do Reino de Deus, representa a autonomia do povo hebreu – ou seja, sua doutrina, sua superpoesia, é também uma mensagem política. “A força política da ideia de Jesus, porém, está no estabelecimento de um ultralimite. Amar os inimigos? Vender tudo e dar aos pobres? Ser ‘prudente como as serpentes e simples como as pombas’?” (LEMINSKI, 2014b, p. 220, 221). O programa de Jesus, segundo Leminski, é rigorosamente impossível de ser realizado, e por isso nenhuma igreja erigida em seu nome conseguiu concretizá-lo.

Para Manoel Ricardo de Lima, em Entre percurso e vanguarda, na ideia do ultralimite está inserida a hipótese de que as parábolas de Jesus podem ser lidas como uma poesia vanguardista, que propõe um salto cultural qualitativo através de uma utopia. Assim como a utopia de Jesus propunha um programa revolucionário, porém impossível, as vanguardas poéticas, particularmente o concretismo, também não lograram perpetuar-se e viram suas proposições diluídas em novas estéticas encabeçadas pelas gerações subsequentes, das quais Leminski fez parte e destacou-se.

É esse ultralimite, esta ideia de restauração da autonomia de um povo, o hebreu, que a escritura/poesia de Jesus pode ser inserida no corpus de uma proposta de vanguarda, de uma poesia que está diretamente vinculada a uma ideia mais geral, a ideia de um projeto evolutivo de cultura. Jesus, para Leminski, é tão poeta quanto Maiakóvski, tão revolucionário quanto Trótski. […] É contra essa ideia depositária de uma poesia estática, de um pensamento que não propõe nada, de um movimento histórico destruidor de seus signos mais importantes, de um desligamento dos propósitos de inovação e de fluxo intenso na relação da poesia (como criação) com a realidade que Paulo Leminski ergue a biografia de Jesus. (LIMA, Manoel Ricardo de, 2002, p. 44)