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IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICT

5.3 PARA ALÉM DA CARTA DE INTENÇÕES

Atentemos mais detalhadamente ao texto biográfico propriamente dito para tentar encontrar estes elementos que correspondam à carta de intenções, e especialmente aqueles que nos dotem de vestígios autobiográficos. O primeiro capítulo, o profeta em sua terra, já indica que se trata de uma biografia pouco ortodoxa. Trata-se de um capítulo curto, de meia página e exatas 190 palavras em que Leminski reproduz, qual uma notícia de jornal, a passagem de Mateus 21:12, quando Jesus expulsa os vendedores do templo.

Jerusalém, urgente — Na tarde de ontem, alguém que atende pelo nome de Jesus invadiu as dependências do Templo, agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia seu ofício.

O lunático, galileu pelo sotaque, entrou, subitamente, chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais destinados ao sacrifício. Na confusão que se seguiu ao incidente, entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas, pombas que voavam, acorreram os guardas, que não conseguiram deitar as mãos no facínora. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 160).

Para além de uma transgressão de gênero literário – incluir uma notícia fictícia numa biografia – este recurso de Leminski aponta diretamente para os propósitos de sua carta de intenções. Logo no início do livro, ele descreve Jesus como um violador da ordem e dos costumes que, no entanto, conta com o apoio popular: “O tal Jesus desapareceu no meio da multidão, que o acoberta porque acredita ver nele o profeta.” (LEMINSKI, 2014b, p. 160). O biógrafo usa dois adjetivos para designar seu biografado durante este capítulo: facínora e lunático. Por fim, reforça sua imagem como a de um confrontador do sistema vigente: “Muito veem nele o Messias. As autoridades estão prontas para fazer frente a qualquer nova alteração da ordem provocada pelo tal Jesus ou por seus seguidores.” (Ibid., p. 160). Nota-se, portanto, que este breve capítulo vai ao encontro de dois elementos importantes do texto biográfico leminskiano: ele hibridiza a narrativa, incluindo o elemento ficcional num modelo jornalístico

e dotando assim o livro de uma carga lúdica; e ao mesmo tempo projeta, logo nos primeiros parágrafos da biografia, a imagem de Jesus tal qual era sua intenção – como um subversor da ordem vigente.

O segundo capítulo, nem só de pão, também traz algumas correspondências com a carta de intenções, além de tratar de um tema muito caro a Leminski e presente em todas as biografias: a linguagem. Ele é introduzido por uma epígrafe – um trecho de Isaías, 1,2 – e trata de dois assuntos principais: o contexto social do Oriente Médio da época e os idiomas que lá se falava (alguns deles seriam, posteriormente, utilizados para a redação da Bíblia).

O Oriente Médio, para Leminski, era o lugar culturalmente mais rico da Antiguidade. Um ponto de cruzamento de impérios, civilizações, comerciantes e principalmente de ideias. Foi lá que os fenícios inventaram o alfabeto a partir de hieróglifos egípcios; na antiga Lídia, hoje Turquia, foi inventada a moeda; e lá também nasceram as três grandes religiões monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo. Tal como procedeu nas demais biografias, e contrariando um pressuposto das biografias tradicionais, que velam por uma tentativa de imparcialidade, Leminski não se furta de emitir opiniões.

Não nos deixemos iludir pelas aparentes diferenças entre essas três confissões religiosas, nem por seus conflitos históricos. Com variantes de detalhes, as três afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo patriarcalista, o moralismo fundado em regras estritas, a tendência ao proselitismo expansionista, a intransigência.

“Não haverá outros deuses diante de ti”, parecem dizer as três afirmando Javé, Jesus e Alá. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 161)

Todas estas religiões são de origem semita, ressalta o biógrafo. Rapidamente, assírios, babilônios e fenícios começaram a fundar cidades e centros urbanos, que se tornaram um nó de convergência comercial; e não só isso: “Mas, também, ideias. Instituições. Conceitos. Mitos. Jesus é parte dessa história. Como se conhece Jesus?”. (LEMINSKI, 2014b, p. 162). Essa é a deixa, a transição, a amarração que Leminski usa para conceber seu salto temático do contexto de criação das civilizações da região para a linguagem, afinal tudo que sabemos sobre Jesus chegou até nós através dos Evangelhos, palavra que Leminski faz questão de traduzir – literalmente “boa mensagem” - e explicar que ele jamais a conheceu, pois vinha da Galileia e era falante do aramaico, dialeto semita originado provavelmente na Babilônia. “Em seu mundo sobrepunham-se três idiomas: o aramaico do povo, o grego das classes cultas das grandes cidades da Ásia e o latim do dominador romano.” (Ibid., p. 162).

Os textos dos Evangelhos são tardios – o Evangelho de João, lembra Leminski, deve ter sido redigido quase cem anos após a morte de Jesus – e existiam em profusão na igreja

primitiva. Cada igreja local deveria ter o seu, mas apenas quatro deles foram canonizados quando da conformação da Igreja Católica Apostólica Romana – os demais foram condenados ou negligenciados, hoje conhecidos como evangelhos apócrifos. “São textos escritos em grego. Não o grego de Platão ou dos grandes escritores de Atenas de quatro séculos antes. É um grego meio popular, conhecido como koinê (=’comum’)”. (Ibid., p. 163). Da mesma forma, nenhum evangelho foi escrito em aramaico, portanto, “Jesus já se nos aparece traduzido.” (Ibid., p. 164). E mais do que isso, assim como Buda e Sócrates, Jesus não escreveu uma linha sequer, tudo que sabemos dele foi redigido por seus seguidores ou seguidores de seus seguidores. O biógrafo também se aventura na interpretação, ainda que panorâmica, de alguns dos evangelhos canônicos.

Ao que tudo indica, o de Marcos talvez seja o mais antigo de todos, seu autor, um judeu convertido, vivendo numa comunidade romanizada, talvez, na própria Roma. Seu approach é o mais popularesco de todos. Em Marcos, Jesus é sobretudo um taumaturgo, um fazedor de milagres, curando a lepra, a febre, a paralisia, a cegueira e expulsando demônios dos possessos.

E a parte propriamente doutrinária, em Marcos (o pensamento, digamos assim, de Jesus) é sempre expressa numa imagética muito especial, ligada ao mundo físico das classes populares da Galileia.

Já em João, são atribuídas a Jesus teorizações teologicamente tão complexas que sempre se suspeitaram, nelas, influências da filosofia grega tardia, desenvolvida nos círculos mais cultos de Alexandria, no Egito, a capital intelectual do Mediterrâneo de então.

Como se vê, estamos lidando com uma documentação heterogênea, advinda de várias fontes, frequentemente contraditórias.

Como achar o verdadeiro Jesus por trás dessa floresta de versões sobre sua pessoa, feitos e ditos? (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 164)

Além disso, os evangelhos são ligados parataticamente pela conjunção “e” (“E Jesus disse”; “E Jesus fez” e etc.) o que, segundo Leminski, indica uma obra aberta, inacabada e disponível para novas inserções, o que fazia sentido na igreja primitiva, que compilava as tradições transmitidas oralmente. De qualquer forma, se for verdade o que está escrito nos evangelhos, Jesus é o personagem sobre o qual mais sabemos em toda a Antiguidade, mais do que Péricles, Sócrates, Alexandre, César, Augusto, Cícero ou Virgílio. (Ibid., p. 165). É importante referendar que este segundo capítulo trabalha como uma introdução aos temas sobre os quais Leminski se debruçará ao longo do livro: o contexto social e político em que Jesus viveu, as traduções dos evangelhos canônicos e apócrifos, e a mensagem deixada por Jesus através destes evangelhos (logrando uma espécie de atualização desse discurso para sua geração).

O terceiro capítulo, a voz gritando no deserto, tem treze páginas e uma epígrafe: “Voz clamando no deserto: Preparar a via do Senhor: Retas fazer suas sendas. ISAÍAS, 40,3 E

MATEUS, 3,3” (ISAÍAS; MATEUS apud LEMINSKI, 2014b, p. 166). Através de uma análise dos idiomas hebraico, aramaico e grego, Leminski se debaterá sobre dois temas: o potencial poético de Jesus e seus seguidores, bem como as origens e diferenças entre catolicismo e judaísmo (o que servirá, também, como uma análise histórica do contexto social e político do Oriente Médio antes e durante a vida de seu biografado).

As primeiras discussões levantadas por Leminski já trazem consigo duas de suas mais notórias paixões, a tradução e o estudo dos idiomas: qual seria a origem da palavra “profeta” e este seria, por acaso, o termo certo para denominar Jesus? “Foram os profetas que inventaram o futuro, assim como os poetas inventarão o presente e os homens de ação inventam o passado sem cessar.” (LEMINSKI, 2014b, p. 166). A palavra “profeta” é de origem grega e, segundo Leminski, significa “o que fala para frente”, em outros termos, aquele que adivinha o futuro. Ele, porém, enxerga em outra palavra, esta de origem hebraica, uma denominação mais assertiva para seu biografado: “nabi”. Para Leminski, um “nabi” era mais do que um adivinho do futuro, ele era uma espécie de “louco de Deus” e guardava correspondências com os conceitos árabes de iman e mahdi – indivíduos possuídos e enviados por Alá para purificar ou restaurar a pureza da fé. “Para restaurar a pureza das origens. Para exagerar.” (Ibid., p. 166).

Não é de admirar que, entre os “pro-fetas”, estejam os maiores poetas dessa literatura hebraica que o Ocidente chama de Antigo Testamento. A começar por esse extraordinário Isaías, que Jesus, superpoeta, gostava de citar.

Para Isaías, o exercício da profecia, como entre os antigos hebreus, era singularmente facilitado por uma característica da língua hebraica, onde não há tempos. Mas modos.

Idioma flexional, como o grego e o latim, o hebraico tem uma forma de verbo que pode significar, ao mesmo tempo, pretérito e futuro. A palavra amarti, em hebraico, pode significar tanto “eu disse” como “eu direi”. Imagine as possibilidades de ambiguidades proféticas das hazon (visões), que se expressavam numa língua na qual você não sabe se está falando de feitos passados ou eventos por ocorrer. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 167)

Tal qual havia proposto em sua carta de intenções, Leminski qualifica Jesus não apenas como um poeta, mas como um superpoeta59. É possível traçar um paralelo entre o

superpoeta de Leminski e outro super bastante relevante em sua vida e obra, Caetano Veloso enquanto superastro, artigo de Silviano Santiago que compõe um capítulo do livro Uma literatura nos trópicos. Santiago analisa o que fez com que o compositor baiano, para além de 59 Antes de denominá-lo como um superpoeta, Leminski o qualificou como um visionário, qualificação que se parelha com a imagem de poeta que se tinha no simbolismo inscrito em Cruz e Sousa – o negro branco e que Leminski forja, pouco a pouco, para si mesmo, ao distanciar-se tanto dos concretistas quanto da tradição cabralina, crente no trabalho. É possível que, dessa maneira, para além de uma autobiografia alinhavada nas entrelinhas da tetralogia, o poeta esteja cunhando uma autobiografia intelectual, acompanhando-se de seus referenciais e apoiando-se neles para iluminar suas considerações a respeito da poesia, do fazer poético e da própria imagem de poeta.

seu talento artístico incontestável, se tornasse um astro de tamanho vulto na mídia e na cultura nacional. “Tanto na rua como no palco o superastro é um elemento catalisador: é ele o significante que indica, dentro do grupo social de que se aproxima, que vai começar o espetáculo, que chegou a hora do carnaval.” (SANTIAGO, 2000, p. 149). Difícil distinguir o conteúdo deste significado, aponta Santiago, pois ele é vário, distinto e polissêmico: “É deus, é artista, é pessoa, é superior, é diferente, é semelhante. Tudo ao mesmo tempo.” (Ibid., p. 150). Caetano é, assim, um elemento, um signo emissor, tal qual o signo-Jesus, emissor de significados polissêmicos há mais de dois mil anos. E o que seria Caetano? Para Leminski, no ensaio O que é que Caetano tem, incluído em Ensaios e Anseios Crípticos, “Caetano é um signo. Cae é apenas um si.” (LEMINSKI, 2012, P. 136). Ele, Leminski, um “leitor” da obra completa de Caetano, foi assim influenciado: “A influência nefasta da lógica dos textos de Caetano corrompe violentamente minha proverbial clareza. Quem mandou ler no original?”. (Ibid., p. 137). Ao mesmo tempo, ainda segundo Leminski, “Ser influenciado por certas pessoas é uma grandeza. Não sei o que é que esse pessoal todo vê em Caetano. Se eu soubesse, eu saberia muito sobre a psicologia de um povo constituído por três raças tristes. Os sambistas, os contistas e os concretistas.” (Ibid., p. 136). Leminski deseja “ler” o signo-jesus e leu a obra completa de Caetano; Jesus e Caetano, dois signos60, duas grandes influências para

Leminski, dois artistas, dois super. No mesmo artigo, Silviano Santiago escreve: “O artista desdobra-se em criador e criatura. Deixando aquele na penumbra da enunciação, exibe-se a si mesmo, criatura, artifício, arte, como enunciado. Ler a criatura é ler o artista. Ler é penetrar no espaço das intenções oferecidas e das proposições camufladas.” (SANTIAGO, 2000, p. 159). Santiago se referia às seis categorias com que Caetano trabalha – corpo, voz, roupa, letra, dança e música – mas é possível aproximar estas palavras das leituras que Leminski faz destes dois super, deste dois signos emissores que, através da poesia, tentam recuperar a vida e estão ambos, em maior ou menor medida, emitindo novas polissemias através de Vida.

Parágrafos adiante, ele afirma que Isaías deveria ser listado entre os grandes poetas da história, ao lado de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Bashô e Goethe. E vai mais além, elencando e qualificando outros importantes “profetas-poetas” - Jeremias, Ezequiel, Jonas – além dos textos do velho testamento atribuídos a dezessete profetas, os quais “brilham em poesia”. (LEMINSKI, 2014b, p. 167, 168). Além de arrolar um de seus biografados, Bashô, 60 Reverberando aqui Décio Pignatari, um dos constituidores das “três raças tristes”, o concretismo, que escreveu que “o signo é contra a vida, a arte pretende ser um signo de recuperação da vida, vida, memória de carne.” (PIGNATARI, Décio, 2004, p. 13). E lembrando que Leminski queria usar esta frase de Décio Pignatari como epígrafe de uma revista, ou melhor, de uma “IMPrevista de vulgarda”, a vanguarda vulgar, que nunca chegou a ser publicada, mas foi conceituada em 1978 e se chamaria Sinais de Vida. (LEMINSKI; BONVICINO, 2007, p. 88, 89).

amarrando mais uma vez as biografias, Leminski reflete-se em seu personagem: ele também é um poeta e um subversor da ordem vigente (reverberando aqui seu vanguardismo estético e extra-estético, e uma expressão do último, a contracultura). O biógrafo, dessa maneira, ressalta as características de seu biografado que se aproximam de suas próprias características, inscrevendo-se sutilmente no texto biográfico. Acredito que a faceta de Jesus qual um superpoeta articula-se especialmente com o polo extra-estético – não era o confronto com padrões artísticos que o faz um superpoeta aos olhos de Leminski, e sim seu comportamento desviante numa dimensão existencial, o poder de sua mensagem poética de modificar profundamente relações humanas, comportamentos e estruturas sociais.

Há semelhanças, prossegue Leminski no capítulo em questão, entre a história de Jesus narrada nos evangelhos canônicos com outras histórias precedentes: a de Elias (que como Jesus era taumaturgo, ressuscitou um morto, foi perseguido pelo rei e aparece em diversas partes da Bíblia, inclusive no capítulo 17 do evangelho de Mateus numa aparição para o próprio Jesus, ao lado de Moisés), Eliseu (encontrado por Elias lavrando seus bois e por ele consagrado profeta, tal qual João Batista fez com Jesus), e o Mestre da Justiça dos essênios (que salvaria o povo e tal qual Jesus foi perseguido e sacrificado pelas autoridades de Jerusalém – e sobre o qual o pouco que se sabe está no que resta dos Manuscritos do Mar Morto).

João Batista batizou Jesus – e Leminski lembra que a palavra “batismo”, de origem grega, significa apenas “banho” - um ritual de lavagem espiritual muito utilizado em inúmeras religiões, que recupera o caráter sacro das águas. Mas há, na relação entre João Batista e Jesus, um elemento a mais: uma espécie de tutelagem que culmina na passagem de uma espécie de autoridade espiritual de João para Jesus.

Em Qumran, os arqueólogos descobriram a piscina que servia para as abluções e lustrações rituais: o rito do batismo é, com certeza, de extração essênia. O que havia de essênio em João e em Jesus, fica difícil de analisar dois mil anos depois.

O que não se pode duvidar é que eram homens do seu tempo, atravessados por ideias e conceitos que circulavam no meio em que viveram.

Batizado por João, num episódio que a lenda evangélica cumulou de prodígios (fogo sobre a água, descida do Espírito Santo), Jesus começa sua missão repetindo João. Jesus. João. João. João.

Mateus reporta o apelo inicial de João: “façam penitência, aproximou-se o Reino de Deus”. Pois é com essa mesma frase que Jesus começa sua atuação. O processo lembra muito a passagem da autoridade nos mosteiros zen, do Extremo Oriente, de mestre a mestre, registrado num livro chamado A transmissão da lâmpada.

Complexa a luz dessa lâmpada que João passa a Jesus. Mas, ao mesmo tempo, muito simples.

Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moisés. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 174)

Existem dois pontos importantes nessa passagem: a reaparição d’A transmissão da lâmpada e o reforço, uma vez mais, do exagero como um aspecto necessário e positivo de um Jesus nabi. A transmissão da lâmpada aparece na biografia de Bashô, quando Leminski relata a sucessão de patriarcas no zen hindu. Como vimos na introdução deste trabalho, a mesma obra é citada pela primeira vez numa carta enviada por Leminski a Régis Bonvicino em 1977: ele relatava a sensação de que, naquela noite, na casa de Antonio Risério, Décio Pignatari, um dos mestres criadores do concretismo, estava transmitindo a eles a responsabilidade de dar os próximos passos na vanguarda, estava fazendo “a transmissão da lâmpada”. Nesta alusão, os mestres – João Batista e Décio Pignatari – transmitem aos discípulos – Jesus e Leminski – sua autoridade, sua “luz”, e confiam a eles a continuidade de uma tradição. Dessa forma, Leminski mais uma vez avizinha sua autoimagem da imagem de seu biografado, ambos discípulos que recebem a lâmpada e têm a dura incumbência de carregá-la.

O segundo aspecto que destaco é a ênfase dada e reiterada por Leminski sobre uma caraterística de Jesus: o exagero. Os iman e mahdi – que foram enviados por Alá “para restaurar a pureza das origens. Para exagerar.” - são os correspondentes árabes dos “nabi”, e Jesus, para Leminski, não era um profeta, mas um “nabi”, que veio para exagerar a pureza da doutrina de Moisés: “Nem só nos textos, porém, se revela a originalidade dos nabi. Sua vida, também, sempre trouxe o selo da estranheza e do exagero. Do excesso, da excentricidade e do milagre. Jesus foi um nabi. Antes dele, deve ter havido milhares.” (LEMINSKI, 2014b, p. 170).

O exagero, o excesso, para Leminski, era um elemento essencial para a criação artística, especialmente para a poesia, e sendo Jesus um superpoeta, não poderia faltar-lhe tal elemento. Assim deixou claro no artigo Sem sexo, neca de criação (sobre o qual nos debateremos mais detalhadamente no capítulo relativo à biografia de Trótski), em que trata do tema da parca produção cultural de sua cidade, Curitiba, no cenário nacional.

Fazer economia’ é amealhar, reter, poupar. Assim se chega a uma ideologia da poupança: guardar é superior a usufruir. Inteligente é o poupar, não o desfrutar. Segurar, não soltar. Freudianamente, Curitiba é a retenção das fezes. Nosso pecado é a avareza. Ora, criar é esbanjar. Só por excessos se cria. Por exuberância. Os hindus acreditam que os deuses criam este mundo para nossa humana e terrestre criatividade. Só por excessos se cria. Por uma exuberância. […] Em cultura, Curitiba não exibe sinais fortes, sinais transformadores, extremos, exageros. Curitiba guarda-se. Guarda a sensualidade, a sexualidade, o lúdico, só gastamos com parcimônia,

moderação, cálculo. No Juízo, responderemos por cainhos. (LEMINSKI, Paulo, 2012, p. 113, 114)

Há ainda um elemento subjetivo e personalista que aglutina o exagero, o excesso, na persona de Leminski: ele era exagerado nos gestos, nas conversas intermináveis (algumas delas quase monólogos), excessivo na extroversão, na produção artística e no consumo de drogas, especialmente do álcool – em suma, era excessivo na vida. O excesso, o exagero, a exuberância era uma característica pessoal de Leminski, que ele espelha e ressalta em Jesus, seu biografado. Esse exagero na vida e na arte é, segundo Elisa Helena Tonon, no artigo Leminski em jogo: nomeações e deslocamentos, o motivo pelo qual sempre que Leminski é referenciado, essa referencia é feita com exagero: José Miguel Wisnik, em nota sobre leminski cancionista, incluído em Toda Poesia, o denomina como “paroquiano cósmico” e como “samurai-malandro, o sacador-fazedor que estiliza a instantaneidade tendo como