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4 BASHÔ O JAPÃO EM MIM

4.3 O VAGRANT E O VAGABUNDO

Após a morte de seu senhor, o barão Todô Shinshirô, em 1667, Bashô se transforma num rônin e decide entrar para o funcionalismo público, tornando-se Superintendente das Águas, cargo que exerceu por pouco tempo: “Logo está Bashô tentando sobreviver como professor de poesia. Isto é: instrutor de haikai.” (LEMINSKI, 2014b, p. 91). Este será o destino de seus últimos vinte e sete anos de vida, em que viajaria a pé, sustentado por discípulos, amigos e desconhecidos.

Com a inclusão do trecho de Sendas de Ôku, somado aos primeiros parágrafos deste capítulo inicial, Leminski passa a colorir sua imagem de Bashô: um homem que largou tudo para viajar a pé (como um atleta) e em suas andanças ensinar haicai (como um idealista), estudar e produzir poesia (como um artista); um andarilho que carecia integralmente da ajuda de outros para sobreviver; um poeta que apostou suas fichas num estilo de poesia popular sem grande prestígio literário na época; alguém que escolheu viver à margem da sociedade e confrontá-la a sua maneira. Retornemos, com isso, às definições de Raymond Williams sobre os modos de não-conformidade dos indivíduos em relação às sociedades, sobre aqueles que por desejo ou por alguma necessidade da vida posicionaram-se em ordem de contrariedade, ativa ou passiva, para com o sistema ou as regras sociais. Dentre o rol dos inconformados, segundo Williams no já referido artigo Individuals and Societies, incluído no livro The Long Revolution, estão os “vagrants”, que em tradução livre correspondem aos andarilhos, mendigos ou, em linhas bastante generalistas, vagabundos. Para Williams, estes “vagrants”, desejam traçar rumo próprio, pois não encontram na sociedade, mas sim em si mesmos, algum sentido de existência. Ao mesmo tempo, não rejeitam radicalmente a sociedade, como os rebeldes ou os exilados, tampouco a aceitam de bom grado como os demais membros, mas enxergam nela um conjunto sem sentido de regras, das quais desejam evadir.

For the vagrant has gone so far that he cannot even acknowledge society, even to oppose it. The events that others interpret as 'society ' are to him like such natural events as storm or sun; the farthest principle he can see is one of bad luck or good luck, by which he stumbles on money or warmth, endures until he can move away from constraint and cold. These are, moreover, not incidents on a journey, for he is not going anywhere, in the sense of having a

particular direction; his life is just happening to be passing this way. (WILLIAMS, Raymond, 1965, p. 109)

Williams faz um alerta: sua ideia de “vagrant” não pode ser reduzida a um conceito deturpado de “mendigo” ou “vagabundo”, conceito este que os aloca na mesma margem da sociedade onde se encontram os criminosos. O “vagrant” de Williams vaga como um ser apartado da sociedade, indiferente às construções de significado mais corriqueiras e refinadas dos demais membros, e indiferente também às proposições de enfrentamento dos demais inconformados, como os rebeldes e os revolucionários. Conformidade ou revolta, servidão ou exílio, sujeição ou insurreição – nada disso importa ao “vagrant”, ele faz o que deseja, como a personificação do império individualista. Ele não luta por mudanças sociais, porém, da mesma forma, serve a qualquer mestre por interesses imediatos ou por conveniência, não por princípio. “The one thing the vagrant is certain of is that all the others who are not vagrants are fools, killing themselves for meaningless meanings, pretending to meanings whereas the only thing that matters is oneself”. (WILLIAMS, 1965, p. 110). Segundo Williams, para o “vagrant”, a sociedade é um nome usado por outras pessoas com as quais cruzará em sua jornada, pessoas essas a quem recorrerá quando a oportunidade aparecer.

Bashô era certamente um tipo específico de andarilho: vagava em busca de uma iluminação poética e apesar de migrar geralmente sozinho, deixava para trás discípulos a quem sempre poderia voltar. Diferente do “vagrant” de Williams – que fará tudo que for necessário para sobreviver e que não vê nesta atividade de sobrevivência nenhum significado pessoal ou social, apenas um mecanismo para continuar respirando e caminhando – Bashô possuía propósitos bastante nobres, como o ensino do haicai e o aprendizado do zen. Ou seja, sua jornada era repleta de significado. Não era ele, portanto, um andarilho típico, mas um tipo idiossincrático de andarilho. Sua alteridade e a dependência que tinha da ajuda dos outros estava amparada não apenas em desconhecidos, mas também em pessoas com as quais tinha uma relação profundamente afetiva, a quem gostaria de cativar, deixar uma marca, um ensinamento, em outras palavras, deixar um traço de significado. Por outro lado, guarda com o “vagrant” de Williams as semelhanças essenciais: o vagar imparável, o sentimento de não- conformidade com as regras sociais, o desapego aos bens materiais, a sensação de que a sociedade carece de sentido (e que por isso empilha todos que pode sobre significados fúteis) e principalmente a negação da relação entre indivíduos e entre indivíduo e sociedade da forma como a própria sociedade a impõe e a encarna.

Assim como seu biografado, Leminski direcionou seu horizonte para a poesia, organizando a vida e os afazeres de modo a liberar o máximo de tempo possível para se dedicar a ela, como deixou claro no evento Um escritor na biblioteca, em 24 de junho de 1985, quando foi convidado a palestrar e responder perguntas de estudantes numa sabatina coordenada por Reinoldo Atem e Marise Manoel.

Disciplina profissional. Eu não sou poeta de fim de semana, nem faço por hobby, como quem faz poesia quando vai para a praia. Faço poesia 24 horas por dia. Montei a minha vida de tal forma que a produção textual me permite pagar o aluguel no fim do mês, a escola das minhas filhas, o meu cigarro, o vinho. Para mim, não há hora, de preferência 24 horas por dia, isto é, qualquer hora. […] Antigamente, eu trabalhava mais no sentido de adquirir aquela perícia artesanal que todo mundo tem que ter. Agora, acho que as coisas estão mais automatizadas em mim. Quer dizer, com dois toques eu estou chutando em gol. (LEMINSKI, Paulo, 1985, p. 13)

Em muitas das cartas que Leminski enviou a Régis Bonvicino, ou em trechos delas – afinal também nas missivas Leminski era dispersivo, tornando-as um caleidoscópio de diário, poemas, rabiscos, desenhos, planos e pensamentos - trazem temas como o zen e o haicai, como atesta Bonvicino na introdução de Envie meu dicionário, ao listar os temas que ocupam o espaço das cartas, dentre os quais “a influência de um certo orientalismo na vida e na poesia de Leminski – orientalismo vindo de seus anos hippies que foram, em linguagem, encontrar expressão na sua paixão pelo haicai.” (BONVICINO. In: LEMINSKI; BONVICINO, 2007, p. 23). É interessante notar como Bonvicino identifica na fase hippie de Leminski – portanto em sua fase de formação contracultural – a origem de seu orientalismo. Isso não apenas vai ao encontro de nosso breve percurso biográfico anterior – que conformava num mesmo período o Grupo Áporo e a prática do judô – como também faz eco à descrição de “samurai” feita por Leminski: um idealista, um artista, um atleta. Há um fio que ata, não apenas cronologicamente, sua contracultura e seu orientalismo (usando aqui a expressão de Bonvicino). Antonio Risério, em Uma palestra sobre Leminski (1989), também constata essa vinculação. Antes, porém, define o que entende por contracultura no contexto dos anos 1980 no Brasil.

A contracultura pode ser definida como uma movimentação esteticopsicossocial. Uma viagem de natureza neo-romântica, trazendo à crista das nuvens coisas como as drogas alucinógenas, o pacifismo, a ecologia, o orientalismo, o movimento feminista, o pansexualismo etc. Leminski surfou nessa maré. Mas, antes de falar aqui do seu gosto pela maconha, de suas viagens de ácido lisérgico (LSD), vou destacar dois temas: o orientalismo e a ecologia. (RISERIO, Antonio. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano, 2005, p.366)

Há uma importância crucial, para Risério, no entendimento da contracultura em Leminski – ela é uma expressão maior de seu vanguardismo extra-estético, ela é o desvio que sai da pista da obra, “do pensamento, e vai se inscrever na vida e no corpo do indivíduo. O comportamento desviante assume, aqui, dimensão existencial. É o desvio do sujeito, não em relação ao cânone estético, mas à norma social”. (RISÉRIO. In: DICK; CALIXTO, 2005, p. 365). A contracultura, e seu reflexo nítido, o orientalismo, perpassam sua obra e vão ter, na sua vida, uma dimensão de enfrentamento das regras sociais, uma dimensão rebelde, uma expressão de inconformidade. É possível que ecoe aqui o vagrant de Williams em sua acepção mais geral, vagabundo, ao mesmo tempo, este vagrant se faz presente num ascetismo que destaca aspectos de um polo oposto e mais desalumiado de Leminski, o do escritor concentrado, compenetrado e silencioso, cuja manifestação maior talvez acontecesse em momentos de solidão, da página em branco aguardando as ideias ganharem tinta e a tinta ganhar o papel, em momentos de leitura imersiva, ainda carentes de determinação.

O próprio Leminski deu sua definição de “vagabundo” no ensaio Sem sexo, neca de criação (sobre o qual voltaremos a tratar mais detidamente no capítulo 7), incluído no livro Ensaios e Anseios Crípticos. Neste ensaio, Leminski trata da “mística imigrante do trabalho”, aquela que direciona moralmente a sociedade curitibana, qual uma regra social, em direção à produtividade, à contenção de despesas e à poupança das economias ganhas, em direção ao trabalho. Ao mesmo tempo, essa mística coloca a sociedade em rota de colisão com alguns de seus membros mais inconformados.

Esse trabalho repressor dos instintos mais básicos expressa-se, por exemplo, no insulto mais típico entre nós. O de “vagabundo”. Nenhuma monstruosidade se compara à de ser um vagabundo, isto é, alguém refratário às delícias da ordem e da disciplina necessárias para o trabalho. Quando o imigrante chegou aqui, ele só tinha um meio de se dar bem; trabalhando, evidentemente. E, trabalhando, o imigrante elaborou para si, seus filhos e netos uma ideologia centrada no trabalho. (LEMINSKI, Paulo, 2012, p. 112)

E quem seria um vagabundo típico? O poeta, é claro, quem não produz nada além de linguagem, ao passo que qualquer imigrante está careca de saber que versos não enchem a barriga de ninguém. É importante ressaltar que neste artigo, Leminski tenta entender os motivos que levam Curitiba a não ser culturalmente expressiva no cenário nacional, a não conseguir criar mesmo sendo uma cidade com níveis elevados de prosperidade econômica – a “mística imigrante do trabalho”, para o poeta, é a forma que a sociedade encontrou para tolher a criatividade e punir aqueles que ousem ser criativos em arte e cultura. Fazer poesia é, dessa forma, um ato de rebeldia por si só. Esta mística imigrante do trabalho é, para Leminski, a

encarnação curitibana do que há de pior no capitalismo da pós-revolução industrial: “Como tal, é inimiga mortal das liberdades do homem, entre as quais está a de produzir essas liberdades, que são produtos culturais, poemas, visões, músicas... A preguiça é que é de vanguarda.” (LEMINSKI, 2012, p. 118).

Retomando as palavras de Antonio Risério, a preguiça de Leminski, uma exaltação do vagabundo como um inconformado com as regras sociais, particularmente com a mística imigrante do trabalho, é uma parte imprescindível de sua vanguarda extra-estética, cuja expressão maior está na contracultura, formada em grande medida por seu orientalismo. É no campo contracultural, para Risério, que vida e obra de Leminski deixam flagrar seu vínculo, e mais do que isso: a impossibilidade de sua desvinculação.

É evidente que há, em seu orientalismo, a marca do “espirit de géométrie” do Concretismo, rebrilhando com nitidez mondrianesca no “plano piloto para a poesia concreta”. E é evidente que há também o influxo contracultural, mistura de “satori” e LSD, rock e zen, Eros e koan.

(RISERIO, Antonio. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano, 2005, p.366)

Nas décadas de 60, 70 e 80 havia, evidentemente, uma relação bastante direta entre o descobrimento da cultura e tradições do Oriente e a contracultura, que tinha como premissa justamente levar a cabo esse descobrimento. Citando Ernest Fenollosa45 – para quem, na

entrada no século XX, apareceram para os olhos ocidentais outras “culturas universais”, dentre as quais a chinesa, sob a qual tratou mais detalhadamente – Antonio Risério explica como essa relação se desencadeou.

A contracultura nada diz de diferente de seu orientalismo. A diferença é que, enquanto Fenollosa “diz” que o Ocidente precisa incorporar ideias orientais, a contracultura pretende incorporar de fato, na prática da vida, elementos e formas culturais nascidos no Oriente, das túnicas à ioga, passando pela adoção do “zazen” e da macrobiótica. Este é um aspecto básico, por mais ingênua que possa ter sido nossa revivescência de condutas e posturas, ou de ritos e mitos, não ocidentais. Luiz Carlos Maciel viveu numa comunidade, Rogério Duarte foi monge budista, Roberto Pinho montou a “refazenda” Guariroba (prevendo desde a implantação de uma economia de subsistência até contatos com extraterrestres) e assim por diante. Tentava-se encarnar no cotidiano o que se pensava das coisas e do mundo. (RISERIO, Antonio. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano, 2005, p. 366)

É a partir deste contexto que Risério lê o orientalismo e a contracultura em Leminski, como um sujeito inserido e interessado nestas novas práticas e ideias, e cercado de outras 45 Não é a toa que Risério cita Fenollosa. Para ele, o procedimento composicional dos concretistas, que tanto influenciaram Leminski, era algo radicalmente novo, fundado em Fenollosa e Ezra Pound. Risério se refere, nesse ponto, ao “método ideogrâmico”, derivado da poesia oriental, uma peça-chave na estética concretista. A forma como esta vanguarda brasileira se valeu do ideograma, para Risério, era diferente da forma como outras vanguardas europeias do século XX o fizeram, especialmente depois que Apollinaire definiu “calligrame” como “poema ideográfico”. (RISÉRIO. In: DICK; CALIXTO, 2005, p. 366).

pessoas, que admirava e convivia, também inseridas e interessadas. É nítido demais, para Risério, o amor de Leminski pela cultura japonesa, pelo zen budismo e pela poesia de Bashô. No entanto, é menos importante mapear o influxo poético do texto criativo do andarilho japonês no biógrafo curitibano, e mais importante notar como o último “via o haicai com olhos experimentalistas: sintaxe de montagem, visualidade escrita, harmonias fônicas, jogos de imagem, signos que se espelham e se espalham. Mas via também com os olhos de andarilho contracultural.” (RISÉRIO. In: DICK; CALIXTO, 2005, p. 369). Para exemplificar como isso se dava, Risério conta de uma tradução que Leminski fez de um texto nipônico: “traduziu ‘tabi’ (viagem) por ‘trip’, expressão que empregávamos para nossas decolagens canábicas e lisérgicas. Tabi/trip – transavam aí o Concretismo, com sua tese da tradução criativa, e a contracultura, com suas ‘drogas para a expansão da consciência’”. (Ibid., p. 369). Como Bashô, a poesia era também para Leminski, ao mesmo tempo, um norte e um caminho – uma viagem, uma tabi/trip – que ele trilhava vagando de livro em livro, de referência em referência e de bar em bar. Não era um andarilho como Bashô, mas um andarilho contracultural, assim que vagueava muito por Curitiba – não tinha discípulos como o poeta japonês, mas colecionava amigos, colegas e admiradores. Em abril de 2016, como já referi neste trabalho, produzi uma reportagem para a revista TRIP, intitulada O guru polaco, em que abordei esta característica de Leminski: ter atrás de si uma horda de admiradores, qual um guru. Entrevistei alguns familiares e amigos, entre eles o cancionista Oswaldo Rios, que conheceu o poeta em meados dos anos de 1980, quando tinha pouco mais de 20 anos. Sua declaração foi esclarecedora: “Ele era um mito pra mim, tinha esse negócio de ser guru e ao mesmo tempo ser muito acessível, o que era maravilhoso, porque eu sabia que uma das minhas grandes inspirações estava ali, nos mesmos bares que eu”. (RIOS apud BELLÉ, abr. 2016, Revista Trip. Ed. 253, p. 75). O poeta Roberto Prado conheceu Leminski quando ainda era adolescente, com 17 anos. Ele e o irmão Marcos, na época um ano mais moço, liam assiduamente os livros de Leminski e o viam nos bares, até que um dia resolveram se aproximar.

Era sensacional ter alguém que te desafiava e te incentivava como ele. Eu ficava instigado a escrever porque sabia que ele iria entender a graça, ou a complexidade, ou a novidade, e iria dar um feedback interessante, uma leitura comprometida, mesmo que fosse uma crítica. […] Ele era contra a caretice e ao mesmo tempo contra a interferência de um partido ou ideologia na arte, isso inspirou muita gente a produzir uma arte mais autônoma, gente que como eu tinha o Leminski realmente como um guru. (PRADO, Roberto apud BELLÉ JUNIOR, Valcir, abr. 2016, Revista Trip, ed. 253, p. 75)

Para a mesma reportagem, entrevistei a filha do poeta, Áurea Leminski, que relatou uma história curiosa, que vai ao encontro do que dissertamos sobre a contracultura de Leminski ser parte de seu vanguardismo extra-estético. Segundo Áurea, seu pai estava sempre atento às novidades dos jovens, tentando permanecer contemporâneo das contraculturas que iam nascendo quando ele já era um homem de meia idade. Ela tinha cerca de 16 anos quando começou a namorar um rapaz punk, que vivia paramentado com roupas de couro rebitadas. De acordo com Áurea, seu pai logo notou um frescor naquela atitude e passou a investigar aquele novo universo. Chegou ao ponto de assistir seguidamente o filme Sid & Nancy e não admitia que ninguém tirasse os discos do Sex Pistols da vitrola. Pouco depois, começou a vestir-se como punk e a usar uma pulseira de tachinha. Certo dia, ele pediu ao namorado da filha para que lhe emprestasse a jaqueta de couro com rebites, e passou a usá-la frequentemente – chegou vesti-la para uma entrevista ao Jornal Hoje, da Rede Globo. (BELLÉ, abr. 2016, Revista Trip. Ed. 253, p. 72). Na mesma entrevista, Áurea contou sobre o convívio dos pais com os amigos e artistas, exaltando o caminho contracultural que escolheram.

Meus pais eram meio hippies e adeptos da contracultura. A quebra de regras e tradições era uma ordem, e não os bons costumes. As pessoas se sentiam a vontade para chegar em nossa casa sem avisar ou mesmo sem serem convidadas e sabiam que seriam bem recebidas”. […]. [A casa] Estava sempre lotada de amigos dos meus pais. Nos finais de semana, as festas chegavam a durar 24 horas. As pessoas iam chegando e cada um trazia comes e bebes, ficavam em torno das rodas de violão. Foi na primeira casa do Pilarzinho que Gal e Caetano apareceram um dia de repente, saltaram de um táxi e bateram na porta perguntando se por acaso naquele endereço morava um tal Paulo Leminski. (LEMINSKI, Áurea apud BELLÉ JUNIOR, Valcir, abr. 2016, Revista Trip, ed. 253, p. 72)

Apesar da casa estar sempre cheia, e a exemplo de seu biografado e do vagrant de Williams, Leminski e família viviam de forma frugal, com poucos bens materiais (com exceção dos livros, que ele empilhava desordenadamente pela casa). Domingos Pellegrini, na biografia Minhas lembranças de Leminski, atesta esta frugalidade recorrente nos lares do poeta nas inúmeras vezes em que lá esteve.

Pé Vermelho aparece na casa do Pilarzinho, a primeira, com sótão. Sílvio Back está lá e, na sala apertada onde falta conforto embora abundem almofadas, a conversa rola pela tarde entre cervejas e vodcas. Para tira- gosto, apenas umas bolachas muchibas. Sílvio se vai, Pé Vermelho fica, convidado para um jantar parco, que depois de várias visitas descobrirá ser regra monástica da casa, ou, conforme Leminski num poema, “esta sopa rala que mal dá para dois”. Depois da janta, o anfitrião oferece pouso:

Pellegrini fez uma observação semelhante quando visitou a segunda casa, também no bairro do Pilarzinho.

Na segunda casa no Pilarzinho, voltam a se encontrar várias vezes, e ali Pé Vermelho vê que o casal Alice-Paulo pratica uma mágica e simples hospitalidade.

Pouco têm eles a oferecer. A opção de Leminski pela missão artística implica uma pobreza e despojamento que se estendem ao ambiente. O conforto na sala continua dependendo de almofadas. O pó se acumula, como só o pó sabe fazer, democraticamente por todo canto. A quem ligar avisando que irá visitá-los, Leminski pedirá para trazer bebida. Quem já conhece o esquema da casa, leva também comida. Mas sempre encontrará o casal sorrindo, a porta da sala aberta para um deque de ripinhas treliçadas onde, nos dias nublados, ele senta na posição de lótus para ler poemas para os visitantes, ou simplesmente fumar falando sobre o que lhe vier à cabeça. (PELLEGRINI, Domingos, 2014, p. 57)

A frugalidade das casas de Leminski e Alice, bem como os hábitos desleixados do poeta, foram um dos principais pontos de discórdia entre Pellegrini e as herdeiras de Leminski – Alice Ruiz e as filhas Áurea e Estrela Leminski. A publicação de Minhas lembranças de Leminski46, escrito em 2013, foi proibida por elas. Como resposta, Pellegrini publicou-o na