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3 LEMINSKI – O BRANCO NEGRO

3.4 OUTRA COLAGEM

No nono capítulo, significado do símbolo, Leminski vale-se do mesmo procedimento de reciclagem e colagem feito em sem(zala): transcreve, desta vez com ajustes mais finos, um artigo homônimo publicado anteriormente e também incluído em Ensaios e Anseios Crípticos. O artigo original tem três partes: uma introdução e os intertítulos Ícone: antes de 34 Um aspecto interessante deste eco aqui é a forma como Leminski tentar articular, por meio da subjetividade,

tudo, uma polissemia e Cinco sentidos, cinco códigos. Para a biografia, Leminski pinça as partes que lhe parecem cabíveis da introdução (excluindo cinco parágrafos e alguns trechos dos próprios parágrafos escolhidos) e inclui, no capítulo da biografia, uma imagem da capa da revista Hórus produzida por simbolistas brasileiros (inexistente no artigo original), seguida de um parágrafo novo, em forma de legenda, em que explica a simetria dos arabescos que compõem a imagem. O primeiro intertítulo do artigo original é todo descartado, possivelmente por se tratar de uma análise do ícone e não do símbolo. Já o segundo intertítulo é incluído quase na totalidade, excluindo apenas seis parágrafos bastante breves. Até mesmo o título deste intertítulo – cinco sentidos, cinco códigos – é integrado ao texto, mas com uma diferença: ele deixa de ser título e torna-se apenas uma linha, a qual conecta dois parágrafos.

“Mistério” é palavra grega, de um radical que significa “fechar a boca”. Só há mistérios para o código verbal.

Cinco sentidos, cinco códigos.

A consciência icônica inovadora do simbolismo não se revela apenas na iconização do verbal, como na grafia fantasista da palavra “lírio”, grafada pelos simbolistas como “lyrio”, a letra Y funcionando como ícone (desenho) da flor/referente. Revela-se, ainda, na revolução que associamos às Correspondances de Baudelaire ou ao soneto das vogais de Rimbaud. (LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 59)

Leminski faz também duas inclusões que não constam no artigo original. Ao explicar a fonética cromática de um poema de Rimabud, ele insere um trecho esquemático seguido de um poema do soteropolitano Pethion de Vilar.

A — branco. O — preto. U — roxo. I — vermelho e E — verde.

Sim, toda vogal tem um aroma e uma cor, Que sabemos sentir, que poderemos ver de Cima do Verso, de dentro do nosso Amor. PETHION DE VILAR, 1901

(LEMINSKI, Paulo, 2014b, p. 59, 60)

Os parágrafos e excertos excluídos, tanto do intertítulo quanto da introdução, focam numa análise do ícone, o que nos permite inferir que Leminski tomou cuidado e providências para recortar somente as porções que interessavam à compreensão da poesia simbolista de Cruz e Sousa. É importante lembrar que a relação entre ícone, signo e símbolo era uma obsessão para Leminski: não é à toa sua admiração pelos simbolistas e principalmente por Mallarmé, tampouco seu vínculo com os concretistas. Existe em Leminski uma relação

bastante íntima entre linguagem e vida. Para Celia Pedrosa, no já referido artigo Paulo Leminski: sinais de vida e sobrevida, esta relação encena uma historicidade em crise: “O tempo passa a ser vivido como limiar, o espaço como corda bamba, a linguagem como experiência que diz respeito à distância, à presença enquanto sobrevida.” (PEDROSA, 2006, p. 64). Pedrosa retoma uma noção de Décio Pignatari - “talvez os signos sejam contra a vida” - a qual é capturada, reformulada e “transtornada” por Leminski: “a vida não é contra os ícones nem contra os índices/ vida é ícone (dança, sexo, guerra)/ e índex (caminhos, direções, roteiros)/ é o símbolo que é contra a vida” (Ibid., p. 65). A pesquisadora acredita ainda que a biografia de Cruz e Sousa é uma das inscrições mais nítidas desta relação.

Essa formulação pode ser bem compreendida se acompanhamos, por exemplo, o processo pelo qual a leitura de Leminski, de novo fundindo vida e linguagem, dota de sobrevida a figura e o texto de Cruz e Sousa, ao escrever uma biografia cujo eixo é justamente uma releitura do significado do símbolo e do Simbolismo. Segundo ele, os simbolistas foram os primeiros modernos, em sua descoberta do caráter concreto, icônico, da experiência sígnica, direcionada por eles para a tensão sempre não resolvida entre pensamento, palavra e imagem. Nessa tensão, a linguagem se constitui como lugar de afirmação de um resto, de uma mais-valia, de uma abertura à indeterminação que implica intersemioticidade, rompimento de fronteiras dos sentidos e do sentido. (PEDROSA, Celia, 2006, p. 65)

Leminski inclui na biografia de Cruz e Sousa, portanto, um tema que lhe é muito caro: a análise do símbolo. Mais uma vez a escritura da biografia é atravessada por um tema pessoalmente caro ao biógrafo. Esse procedimento, noutra direção, opera um desmembramento da poesia e da vida de Cruz e Sousa em fragmentos (a infância do poeta, o simbolismo no Brasil, o erotismo na poesia de Cruz e Sousa, as profissões do poeta, a loucura de Gavita, o legado da cultura negra e etc.), que pincelam sua história de vida e contextualizam sua produção artística. A união destes fragmentos constrói uma imagem caleidoscópica do biografado, imagem esta que se projeta e se reflete no próprio biógrafo. O procedimento de Leminski é similar, porém não idêntico, ao que Roland Barthes empreendeu em parte do livro Sade, Fourier, Loyola.

Barthes trata disso em outra obra, Roland Barthes por Roland Barthes. No fragmento em que conta a respeito de seus projetos inacabados, ele cita: “Uma Vida dos homens ilustres (ler muitas biografias e nelas recolher certos traços, certos biografemas, como foi feito para Sade e Fourier).” (BARTHES, 2003, p. 166). De fato, nos textos sobre Sade e Fourier o autor respinga, quase borrifa, dados biográficos que vão ao encontro de seu estudo bibliográfico no

sentido de complementá-lo, embasá-lo ou questioná-lo35. Mas, no caso da biografia de Cruz e

Sousa, como ler estes biografemas à luz dos fragmentos temáticos?

Como? Quando se colocam fragmentos em sequência, nenhuma organização é possível? Sim: o fragmento é como a ideia musical de um ciclo (Bonne Chanson, Dichterliebe): cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas: a obra é feita somente de páginas avulsas. (BARTHES, Roland, 2003, p.109, 110)

Retomo esta citação de Barthes, já incluída neste trabalho, pois me parece que esta reciclagem de textos antigos e essa colagem feita por Leminski, abarcam a ideia de Barthes de que a obra é feita de páginas avulsas. Cada capítulo é um fragmento destas páginas (que por sua vez também é composto por outros fragmentos, uma espécie de texto telegráfico, valendo- me aqui mais uma vez das palavras de Antonio Risério). E sendo a leitura final da sequência destes fragmentos – a imagem que se forma quando unidas as partes do quebra-cabeças – nada mais do que um ciclo musical (ou sua partitura, caso pensemos no texto que contém as informações sobre este ciclo musical), arrisco-me a afirmar que a biografia de Cruz e Sousa, na pena de Leminski, seria o ciclo de uma canção de Gilberto Gil.

Contudo, o próximo capítulo, o símbolo no brasil, é o único em que não há qualquer alusão a Gilberto Gil. É também o único que não apresenta uma epígrafe. Junto ao primeiro capítulo, cruz e sousa’s blues, formam o par solitário que não traz epígrafes com trechos de alguma canção do tropicalista, ainda que o primeiro, em seu oitavo parágrafo, faça uma menção literal ao cantor. O símbolo no brasil é curto, tem apenas 271 palavras, e se inicia com uma frase impactante: “A principal característica do simbolismo brasileiro é que não houve simbolismo brasileiro. Sua existência (de, mais ou menos, 1890 a 1920) foi underground.” (LEMINSKI, 2014b, p. 61).

Trata-se de mais uma provocação que vai no mesmo sentido da caracterização de Cruz e Sousa como um expressionista. Para Leminski, o simbolismo ocorreu quase exclusivamente nas províncias da Bahia, Paraná, Ceará, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais – e foi periférico, marginal, um fenômeno de resistência e reação das províncias contra a Corte: “no Rio, próspero, reinava o parnasianismo, com seus príncipes, senhores da casa-grande das Letras (Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia). Simbolismo: destruir o sentido, tal como o Parnaso o encarnava.” (LEMINSKI, 2014b, p. 61). Sendo Cruz e Sousa o expoente maior do simbolismo brasileiro, lemos mais uma vez, nas entrelinhas, o poeta como um 35 Aos dados biográficos conhecidos e significativos (especialmente para Barthes) em Sade e Fourier, Barthes escreve um capítulo a parte, e creio que seja particularmente esse capítulo que, em Roland Barthes por

Roland Barthes, ele aproxima ao biografema: trata-se de Vidas, capítulo dividido em dois intertítulos (Vida de Sade e Vida de Fourier) e organizado em tópicos numerados – 22 para Sade e 12 para Fourier, sendo o

rebelde – na acepção de Raymond Williams que, nesse caso, avança pelo campo literário -, como um destruidor de sentido, um idealista lutando contra padrões estabelecidos pelos literatos brancos da capital.