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2.3 Secularização e Laicidade

2.3.2 Laicidade e Laicismo

Até aqui foi possível estabelecer a concepção de secularização como o fenômeno que atinge a sociedade e a laicidade como o que atinge o Estado.

Como se verificou acima, a laicidade tem dois pilares básicos: a independência e a autonomia, de tal modo que, qualquer doutrina religiosa, filosófica, científica ou política que vise diminuir a autonomia das duas esferas é contrária à laicidade.

A laicidade invoca esta autonomia não apenas entre religião e Estado, mas também entre filosofia e religião:

Na primeira metade do século XIV, Ockham reivindicava com energia a autonomia da atividade filosófica. A propósito da condenação de algumas proposições de Tomás de Aquino feitas pelo Bispo de Paris, em 1277, ele dizia: “As asserções, principalmente filosóficas, que não concernem à teologia não devem ser condenadas ou proibidas, pois nelas qualquer uma ser livre para dizer livremente o que lhe apraz” (Dialogus inter magistrum et discipulum de imperatorum et pontificum

potestate, I, II, 22). Essa foi a primeia e certamente uma das mais

enérgicas afirmações do princípio do L. [Laicismo] em filosofia e deve-se a um frade franciscano do século XVII.205

A laicidade pressupõe a separação e a neutralidade, mas permite as relações de cooperação com a Igreja e religiões, sem recair no laicismo:

Existe, portanto, entre Igreja e Estado entre religião e política, uma separação lícita e necessária – a laicidade – e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo. Porque a laicidade é prerrogativa consubstancial à “ordem autônoma” do Estado e o laicismo supõe a ruptura arbitrária e artificial do elo essencial que une toda a atividade com a “ordem teonômica”.206

204 SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 29- 31.

205 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 691-692. 206 LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 153-156. Ordem transcendente ou teonômica - Segundo o autor a autonomia do Estado é plena na esfera terrena, o que ele denomina ordem autonômica, porém há também uma ordem teonômica no Estado, à medida em que é formado por homens que são seres transcendentes, razão pela qual é plenamente autônomo na sua ordem, mas deve manter uma relação de harmonia com a ordem transcendente, ou seja, com a religião.

Na verdade, a separação saudável entre Estado e religião é entendida como condição à plena liberdade religiosa, já que Estados confessionais tendem a restringir a prática de outras religiões.

Há uma dimensão positiva da liberdade de religião, pois o Estado deve assegurar a permanência de um espaço para o desenvolvimento adequado de todas confissões religiosas. Cumpre ao Estado empreender esforços e zelar para que haja essa condição estrutural propícia ao desenvolvimento pluralístico das convicções pessoas sobre religião e fé.207

Consequentemente, surgem para o Estado proibições como:

i) guerras santas; ii) discriminação estatal (lato sensu) arbitrária e danosa entre as diversas igrejas; iii) obrigar que o indivíduo apresente e divulgue suas convicções religiosas; estabelecer critérios axiológicos para selecionar as melhores religiões; v) estabelecer pena restritiva de direitos junto a templo religioso.208

Contudo, há um “aspecto forte” da laicidade que não se limita a buscar a separação das esferas e suas respectivas autonomias, mas confunde-a com o anticlericalismo e o ateísmo, ou seja, à exclusão da religião e da fé da esfera pública. Este aspecto é reconhecido neste estudo como laicismo.

O laicismo se opõe à laicidade, pois pretende não a independência das esferas, e sim a completa eliminação da religião do âmbito público, aprisionando-a ao interior dos templos, ou seja, os laicistas entendem que a religião é estritamente privada, devendo ser excluída do espaço público, não devendo exercer qualquer influência na sociedade.

Tal posição radical, originada do Iluminismo, é portadora de um extremismo antirreligioso e anticlerical “que aproveitou a justa reivindicação da laicidade para introduzir sub-repticiamente, confundindo-o com ela, o laicismo indiferentista e ateu”209.

Da lição de Ingo Sarlet:

207 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 605.

208 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 605.

209 LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 159.

[...] há que se distinguir entre laicidade e separação (no sentido de independência) entre Estado e Igreja (e comunidades religiosas em geral) de laicismo e de uma postura de menosprezo e desconsideração do fenômeno religioso (das religiões e entidades religiosas) por parte do Estado, pois uma coisa é o Estado não professar nenhuma religião e não assumir fins religiosos, mantendo uma posição equidistante e neutra, outra coisa é assumir uma posição hostil em relação à religião e mesmo proibitiva de religiosidade.210

O problema do paradoxo laicidade/ laicismo é originado no combate aos regimes de regalismo, cesaropapismo e hierocracia, provenientes da relação existente entre Estado e Igreja, especialmente nos séculos XVII e XVIII, em que as autoridades temporal e espiritual se confundiam na mesma liderança, ora o espiritual submetendo o poder temporal, ora o inverso, conforme já foi mencionado.

Com efeito, a batalha da laicidade foi promovida pela Revolução Francesa e pelo liberalismo, que lhe deram o caráter radical laicista. E a Igreja Católica se ressentiu disto:

33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja.

[...]

35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos.211

Em suma:

210 SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 478.

211 LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Immortale Dei. Roma, 1885. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale- dei_po.html> Acesso em 01/03/2014

O Estado laico comprometido com a laicidade, ao invés de rejeitar ou tentar suprimir o religioso, considera-o um fato público e, embora não perca de vista a distinção entre o campo religioso e a esfera secular, não desconhece as necessidades espirituais de seus cidadãos. O Estado laico movido pelos ideais de laicidade, embora não privilegie nenhuma religião específica, não se mostra hostil a nenhum credo, almejando com os mesmo, manter relação de colaboração de acordo com as especificidades de cada qual. O Estado laico de orientação laicista, por sua vez, ostenta nítida parecença com o Estado ateu: sua preocupação é com a administração das necessidades materiais do homem; a religião, para ele, é assunto exclusivamente privado, um anacronismo que a ciência e o progresso humano se incumbirão de exterminar; ademais caracteriza-se pela confusão entre o público e o estatal, porquanto não respeite a autonomia do social em sua dimensão religiosa.212

Ninguém que busca conhecer honestamente a história do mundo pode negar que valores cristãos foram responsáveis pela humanização do mundo, haja vista a concepção do homem como imagem e semelhança de Deus, que lhe dá dignidade ímpar na natureza.

Os equívocos surgem quando se pretende reduzir a complexidade da Igreja Católica e das religiões a meros mecanismos de “freio à liberdade”. Sim, a Igreja Católica, assim como outras religiões querem transmitir sua mensagem ao mundo. São valores favoráveis à vida humana. Os dogmas são para os católicos, mas os valores são para todos.

Há decisões jurídico-políticas que envolvem questões morais e que, por esta razão, interessam a toda sociedade. Exigem, assim, diálogo, esclarecimentos e ponderações. Não podem ser tomadas com base em teorias elitistas excluindo valores que tem como base a religião.

Assim, a religião, de modo geral, além de ter direito à autonomia em seu âmbito de atuação, é um fato social e deve encontrar guarida pelo Estado em respeito à sociedade. O Estado laico e democrático é assim, não excludente.

Todavia, a compreensão laicista do Estado não permite qualquer tipo de relação com as diversas instituições religiosas formadas por seus cidadãos. Ao contrário, tudo o que diz respeito à religião deve ser excluído do ambiente público,

212 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

qualquer que seja ele. Especialmente se esta religião for a preponderante, como o é a católica em diversas nações.

Enfim, a atitude estatal de hostilidade à religião é caracterizada como laicismo:

O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo Estado, em relação às posturas de fé. Baseado, historicamente, no racionalismo e cientificismo, é hostil à liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A França, e seus recentes episódios de intolerância religiosa, pode ser aqui lembrada como exemplo mais evidente de um Estado que, longe de permitir e consagrar amplamente a liberdade de religião e o não-comprometimento religioso do Estado, compromete-se, ao contrário, com um postura de desvalorização da religião, tornando o Estado inimigo da religião, seja ela qual for.213