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O feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio

1.5 Igreja e Estado na Idade Média

1.5.3 O feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio

Como se viu, segundo o pensamento medieval, Papa e Imperador

117 Movimento de caráter político-religioso que pregava a destruição de imagens e que destruiu inúmeras obras de arte da época.

118 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 75.

deveriam colaborar entre si para a plena instauração da cidade de Deus na cidade dos homens.

Entretanto, os interesses de poder e mando se sobrepujaram a quaisquer outros interesses, resultando não uma relação de simbiose, mas de parasitismo entre o poder do Estado e a autoridade da Igreja, que acabou sendo usada com intuito de domínio e manipulação do povo, seja pelos que nela ingressavam, seja pelos reis que lhe prometiam obediência.

Houve por esta razão muitos desvios de conduta de clérigos imorais, venda de indulgências e práticas que em nada lembravam a Cidade de Deus de Agostinho.

A classe dominante no Ocidente medieval, a aristocracia, vai ganhando poder. Esta classe social é caracterizada pela conjunção de três atividades, quais seja, o comando dos homens, o poder sobre a terra e a atividade guerreira. Tornaram-se os senhores feudais:

[..] o insucesso da tentativa carolíngea livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império, que, ao contrário, perdurará em Bizâncio. No século X, a disseminação do poder de comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e à “paz de Deus”. Ao mesmo tempo, o processo de encelulamento e o estabelecimento dos senhorios obrigam-na a uma viva reação para evitar tornar-se prisioneira da malha senhorial e a fim de, ao contrário, ser sua principal ordenadora.119

Com isto, desde final do século IX o poder imperial começa a se enfraquecer, e a desenvolver-se o sistema de feudos:

O século X é, assim, o tempo dos “principados”, grandes regiões constituídas em condados ou ducados, cujo senhor confunde aquilo que concerne a seu próprio poder, militar e fundiário, com a autoridade pública, que no passado era conferida pelo imperador ou pelo rei.[...]

Esses senhores feudais encampavam o exercício da justiça e o direito de construir castelos, antes prerrogativa da autoridade real.120

A Cavalaria torna-se porta de entrada da aristocracia mesmo aos que não detinham nenhum título de nobreza, apenas pela assunção dos ideais do grupo, os

119 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 184.

120 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 126.

quais são fortemente influenciados pela Igreja. Os castelos são os pontos de fixação em torno dos quais se define o poder aristocrático. Seu fundamento é o código de honra, que impõe o dever de vingança, donde resultou grande violência entre os feudos.

Note-se que, bem ao contrário do que é propagado “aos quatro ventos”, os reis, nesse período, detém um poder simbolicamente prestigiado pela sagração da Igreja, mas que, de modo algum significava poder dado por Deus:

Entretanto, diferentemente do basileus bizantino, que tem o estatuto de um sacerdote, os clérigos ocidentais apressam-se em ressaltar que o rei permanece um laico e recusam com veemência toda evocação explícita dos reis-sacerdotes bíblicos [...] e os clérigos não se privam de insistir sobre as obrigações que incumbem ao rei em virtude da consagração. [...] o rito põe a realeza em uma forte dependência simbólica em relação ao clero e seus representantes eclesiásticos (grifo do autor).121

Os feudos se tornaram pequenos Estados, nos quais a Igreja se fez presente especialmente por meio da Cavalaria, onde, através dos rituais e ética cavalheiresca, introduziam-se valores cristãos.

Esta época se caracterizou pela descentralização do poder entre os senhores feudais e a presença da autoridade da Igreja por meio dos bispos locais, onde o domínio sobre os “bens terrenos” era representado pelos reis aos quais os senhores feudais deveriam se submeter: “Quem resolvia as questões judiciais dentro de um feudo era o senhor feudal, mas de sua decisão cabia recurso à autoridade real, em segunda instância”122.

Vale dizer com José Pedro Galvão de Souza:

A Igreja salvara o depósito de cultura dos tempos clássicos, recolhidos nos conventos e, assim, preservado da destruição pelos bárbaros, e por outro lado, domava o furor bélico dos germanos com instituições adequadas a este fim, como a cavalaria e a trégua de Deus. Passava-se a considerar todos os homens como filhos do mesmo Deus, remidos pelo sangue de Cristo, e assim a escravidão desaparecia aos poucos, substituída pela servidão da gleba, e a todos eram reconhecidos os direitos naturais da pessoa humana.123

121 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 184.

122 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 131.

123 SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 142.

O regime feudal se configurava como uma hierarquia de pessoas e de terras sob o aspecto do direito privado, mas no campo do direito público o que o distinguia era a divisão da soberania, que deixa de pertencer ao imperador e passa a pertencer a cada senhor.124

Nesse cenário, havia uma classe excluída do sistema que introduzia o clero, como classe superior e responsável pelo aspecto religioso, em seguida a aristocracia guerreira e, por fim, o povo camponês, trabalhador.

Tal classe excluída da sociedade da época era a burguesia, sedenta de liberdade, caracterizada por mercadores e mestres de ofício. Começam a formar-se as comunas urbanas numa associação entre burguesia e aristocracia, que ora é governado por uma, ora por outra.125

A partir do ano 1050 se inicia um novo tempo para o cristianismo culminando com a ascensão ao papado de Inocêncio III (1198-1216), que conseguiu orientar a Igreja segundo a fé cristã e restabelecer a paz.

Todavia, “Durante a Alta Idade Média o mundo cristão em seu conjunto está na defensiva, amputado e sob ataque. O Império Islâmico dispõe de uma força esmagadora comparada à de Bizâncio126”.

A ideia de uma reconquista dos territórios dominados pelo Islã ganha corpo: “os meados do século XI aparecem como o momento decisivo em que se engaja a contraofensiva ocidental para fazer recuar o Islã”.

Dois séculos antes se inicia o movimento em direção à reconquista do Oriente especialmente Jerusalém e os lugares santos, por meio das Cruzadas. Em 1098 Antioquia é tomada, no ano seguinte, Jerusalém:

O sucesso da cristandade latina é brilhante. Mas a defesa dos territórios conquistados, em um contexto hostil, é difícil, apesar da criação de ordens específicas – Templários, Hospitalários e Cavaleiros Teutônicos – que, encarregados no início de acolher e proteger os peregrinos, logo adquirem papel propriamente militar. A implantação latina mantém-se sólida somente por um século. [...] Em 1187, Saladino do Egito retoma Jerusalém. O imperador Frederico

124 SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 143.

125 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 147-148.

126 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 90

Barba-Ruiva se lança na cruzada, obtém a vitória de Iconium, mas morre afogado em 1190. Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto ganham São João de Acre e assinam um armistício com Saladino. Durante o século XIII, os ocidentais não controlam mais do que algumas cidades costeiras. 127

As cruzadas se mostraram um malogro com o decorrer do tempo e reafirmaram o cisma entre a ortodoxia do oriente e a cristandade romana ocorrido em 1054, em virtude de questões doutrinárias.

Luta acirrada ocorreu entre o Imperador Henrique IV e o Papa Gregório VII, monge da abadia de Cluny, eleito em 974 pelo Colégio dos Cardeais128 para administrar a Igreja. O referido Papa iniciou uma série de mudanças para alcançar a independência da Igreja que na época sofria ingerência do Imperador na nomeação dos clérigos. Houve longo período de discórdia que incluiu a excomunhão do Imperador e o exílio do Papa.

Passadas algumas décadas, em 1122, Henrique V entrou em acordo com o Papa Calisto II e foi firmada a “Concordata de Worms” pela qual há uma separação dos poderes do bispo entre aqueles temporais, que passam ao imperador e aqueles espirituais, cuja investidura só poderia ser realizada pelo próprio bispo. É novamente a tentativa da Igreja de retomar o poder de nomeação dos próprios bispos. Sobre a Concordata de Worms atesta Baschet 129que:

Distinguir-se-ão os poderes temporais do bispo (temporalia) e seus poderes espirituais (spiritualia), de modo que o imperador pode transmitir os primeiros em um ritual de investidura pelo cetro, enquanto os últimos são objetos de uma investidura pelo anel e pelo cajado, que só pode ser realizada por outros clérigos.

Sobretudo o princípio da libertas ecclesiae conduz a reafirmar que incumbe ao cabido da catedral eleger seu bispo, o tem como efeito retirar dos laicos (imperador, rei ou conde) o controle do recrutamento episcopal. [...] Essa modificação no recrutamento dos bispos revela-se, então, propícia à defesa dos interesses da Igreja e a uma separação (e uma concorrência) mais marcadas entre o alto clero e a aristocracia laica, o que contrasta com a osmose que prevalecia anteriormente. (grifo do autor)

127 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 93.

128 Os clérigos da Abadia de Cluny, na França começaram uma manifestação para exigir autonomia à Igreja, que queria tomar o poder de escolha de seus membros para si. Em 1058 foi criado o Colégio dos Cardeais. O papa Nicolau II, seu criador, tinha como prioridade dar aos clérigos o direito soberano de escolha dos líderes religiosos. E então foi eleito Gregório VII como papa.

129 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 191.

A partir de 1190 impõe-se na Igreja uma estabilidade com a reorganização da cúria e a afirmação do poder do Papa em detrimento do poder local dos bispos. Esse período se caracterizou por uma marcada separação entre clero e leigos, consolidando-se o termo Igreja para o clero e cristandade para o povo.130

Nessa mesma época nasce Francisco (1181 ou 1182), vindo de família burguesa que após uma experiência mística renuncia à herança de seus pais, inclusive à roupa que vestia, e abraça as exigências de uma vida na pobreza radical. Sua mensagem é inovadora, pois anuncia a simplicidade e a penitência. Continuando sempre leigo provoca uma mudança de comportamento que atraiu inúmeros seguidores. Jamais atacou diretamente a autoridade e o modus vivendi dos clérigos. Foi considerado um reformista dentro da própria Igreja.

Nisto lhe seguiu Catarina de Sena e, em seguida, Domingos de Gusmão. Este, ao contrário de Francisco, optou pela carreira eclesiástica tradicional, ainda que sua ordem fosse mendicante, como a do poverello. Dedicou-se à pregação e ao combate das heresias, daí seus sucessores terem assumido as tarefas inquisitoriais:

A despeito dessas diferenças iniciais, a evolução das duas ordens as aproxima, e muito em breve estarão, ao mesmo tempo, unidas por objetivos e práticas bastante semelhantes [...] Os frades pregadores, caracterizados pela sua vestimenta branca recoberta por um manto negro, são cerca de 7 mil por volta de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII, enquanto os franciscanos (também chamados frades menores, em razão de sua humildade), vestidos com um hábito de lã crua ou bege (nem pintado, nem embranquecido) e reconhecidos, como Francisco pela simples corda com um nó atada à sua cintura, são talvez 2.500, por volta de 1250.131

A partir do século XII a cidade é sem dúvida um mundo novo. De início é hostilizada pela Igreja por ser lugar de pecados e tentações, porém alguns importantes setores abrem-se ao fenômeno urbano e colaboram para o estabelecimento de uma religião cívica.

130 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 196.

131 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 214.

É o que ocorreu com tais ordens mendicantes. Estes se diferenciam dos monges, pois desejam manter-se em meio aos fiéis pregando e dando exemplo, instalando-se no coração das cidades.

Desenvolvem-se nessa mesma época, no seio da Igreja, as universidades, que, posteriormente, assumem a independência por meio de seus estatutos. Destacam-se dentre elas Bologna, Oxford, Cambridge, Montpellier, Salamanca, Nápoles e Pádua.132 A escolástica é seu método por excelência para buscar associar a fé e o intelecto, ampliando os métodos de raciocínio e argumentação.

Nesse contexto surge Tomás de Aquino, dentre outros, que tinham como objetivo “sintetizar e esclarecer, pela força do raciocínio, o conjunto dos problemas relativos a Deus, ao homem, ao universo e à organização da sociedade”.133

Por fim, é necessário concluir que a Igreja é, na Idade Média, a própria organização social e sua dirigente. Estão absolutamente unidas nessa mesma instituição a questão social e a religiosa:

A estruturação da cristandade, pensada como uma comunidade homogênea sob direção de uma instituição eclesial reforçada, produz, com efeito, um duplo movimento, de integração para os fiéis ajustados e de exclusão para os não cristãos. 134

Assim, a Idade Média se caracterizou pela presença da Igreja na sociedade tornando-a teocêntrica, com a concepção do papa como a representação do poder divino na terra.

Ao longo da primeira metade do século XIV a Idade Média se encontra num momento de muitas dificuldades: fome geral, peste, guerra, cisma.

Estima-se que um terço da população do Ocidente morreu em razão da peste bubônica.135

A Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França eclodiu quando o rei inglês Eduardo III quis o trono francês após a morte de todos os filhos de Filipe, o

132 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 215.

133 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 216.

134 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 243.

135 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 250.

Belo, sem deixar descendentes. A destruição foi muito mais devastadora do que guerras anteriores, pois haviam sido desenvolvidas novas técnicas da arte militar como arcos e bestas.

Acresça-se a isto o advento do grande Cisma que dividiu a Igreja Romana entre 1378 e 1417 em virtude da eleição de dois papas ao mesmo tempo estando um em Roma (Urbano VI) e outro em Avignon onde o papa Clemente V, em 1309, se instalou com a cúria numa espécie de cativeiro. A situação se resolve somente mediante o Concílio de Constança (1414-1418) com a eleição de novo papa, Martinho V: “O pessimismo invade os espíritos e o sentimento de viver em um mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais presente do que nunca”.136

Segundo a análise de Baschet atribui-se ao cristianismo a capacidade de separar o humano do divino, onde Deus não se confunde com a natureza ou o homem, mas ao qual se pode chegar pela transcendência e

Enquanto as religiões anteriores se propunham a reger o aqui embaixo, o investimento no além, que caracteriza a cristandade tende, a despeito dos efeitos contrários induzidos pela institucionalização da Igreja, a liberar parcialmente o mundo do peso da religião e a preparar a aceitação e o amor às realidades terrestres. Assim, à medida que ele assume a dinâmica da transcendência – à medida que, se quisermos, Deus se retira do mundo – o cristianismo amplia a possibilidade de uma ampliação do real e de um conhecimento racional dele. Com o tempo, a dinâmica da transcendência produz uma ruptura entre o ser e o dever ser, que torna capaz de se por ao mundo, para afrontá-lo e transformá-lo [...] e a modernidade resultaria não de seu enfraquecimento, mas da radicalização de suas potencialidades.137

Essa forma de adotar o cristianismo no Ocidente não ocorreu em Bizâncio, onde Igreja, separada de Roma desde 1054, e Império mantiveram uma relação de sobreposição e de submissão à tradição que acaba por intimidar a dinâmica teológica.

Neste sentido, Jérôme Baschet afirma que, no geral, “a Cristandade medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma teocracia, na qual a Igreja deteria efetivamente a soberania dos negócios temporais”, mas no seu sentido mais combativo pretendia mais manter a “monarquia

136 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 251-252.

137 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 533.

pontifícia” sobre todos os outros poderes do Ocidente, fazendo-se reconhecer o seu líder como guia da cristandade.138

Em sua visão a Igreja era a própria forma da sociedade medieval feudal, sua principal força motriz:

De fato, o Ocidente é um corpo social unificado principalmente pela Igreja. É devido a ela, em primeiro lugar, que o feudalismo não é caracterizado unicamente pela força da inscrição local e do vínculo ao solo, mas pela articulação desse poderoso localismo com uma ampla unidade tendendo ao universalismo. Immanuel Wallerstein nomeava “civilização” este tipo de coesão, mas é possível lhe dar também seu nome próprio: cristandade.139

E disto resulta

a um só tempo, uma notável coesão interna, uma acumulação de forças materiais, um elã criativo e uma força de expansão para o exterior [...] o feudalismo cria uma poderosa dinâmica que conduz ao desenvolvimento interno e à expansão externa, mas sem os custos e os fardos que seriam impostos por uma unificação imperial.140

Infelizmente, essa ideologia universalista acabou por desembocar num acesso de intolerância e exclusão de outras religiões, no intuito de implantação dos valores cristãos, certamente em razão do ânimo bélico da sociedade da época.

No século XV há uma recuperação da Europa contra a peste e as guerras e ocorre um grande aumento demográfico, quase igualado ao período anterior à peste. Há transformações na economia com o surgimento de uma elite camponesa e o crescimento do comércio, e a invenção da imprensa e de muitos outros instrumentos, inovações tecnológicas, sem mencionar as Caravelas que permitiram as aventuras pelo Atlântico.

Porém, a baixa da guerra e da peste deixou acéfalos os principais feudos da Europa, fazendo com que os reis, se aproveitando da fragilidade momentânea e, com o apoio da burguesia, se apoderassem de todos os reinos particulares para realizar a unificação do Estado, sob seu poder absoluto: “No século XVI, a

138 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 196.

139 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 539.

140 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 539.

centralização já se havia realizado quase que inteiramente em países como Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Alemanha”.141

Pois bem, o desenvolvimento ocorrido nesse ínterim se deu na Idade

Média e não no Renascimento como muitos passaram a crer. 142

Por tudo isto, se pode afirmar que a “ruptura que leva à concepção moderna da história não se produz antes da segunda metade do século XVIII”. 143

141 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 139.

142 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 262.

143 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 547.

2 SECULARIZAÇÃO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA

As cidades antigas da Grécia e Roma foram fundadas sobre a religião e exerciam enorme força sobre seus membros, que se sentiam moralmente obrigados a seguir tais leis:

[...] o cidadão estava em tudo submetido à cidade, sem reserva alguma: pertencia-lhe inteiramente. [...]

A religião que dera origem ao Estado, e o Estado que sustentava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; esses dois poderes associados e vinculados constituíam um poder quase sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos.144

Não fazia sentido falar em escolhas individuais, a pessoa humana não tinha grande valor diante desta autoridade suprema da cidade, isto é, a pátria ou Estado, daí adveio a máxima de que a salvação do Estado é a lei suprema. Pensava-se que o direito, a justiça e a moral, tudo devia ceder perante o interesse da pátria.

Na era seguinte verifica-se que, a ideia inicial do Cristianismo referente ao dualismo do poder acabou se dissolvendo na prática desde que a Igreja passou a servir de degrau político a quem almejava o poder.