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O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica

2.5 Laicidade nas Relações entre Igreja e Estado

2.5.1 O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica

Como já se mencionou, a necessária relação de neutralidade não significa que o Estado deva ignorar a existência da religião ou viver ao arrepio desta.

No caso da Igreja Católica, por seu turno, há um ordenamento próprio: o direito canônico. Então, pergunta-se: Como deve o Estado se colocar diante desta situação?

Na concepção pluralista do ordenamento jurídico, diz-se que o ordenamento estatal tem que conviver com outros muitos e variados ordenamentos provenientes de instituições231 abrigadas nesse mesmo Estado.

Essa teoria se contrapõe a de monismo jurídico, em que haveria um único ordenamento, o estatal, e tem como consequência o aumento da complexidade da

230 FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª. edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasileiense, 2010, p. 35.

relação entre o ordenamento do Estado e esses ordenamentos institucionais ou menores.

Norberto Bobbio232 acata esta tese e distingue entre quatro tipos de ordenamentos institucionais quais sejam:

a) Os que estão acima do Estado, como o ordenamento

internacional e segundo alguns, o da Igreja Católica;

b) Os que estão abaixo do Estado, como os ordenamentos propriamente sociais, que o Estado reconhece, limitando-os ou absorvendo-os;

c) Os ordenamentos ao lado do Estado, como o da Igreja Católica, segundo outras concepções, ou ainda, o internacional, conforme a concepção chamada dualística.

d) Os ordenamentos contra o Estado, como associações

para o crime e seitas secretas.

Vale dizer que, não obstante o reconhecimento destes ordenamentos institucionais, a teoria da universalidade do ordenamento, como construção de um direito positivo único, segundo Norberto Bobbio, está latente, especialmente após a criação da Organização das Nações Unidas.

De todo modo, são múltiplas as relações que o Estado pode desenvolver com essas instituições.

Em relação à Igreja, entretanto, a relação é sui generis.

Sabe-se que ambos, ordenamento estatal e da Igreja, são concomitantes no tempo e no espaço, além de se dirigirem às mesmas pessoas. A diferença básica é quanto à matéria de que se ocupam, quais sejam, jurídica ou moral.

São diversas as concepções sobre como os ordenamentos nesse caso devem se relacionar:

a) Exclusão total, onde se concebe dois ordenamentos que são completamente distintos quanto à matéria, pois um regula a moral e o outro o direito;

232 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 158.

b) Inclusão total, onde se concebe que o ordenamento do Estado tem a competência de gerir tanto toda a matéria de cunho jurídico, quanto a de cunho moral;

c) Exclusão ou inclusão parcial, onde se concebem que dois

ordenamentos tem uma parte em comum e outra não comum. Assim, o Estado absorve parte do ordenamento da Igreja, mas a parte não absorvida estaria fora da jurisdição do Estado, competindo somente à Igreja. Essa parte não compreendida pelo Estado é entendida como mera licitude e não juridicidade.

Nesta terceira concepção de relação entre os ordenamentos compreende- se que há pontos de intersecção, pois também o Direito manifesta a moral, e assim:

Nas relações entre direito e moral, a solução que apresenta esses relacionamentos como relacionamentos de inclusão parcial e exclusão parcial é talvez a mais comum: direito e moral, segundo esse modo de ver, em parte coincidem e em parte não, o que significa que há comportamentos obrigatórios tanto para um quanto para outro, mas, além disso, existem comportamentos moralmente obrigatórios e juridicamente lícitos, e, inversamente comportamentos juridicamente obrigatórios e moralmente lícitos. Que não se deva roubar vale tanto em moral como em direito; que se devem pagar as dívidas de jogo vale somente em moral; que se deve cumprir um ato com certas formalidades para que seja válido somente vale em direito.233

Igualmente, Bobbio234 faz uma rememoração das modalidades de relação

entre Estado e Igreja na história, após o advento do cristianismo, resumindo-as em quatro modelos.

No primeiro deles, denominado de reductio ad unum, há uma unificação entre eles, onde ou há uma redução do Estado à Igreja (teocracia) ou da Igreja ao Estado (cesaropapismo na época imperial, erastianismo nos modernos Estados nacionais protestantes).

A segunda espécie de relação é a subordinação, também dividida em dois modos. Deste modo, sendo o Estado subordinado à Igreja, como se pretendia nos

233 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 161.

234 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 171-175.

Sacro-Impérios Romanos Franco e Germânico, trata-se da teoria da potestas

indirecta ou directiva. Já a Igreja subordinada ao Estado por meio do

jurisdicionalismo e territorialismo, ocorreu durante o período das monarquias absolutas.

O sistema fundado sobre relacionamentos concordatários é a terceira espécie citada por Bobbio e pressupõe o reconhecimento recíproco dos dois poderes como independentes e soberanos cada qual em sua órbita de autoridade. É o que vigora entre o Estado italiano e a Igreja Católica.

Por último há o sistema de separação ou separatismo, como ocorre nos Estados Unidos, onde “as Igrejas são consideradas em nível de associações privadas, às quais o Estado reconhece a liberdade de desenvolver a sua missão dentro dos limites das leis”.235

Ao analisar a relação entre o Estado italiano e a Igreja Católica, Bobbio nota que há pontos de entrelaçamento entre os ordenamentos, pois “Não se trata de dois ordenamentos fechados um ao outro: em particular o ordenamento estatal se refere, de várias maneiras, a instituições reguladas pelo direito canônico”236.

Com efeito, ele identifica duas figuras características dessa situação: o pressuposto e o reconhecimento dos efeitos civis.

No primeiro, uma condição atribuída a alguém pela Igreja é recebida no Estado como uma condição que cria consequências diferentes daquela. Assim, o batismo na Igreja tem um sentido, e

com as leis raciais de 1938 o batismo foi considerado como o “pressuposto” para a atribuição de consequências jurídicas próprias do Estado italiano. Assim, o sacramento da ordem está regulado por normas do direito canônico, e certamente o Estado italiano não atribui à qualidade de clérigo as mesmas consequências atribuídas a ela pela Igreja, mas o ordenamento italiano pode fazer, em certas circunstâncias, da qualidade de clérigo um “pressuposto” para consequências jurídicas relevantes no próprio ordenamento (por exemplo a isenção do serviço militar).237

235 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 172-173.

236 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 173.

237 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 174.

O reconhecimento de efeitos civis ocorre quando o Estado “renuncia à própria regulamentação, limitando-se a atribuir à regulamentação dada pelo ordenamento da Igreja, efeitos civis”.238