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Para tornar mais clara essa realidade, confronta-se dois modelos atuais de estados laicos, quais sejam os Estados Unidos e a França.

Sabe-se que a colonização dos Estados Unidos se intensificou a partir da Declaração dos Direittos (Bill of Rights) de 1688, em virtude da grande imigração de religiosos extremistas (puritanos) insatisfeitos com o fim da ditadura e restabelecimento da monarquia com o rei Carlos II.

Assim, a religiosidade está na raiz da formação do povo estadunidense. Ali a separação entre Igreja e Estado significa independência da política e vida pública em relação à religião, com duas vertentes básicas: O free excercise e o

nonestablishment, isto é, o livre exercício da religião escolhida e a proibição do

estabelecimento de vantagens a qualquer crença.214

Na nação estadunidense, todavia, a instituição do chamado wall of

separation, em que pese ter representado a autonomia e supremacia da política em

face da religião, não representou de modo algum a diminuição da prosperidade religiosa, que influenciou inclusive a Declaração de Independência e a Declaração

213 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 606-607.

214 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 104-105.

de Direitos do Bom Povo da Virgínia de 1776, de nítido caráter iluminista, como se vê:

Que a religião ou os deveres que temos para com o nosso Criador, e a maneira de cumpri-los, somente podem reger-se pela razão e pela convicção, não pela força ou pela violência; conseqüentemente, todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, de acordo com o que dita sua consciência, e que é dever recíproco de todos praticar a paciência, o amor e a caridade cristã para com o próximo.215

O fato é que:

No caso norte-americano procurou-se conciliar a pujança do poder do Estado com os valores cristãos, tão cara à comunidade dos colonos. Com efeito, a instituição do wall of separation não significou um ato de opressão para a religião, mas a confirmação e a garantia do seu livre exercício, embora tenha significado, para o Estado, a legitimação da sua possibilidade de atuar soberanamente, sem submeter-se às limitações religiosas. Trata-se, por essa razão, segundo Paulo Adragão, de uma “consideração positiva da religião”. Ou, de acordo com Maurice Barbier, de um relacionamento com a religião sem caráter combativo.216

Já a França, por sua vez, influenciada pela ideologia radical jacobina desde a Revolução Francesa, encampou de modo inédito, no sentido de avançar no processo de emancipação do homem, o regime de separação entre religião e estado que incluía o enfraquecimento da instituição da Igreja no seio da sociedade civil, dado o forte apego ao racionalismo e à grande influência da Igreja Católica no

cenário político e econômico do Ancien Regime217, e assim, a sociedade

emancipada era duplamente avessa à religião.218

Com o Regime do Terror, os jacobinos (dentre os quais Robespierre) instauram uma verdadeira guerra contra a burguesia: “Em 1793, Pache e Chaumette

215 Item XVI. Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-a- criacao-da-Sociedade-das-Nacoes-ate-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virginia-

1776.html> Acesso em 01-03-2014.

216 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p.110.

217 Época das monarquias absolutistas que precedeu a era revolucionária.

218 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 107.

pediram o confisco dos gêneros de primeira necessidade e o extermínio da burguesia”,219 tendo ainda sido decretada a “proscrição oficial do cristianismo no

território francês220”

Em que pese Inglaterra e França terem passados por períodos de revoluções antiabsolutistas,

Na França, nação herdeira de uma hostilidade jacobina com relação à religião, prevalece o modelo excludente, no qual se almeja “limpar” o espaço público de qualquer traço religioso. Já na Inglaterra adota- se o modelo inclusivo, por meio do qual todas as crenças – e sua exteriorização – são toleradas no espaço público, desde que, obviamente, não malfiram a ordem pública.221

O caso da França é surpreendente. Ali, em que pese a Constituição garantir a liberdade religiosa, os laicistas consideram a religião apenas de modo negativo, algo que deve ser eliminado: “Não é sem razão, portanto, que se pode observar na França do final do século XVIII a contraditória convivência de uma teórica liberdade religiosa com a perseguição à Igreja Católica”.222

É verdade, pois

Em 1905, a lei de separação da Igreja e do Estado, que denunciava a Concordata de 1804, foi um acontecimento doloroso e traumatizante para a Igreja na França. Ela regulava o modo de viver em França o princípio do laicismo e, neste âmbito, ela mantinha unicamente a liberdade de culto, relegando ao mesmo tempo a fé religiosa para a esfera privada e não reconhecendo à vida religiosa e à Instituição eclesial um lugar no seio da sociedade. Desta forma, a vida religiosa do homem era considerada unicamente como um simples sentimento pessoal, não reconhecendo assim a natureza profunda do homem, ser ao mesmo tempo pessoal e social em todas as suas dimensões, incluindo a dimensão espiritual. Contudo, a partir de 1920, estamos gratos ao Governo francês por ter reconhecido de

219 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 98.

220 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 108.

221 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 97.

222 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 110.

certa forma um lugar à fé religiosa na vida social, à vida religiosa pessoal e social, e a constituição hierárquica da Igreja, que é constitutiva da sua unidade.223

A grande diferença na compreensão de laicidade entre Estados Unidos e França foi suscitada por Jürgen Habermas, quando trata do papel da religião no Estado laico:

Nos Estados Unidos, ao contrário do que sucedeu na França, a introdução da liberdade de religião não significou uma vitória do laicismo sobre uma autoridade que garantira para as minorias religiosas, no melhor dos casos, uma tolerância interpretada de acordo com seus próprios critérios, os quais eram impostos à população. O poder do Estado, cuja postura quanto a visões de mundo era neutra, não tinha, em primeira linha, o sentido negativo de proteger os cidadãos contra imposições oriundas da consciência ou da fé.224

Destarte, no país norte-americano a liberdade religiosa é protegida constitucionalmente como um direito fundamental que os cidadãos de uma comunidade democrática se concedem mutuamente independentemente dos limites estabelecidos pelas diferentes comunidades de fé. Significa dizer que defender posições fundamentadas em convicções religiosas não é inconstitucional naquele país.

Ainda hoje, o socialismo francês, influenciado pelo radicalismo jacobino, emprega todos os meios para extirpar do cenário público qualquer traço de religiosidade, chegando a restringir a liberdade religiosa, direito já consolidado em Tratados Internacionais.

Veja-se a proibição feita em 2011 às mulheres muçulmanas de usar o véu que recobre a cabeça em espaço público, bem como a reforma da educação, com a elaboração da polêmica Carta do Laicismo, que faz referência à lei do laicismo de 1905, bem como à lei de 2004, que proíbe crianças de utilizar qualquer símbolo

223 Carta do Papa João Paulo II a D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência Episcopal Francesa, dada no vaticano aos 11 de fevereiro de 2005 (Disponível em www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005. Acesso em 23-03- 2014)

224 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 9.

religioso ao frequentar a escola pública, e foi afixada em todas as escolas públicas do país.225

Entre as disposições deste documento consta expressamente a proibição de uso de qualquer sinal de religiosidade, como seriam o véu islâmico, a estrela de Davi ou a cruz católica.