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Os Significados Contidos na Palavra Laicidade

2.3 Secularização e Laicidade

2.3.1 Os Significados Contidos na Palavra Laicidade

A tese de Marco Aurélio Lagreca Casamasso refere um problema de passionalidade no trato da questão da laicidade.195 Esse caráter passional se evidenciou no final do século XIX, na França, em virtude da polêmica sobre o ensino religioso nas escolas públicas. O episódio ficou marcado por um forte conflito entre a França dos católicos e a França dos laicistas, cujos argumentos e atitudes os identificaram a uma ideologia anticlerical e antirreligiosa.

Portanto, o laicismo institui um princípio filosófico, uma ideologia de matriz humanista que entende o homem na sua individualidade mais plural, excluindo qualquer tipo de ligação do caráter individual com o caráter público, social do homem. A laicidade, ao contrário, situa a individualidade dentro do espaço público, na sociedade, devendo, assim, o Estado garantir os meios de concretizar este direito onde nenhum grupo deve ser perseguido, nem, de outro lado, autorizado a se impor de forma autoritária e totalitária, criando uma sociedade onde o espaço público seja de todos, sem constrangimentos.

Logo, o desafio é tratar a laicidade não como uma bandeira ideológica, mas como um instrumento organizador da sociedade política compatibilizando-a com a ampla liberdade religiosa.

Nesse mesmo trabalho Marco Aurélio Lagreca Casamasso identificou expressões como “laicidade de combate”, “laicidade aberta”, “laicidade-separação”, “laicidade-neutralidade”, “laicidade-liberdade”, cada qual com um sentido como: “ideologia”, “moral”, “cultura”, “pacto”, “método”, “princípio de organização política” e “princípio constitucional”.

195 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 130.

Dada a multiplicidade de entendimentos é importante encontrar um núcleo conceitual comum, partindo de seu sentido original, para construir o fundamento do que aqui se designará por laicidade.

Primeiramente é necessário referir que a ideia geral de laicidade é a de uma rígida separação entre religião e Estado, porém este significado não é satisfatório, pois não leva em conta as diversas variáveis embutidas nessa relação, como as implicações do direito à liberdade religiosa.

É necessário, assim, considerar as principais questões que dizem respeito a esta relação para se compreender qual o papel da religião no Estado Laico. E para compreender de modo isento a laicidade é necessário ter em mente dois critérios: o de separação e o de neutralidade.

A ideia de separação contempla “a concepção política que estabelece a separação entre o Estado e as religiões, por intermédio da qual o poder estatal deixa de exercer o poder religioso e as confissões religiosas deixam de exercer o poder político”.196

Significa dizer que há uma autonomia de parte a parte, ou seja, uma não- interferência entre o Estado e as confissões religiosas, respeitando-se a reciprocamente o próprio âmbito de atuação.

Ora, tal autonomia foi, como já mencionado, uma novidade do cristianismo, que pregava a separação entre o poder de César e o poder de Deus.

Essa concepção cristã de laicidade não se coadunava com a crença pagã do César-Deus, nem com a ideia judaica do César-Inimigo, pois Jesus legitima a autoridade terrena, dizendo que vem de Deus197.

De todo modo, laicidade como separação implica a primazia do Estado nas questões públicas, mas implica, de outro lado, a primazia das igrejas nas questões religiosas.

Destarte, a laicidade é uma “rua de mão dupla”, para utilizar uma expressão bem popular. Do mesmo modo que o Estado não quer e está livre da interferência da religião em suas decisões políticas, do mesmo modo as religiões estão livres da mão pesada do Estado no que tange às questões religiosas.

196 CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional

apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 136.

Tomás de Aquino estruturou este princípio cristão tradicional que mais tarde foi reelaborado por Belarmino e Suarez, até configurar-se num corpo de doutrina jurídica, fundamental para o Direito Público Eclesiástico. 198

Desde Leão XIII (1978-1903), a Igreja vem reforçando este dualismo explicitamente, mostrando a necessidade de separação entre poder terreno e espiritual, como organização cristã correta da sociedade, pois sendo ambos derivados de Deus, cada qual deve prosseguir em seu ministério:

Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure proprio”[...] porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.199

Dentre outros documentos, na Constituição Apostólica Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), proferida em 1965 e emanada do Vaticano II, a Igreja, reforçou a necessária autonomia entre a esfera política e a religiosa:

A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana.

No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo[...].200

198 LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 161.

199 LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Immortale Dei. Roma, 1885. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale- dei_po.html> Acesso em 01/03/2014

200 FRANCISCO, Papa. Constituição Apostólica Gaudium et Spes

– item 76. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-

Tal autonomia da esfera pública tem como consequência lógica a completa neutralidade do Estado em relação à religião, ou seja, a impossibilidade de o Estado professar uma religião oficial.

O que não significa de modo algum dizer que a autonomia das realidades temporais deva excluir da sociedade e do âmbito público a referência a Deus e ao destino último do homem, daí a necessidade de cooperação entre ambas as esferas: temporal e espiritual para que o homem atinja sua plenitude.

Neste sentido, a propalada separação entre Igreja e Estado Moderno não deve pretender a separação, também no indivíduo, do aspecto espiritual e do aspecto material, “como se o homem fosse capaz de existir bipartido no temporal (que corresponderia exclusivamente ao Estado) e no espiritual (que unicamente competiria à Igreja)”. 201

Bastante interessante a posição de José Pedro Galvão de Souza. O cofundador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entende que a sociedade civil tem um fim temporal, isto é, os homens reunidos em pequenos grupos fazem esforço comum para obter o que necessitam. Contudo, esses mesmos homens tem um fim outro, qual seja, o fim sobrenatural, a vida eterna. Esta finalidade leva o homem a Deus e, portanto, é superior à ordem temporal. No entanto, ele reflete:

O naturalismo dos nossos dias quer reduzir a vida humana a estas ordens inferiores. Daí provém, na organização das sociedades políticas, a concepção do Estado leigo ou secularizado, que fecha os olhos ao fim sobrenatural do homem.

O Estado tem um fim precipuamente temporal, que, por isso mesmo, se subordina ao fim superior e último do homem. Cabe-lhe, pois, proporcionar a todos condições de ordem temporal que não prejudiquem, mas, antes, favoreçam o bem espiritual.202

Ainda em conformidade com a posição de José Pedro Galvão de Souza, os pontos principais da doutrina católica sobre as relações entre a Igreja e o Estado, tal como se encontram na encíclica Immortale Dei, citada logo acima, são resumidamente:

201 LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p.96.

202 SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 28- 29.

a) Distinção entre o Estado e a Igreja, já que a segunda tem caráter sobrenatural. Há dualidade de poderes.

b) Autonomia. Cada um desses poderes é soberano dentro de sua esfera de ação, cada qual com seus fins e interesses diversos.

c) Relações harmoniosas, já que a dualidade de poderes não significa separação e oposição, até porque, há fatos que estão na esfera de ambas as autoridades.

d) Primazia do espiritual. Aqui o autor afirma que o Estado deve observar os princípios superiores de ordem moral, dos quais a Igreja é a intérprete autorizada.

Neste sentido, outro autor católico escreveu, em 1941:

A Igreja não reivindica para os seus ministros uma acção (sic) preponderante nos negócios do Estado, vê, até com mágua (sic), os que se entregam mais à política do que às funções do seu sagrado ministério; e muito menos reivindica a posse da autoridade pública que decide os negócios temporais e governa os povos.

[...]

Quando se diz ou escreve que a Igreja pretende a conquista do poder civil, que ambiciona que os padres governem, trata-se de uma calúnia.

O que a Igreja ambiciona, não tanto por si, como pelo bem dos indivíduos e das sociedades, é que os homens sejam verdadeiros cristãos [...].203

Foi necessário abordar tal posição mais conservadora primeiramente para desmistificá-la. Sim, pois não se trata de defender poder absoluto à Igreja Católica, mas lembrar que os valores morais por ela defendidos tem muito a oferecer ao poder civil e à sociedade, o que não implica em impor sua visão de mundo e dogmas.

De outro lado, foi importante suscitar a doutrina da Igreja a este respeito, a fim de esclarecer que até mesmo seu Magistério defende a laicidade do Estado. O que é refutado é o laicismo.

Laicidade não implica confundir a Igreja com um oratório doméstico, já que a Igreja não pode ficar relegada a um ostracismo sem qualquer participação política e social.204

203 BEJA, Monsenhor Fino. A Igreja e o Estado. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, 1941, p. 48.

Daí a necessidade de separar o sentido de laicidade e o de laicismo.