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O Aparecimento do Cristianismo e a Mudança de Paradigma da

Recorde-se, a essa altura, que na antiguidade era a religião que determinava o governo dos homens, suas instituições e suas leis. Religião, direito, governo, confundiam-se, eram uma só coisa vista sob três diferentes feições. E, assim:

[...] a religião imperou como soberana absoluta na vida privada e na vida pública; onde o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula sagrada; onde o patriotismo era a piedade e o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida e o homem estava sujeito ao Estado por alma, corpo e bens materiais; onde o ódio contra o estrangeiro se tornava obrigatório, e as noções de direito e de dever, de justiça e de afeto paravam nos limites da cidade; onde a sociedade humana se achava necessariamente encerrada dentro de uma circunferência ao redor de um pritaneu não se vendo possibilidade de fundar sociedades maiores. Tais os traços característicos das cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história.72

O surgimento do Cristianismo completou um ciclo de transformações que já havia sido iniciado pelas conquistas plebeias e pela influência da filosofia.

A independência que o indivíduo da cidade antiga foi conquistando se deveu ao seu desligamento da religião primitiva. O direito e a política foram se desvinculando das crenças, pois os homens já não lhes davam mais a mesma importância e havia perdido muito de sua força.

Contudo, observa Fustel de Coulanges que, na Idade Antiga a religião não era utilizada com propósitos políticos. Porém: “Foi nos tempos de Cícero73 que

se começou a julgar a religião útil ao governo, mas a religião já se sumira dos

corações dos homens”.74

Pois bem, também na visão do historiador inglês Edward Gibbon, iluminista do século XVIII, havia uma conveniência política na manutenção da tolerância religiosa dos diversos cultos pagãos:

72 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 304.

73 Marco Túlio Cícero (109

– 43 a.C.), filósofo, orador e estadista romano que apresentou aos romanos a filosofia grega.

74 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, op. cit., p.177.

A política dos imperadores e do Senado, no que respeitava à religião, era felizmente secundada pela opinião do setor esclarecido e pelos hábitos do setor supersticioso de seus súditos. As várias formas de culto que vigoravam no mundo romano eram todas consideradas pelo povo como igualmente verdadeiras, pelo filósofo como igualmente falsas e pelo magistrado como igualmente úteis. E assim a tolerância promovia não só a mútua indulgência como a concórdia religiosa. 75

O único povo que representava uma exceção a essa harmonia era o povo judeu, que procurou sempre manter sua religião afastada da contaminação dos pagãos.76

Surge, então, na história humana, em pleno Império Romano, uma nova religião, onde Deus não era uma figura humana, com ela em nada se equiparava, era o totalmente Outro. Era o Deus universal, mas não se confundia com a natureza visível, estava acima e fora dela. Era o único Ser capaz de preencher a necessidade

de adoração inata que há no homem. O temor dos deuses transformou-se em amor

a Deus. A religião não era mais um culto particular e excludente, mas dirigido a todos77.

Tal conceito de Deus era tão inovador que mesmo entre os discípulos (judeus), no início da Igreja, houve muita discussão para que se concluísse que, mesmo sendo o Cristo judeu, ele veio propor uma religião universal, aberta também aos pagãos78. Eram todos filhos de um único Pai, o Criador do Universo.

Até então, na concepção dos antigos, a divindade estava sempre ligada a uma raça79, o Cristianismo, revelado após todos esses progressos do pensamento e

75 GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 53.

76 GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 53.

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Jesus Cristo mandou aos seus discípulos: “Ide e pregai o evangelho a toda a criatura” (Marcos 16,15)

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São Paulo na Epístola aos Romanos 3, 29: “É porventura Deus somente dos judeus? Não é também dos gentios? Também dos gentios, certamente.

79 Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino. O direito de praticar um culto fora um privilégio. O estrangeiro fora expulso dos templos; o não-judeu não pudera entrar no templo dos judeus; o lacedemônio não tinha usufruído do direito de invocar a Palas ateniense. É justo dizer-se que, nos cinco séculos que precederam o Cristianismo, todo homem que raciocinava se insurgia contra essas mesquinhas regras. A filosofia ensinara tantas vezes, depois de Anaxágoras, que o deus do universo recebia indistintamente as homenagens de todos os homens. A religião de Elêusis admitia iniciados de todas as cidades. Os cultos de Cibele, de Serápis e de alguns outros deuses haviam recebido, indiferentemente os adoradores de todas as nações. Os judeus começaram por admitir o estrangeiro à sua religião, e os

das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um Deus universal, um Deus para todos, que não tinha povo eleito e não distinguia nem raças, nem famílias, nem Estados.80

Para esse Deus não havia mais estrangeiros [...] O templo passou a ficar aberto a qualquer um que cresse em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário, porque a religião já não era um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo (a não ser para fugir da perseguição), ao contrário, passou-se a ensinar a religião até os confins do mundo. O espírito de propaganda substituiu a lei da exclusão.

Esta nova religião surge em pleno Império Romano instaurado por Otávio que havia pouco (ano 30 a.C.) conquistara a Grécia pela submissão das tropas de Cleópatra (egípcia de sangue macedônico) e Marco Antonio na batalha naval de

Actium.81

Jesus nasceu no reinado de Otávio, o Augusto e foi morto no de Tibério. Foi no reinado do terrível Claudio Nero (54 d.C. a 68 d.C.), assassino de sua esposa e mãe, que o Cristianismo passou a ser perseguido, tendo sido mortos Pedro e Paulo, dentre inúmeros outros chamados de mártires.

1.4.1 A Grande Novidade do Cristianismo

A grande novidade do Cristianismo era sua proposta de distanciamento do poder e da autoridade dos governantes, que se tornou conhecida pela célebre exortação bíblica: “Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”82.

Jesus Cristo ensina que seu reino não é deste mundo, portanto, separa a religião, que se ocupa das coisas do espírito; do Estado, que se ocupa do poder terreno.

Observa Jean Gaudemet que:

A aparição da Igreja Cristã introduz na vida política romana um dado novo e que o problema que ela criará ficará sendo, daí por diante, o de todos os Estados ocidentais. Nos Estados antigos, a religião era sempre associada ao poder público. As coisas mudam totalmente com o Cristianismo. A amplitude que tomou a nova religião, graças gregos e os romanos haviam-no recebido em suas cidades (COULANGES, op. cit., p. 306). Assim, passaram a admitir estrangeiros em suas religiões particulares, mas não havia uma religião universal. 80 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, op. cit., p.306..

81 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 61.

ao proselitismo de seus primeiros adeptos, a organização da Igreja como sociedade, tendo suas regras e suas instituições próprias, a vontade de seus pastores e de seus doutores de fazer repeitar certos princípios de Moral, e, portanto de vida social, colocaram muito depressa o problema fundamental e difícil das relações entre sociedade religiosa e sociedade civil.83

Ora, César, na ocasião era a representação única do poder terreno e do divino:

César, naquela época, era ainda o sumo pontífice, o chefe e o principal órgão da religião romana, o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Em César, sua própria pessoa era sagrada e divina, porque um dos aspectos da política dos imperadores era precisamente o de, ao quererem reaver os atributos da realeza antiga, não terem esquecido o caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes- fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império procuravam reatar, e proclama que a religião não é mais o Estado e obedecer a César já não é o mesmo que obedecer a Deus.84

Assim, o Cristianismo, nos primeiros séculos, como se sabe, foi perseguido pelo Estado e pela religião então constituída, já que, mesmo sem esse intuito, acabou por retirar do Estado e da Lei Sagrada, uma parcela de seu poder, instituindo o que se denominou de “dualismo cristão”.

Do importante estudo de Roberto de Almeida Gallego85 se verifica a seguinte constatação:

O “dualismo cristão” ensejou, desde então, atritos com o Império Romano, que era monista.

Neste diapasão, parece possível afirmar que o início das relações entre o Cristianismo e o Estado se dá em 311 d.C., através do Edito de Galério, por meio do qual a religião cristã passou a ser tolerada em todo o Império Romano. Antes de tal ato político, o Cristianismo era uma religião perseguida e sem voz, inexistindo, até então, entre ela e o Império Romano, qualquer tipo de diálogo capaz de ensejar

83 GAUDEMET, Jean. Instituitions de Làntique, Paris, Recuell Sirey, 1967 apud DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 83.

84 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 307.

85 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

tratativas ou acordos. Com o Edito de Galério, o Cristianismo deixa a clandestinidade e arrefecem as perseguições contra os cristãos.

O Imperador Constantino era simpatizante da nova seita, já que sua mãe Helena era cristã. Ele teria implorado o auxílio divino para vencer Maxêncio, seu concorrente e unificar o Império, durante a batalha da Ponte Mílvio, quando lhe teria aparecido no céu uma cruz luminosa com as palavras “In hoc signo vinces” – “Com este sinal vencerás”. 86

Em 313 a.C. Constantino publica o Edito de Milão, pelo qual a religião cristã passava a ser reconhecida e, portanto, lícita, isto é, cuja prática era aceita em condições de igualdade com outras religiões do império.

Nesse período o Império deixara de ser um estado confessional, passando à neutralidade em relação à religião, deixando de adotar como oficial o que foi chamado posteriormente de paganismo: “Após derrotar seu concorrente Maxêncio, Constantino se tornou o único imperador romano e, pelo Edito de Milão (313), considerou o Cristianismo religião permitida no Império [...]”.87

A sociedade, a partir do Edito de Milão, iniciou um processo de “cristianização”, no período que ficou conhecido por “era constantina”, dado que não apenas o povo se convertia, mas os governantes igualmente:

De fato, o Imperador Constantino, assim como seus sucessores, fez editar uma série de leis que culminaram por favorecer a disseminação do Cristianismo por todo o Império Romano, tais como aquelas que apoiaram a afirmação da autoridade episcopal, a liberação, dos clérigos, do serviço militar e a faculdade concedida aos fiéis cristãos de realizarem doações causa mortis à Igreja, bem como – e principalmente - o combate às heresias.88

Constantino não se converteu logo no início de seu governo, mas somente no ano 337, quando recebeu o batismo, porém como simpatizante da Igreja e tendo coibido a perseguição aos cristãos, foi o responsável pela expansão da nova religião, permitido que os cristãos propagassem sua fé por todo o Império.

86 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 64.

87 DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 64

88 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 45.

Algumas décadas após, o Imperador Teodósio, pelo Édito de Tessalônica, faz da religião cristã a religião oficial do império, tornando-o, portanto, um estado confessional.