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1 INTRODUÇÃO

4.2 Um olhar sobre os usos sociais da língua na construção de diálogo entre

4.2.2 Leitura e escrita como práticas agentivas e identitárias

Adotamos, nesta dissertação, uma concepção de linguagem na qual os usos sociais da língua são o ponto de partida para dar sentido efetivo ao processo de ensino e aprendizagem. Isso influiu diretamente no modo como atuamos no projeto e como abordamos os gêneros textuais entendidos como “formas culturais e cognitivas de ação social corporificadas de modo particular na linguagem” (MARCUSCHI, 2008 p. 156), ou seja, como uma forma “de agir no mundo” (OLIVEIRA, 2009, p. 15).

Os gêneros, nessa perspectiva, serviram “como chaves para a compreensão de como participar nas ações de uma comunidade” (MILLER; PAIVA; HOFFNAGEL 2009, p. 44), já que as soluções para a problemática apontada só foram possíveis porque a turma agiu por meio de textos aos quais foi dada densidade ao serem inseridos em usos sociais. É nesse sentido que Corrêa (2019, p. 55), afirma “o que dá corpo ao texto é o fato de ele se investir das práticas sociais em que ocorre”.

Pudemos perceber que os gêneros ganharam “vida”. Deixaram de ser um “texto-defunto” posto nos braços frios das carteiras de sala de aula onde sua epiderme textual seria dissecada e estudados tão somente aspectos morfossintáticos.

As práticas de leitura e escrita do PL foram usadas como instrumentos para a ação social, levando em consideração o contexto histórico, os anseios da turma, as demandas locais, a funcionalidade dos gêneros, os locutores e seus interlocutores. Nesse processo, entendemos que o protagonismo dos alunos e a natureza agentiva dos gêneros foram fatores vitais para o sucesso do conjunto de tarefas realizadas nas oficinas.

Assim, coletivamente, discutimos nossos objetivos e chegamos a um consenso de que um dos propósitos das ações desenvolvidas seria promover um entendimento mais holístico das manifestações dos festejos dos Caretas da Fazenda Teotônio, a fim de que pudéssemos criar mecanismos capazes de atenuar o agudo descaso com a cultura local e contribuir para a preservação da memória do Boi-Surubim.

Por essa razão, julgamos essencial convidar o mestre Luís para uma entrevista que nos fornecesse mais informações sobre sua vida e sobre as práticas do folguedo, que, até o momento, ainda lidera. A fim de atingir nossas intenções, foi imprescindível que os alu nos produzissem um convite e um questionário para a entrevista. Essas produções estabeleceram um vínculo com a vida real, com um contexto real, com propósitos reais, com pessoas reais e nos deram uma noção substancial sobre os “Caretas” que foi indispensável para o desenvolvimento do PL.

Essas práticas de escrita não aconteceram no vazio artificial da sala de aula. Ao contrário, elas se efetivaram de maneira contextualizada e tiveram como destino um ser histórico de quem as políticas públicas subtraíram o direito de frequentar a escola, pois, ainda na infância, teve de trabalhar na roça para tentar garantir a subsistência com/da família.

Diferentemente do contexto artificial da sala de aula, que anula a função social dos textos, limitando-se a aspectos formais, os alunos escreveram com intuito de interagir e coletar informações relevantes de um ser com corpo, com mãos calejas, um indivíduo que sonha, deseja, lembra, vota, lamenta, chora, ri, trabalha e alegra a comunidade com seu saber. Foi exatamente esse ser social e histórico que moldou a escrita dos alunos, também sujeitos sociais e históricos.

Além da necessidade de apreender melhor os saberes locais, foi preciso criar mecanismos que contribuíssem para a preservação da cultura local e promovessem um diálogo com o conhecimento extraescolar.

Dada a necessidade de ressignificar um espaço ocioso no pátio da escola que servisse como um pon to de comunhão entre a escola e o mundo real, acordamos que seria necessário estruturar o ambiente de tal forma que ecoasse as vozes e o corpo das práticas culturais da Fazenda Teotônio. Planejamos várias ações para esse fim que só foram viabilizadas mediante a agência das práticas de linguagem.

Em função disso, discutimos com os alunos questões pertinentes às ações traçadas, dividimos as tarefas e produzimos anotações que orientaram nossos trabalhos. As tomadas de nota potencializaram o processo de edificação do espaço, uma vez que elas deixaram claro o que cada equipe deveria fazer. Sem essas informações, seria caótica a forma como atuaríamos diante de inúmeros afazeres.

Dentre as ações traçadas, uma delas foi pintar o espaço. A equipe responsável por essa atividade produziu uma lista de materiais de pintura

necessários para esse propósito. A situação exigiu dos alunos pintores uma atitude prática que viabilizou a transformação do memorial, corroborando o caráter agentivo da escrita que insere a vida nas práticas de ensino.

Por se tratar da criação de um ambiente que intentava resguardar o saber local, consideramos relevante contar um pouco sobre a vida dos líderes culturais pintados com a profícua participação voluntária do secretário escolar/artista plástico da escola. Foi com esse objetivo que propomos a construção de biografias as quais cumpriram uma função esclarecedora para quem visitou o Memorial Boi-Surubim sobre a vida e contribuição dos homenageados.

O recurso a textos biográficos levou os alunos a uma pesquisa mais profunda sobre a origem do folguedo na comunidade. A turma incumbida de solucionar essa problemática criou mecanismos para obter mais informações sobre os mestres precursores do festejo. A equipe elaborou questionários e foi a campo entrevistar familiares de seu Luís que esclareceram pontos chaves da vida de Sr. Marcelino e seu filho, Sr. Simão.

Guiados por motivações afins, uma equipe construiu placas que orientaram os transeuntes sobre a localização do memorial. Elas foram fixadas den tro e fora da escola, para que as informações tivessem mais visibilidade. Além de guiar e tentar conscientizar sobre a necessidade de preservar a cultura local, as placas revelaram a existência de um espaço destinado às práticas dos “Caretas da Teotônio”. Vale ressaltar que foi o primeiro ambiente do município com essa intenção.

As poucas palavras de uma simples placa com intenções efetivas nos disseram mais sobre o exercício da cidadania do que as inúmeras análises sem densidade de provas que adestram as práticas de leitura e escrita. No mundo escolar tradicional, parece ser regra tirar o texto de seu habitat natural (o meio social) e querer que a escrita tenha função em espaços vazios. Como exemplo, podemos citar a rotineira prática de extirpar do poema a poesia produzida em um instante de inspiração, dor, revolta ou alegria de um poeta situado no mundo, para que os alunos identifiquem o substantivo sem substância, pois sem o contexto el e não diz nada, fica mudo, sem forma.

A realização de uma exposição fotográfica com imagens antigas e atuais do folguedo contribuiu para traçar uma linha histórica das práticas locais, além de exibir as mudanças que as fantasias sofreram ao longo do tempo. Assim, depois que os alunos coletaram os registros fotográficos, ora pesquisando na internet/acervo da

pesquisa, ora pedindo aos familiares de mestre Luís, a turma se deparou com outro problema: a maneira como seriam expostas essas imagens. A orientações de um tutorial no Youtube indicaram um modo acessível e prático de estruturar as imagens para serem expostas. Desse modo, os envolvidos adquiriram os materiais sugeridos e seguiram o passo a passo.

O conjunto de ações, aos poucos, transformou o ambiente escolar em um lugar cheio de pinturas e fotografias dos festejos com objetos utilitários que revelaram a situação socioeconômica e cultural dos envolvidos, criando um perfil do mundo das práticas do Boi-Surubim.

Com intuito de que o espaço construído pudesse desempenhar seu papel social, pensamos em convidar a população para cu lminância do PL no memorial onde os líderes culturais seriam homenageados e o memorial inaugurado com os alunos dançando juntamente com Seu Luís e seus ajudantes. Nesse sentido, a produção de convites foi imperiosa para que a comunidade se locomovesse até a escola e presenciasse o momento único no qual o saber local e o protagonismo dos alunos exerceram papéis centrais na ocasião.

A leitura por um discente de um pequeno histórico referente aos “Caretas” contribuiu para que os presentes ampliassem seus conh ecimentos sobre a trajetória dessas práticas na comunidade. Tal produção histórica foi o primeiro registro escrito sobre o mundo do folguedo realizado pela família Rodrigues.

A fim de homenagear os mestres presentes no evento, os alunos criaram, juntamente com uma gráfica, na sede do município, comendas enaltecendo cada homenageado “pela dedicação, competência e capacidade de transmitir os conhecimentos sobre a cultura local”. Embora tenha sido um gesto singelo de reconhecimento, as comendas causaram um impacto afetivo muito simbólico, pois foi notória a satisfação demonstrada ao recebê-las. Devido a isso, os alunos tiveram contato direto pela primeira vez com os outros mestres além de seu Luís.

Em cada ação, percebemos o protagonismo dos alunos que assumiram o papel de agentes de letramento, ao mobilizarem recursos e mudarem a realidade da comunidade. Essa transformação ecoou uma metamorfose que aconteceu também na própria identidade discente, pois os colaboradores abandonaram uma postura passiva e inerte e passaram a atuar, a exercer sua cidadania, atenuando o poder de controle sob seus corpos exercido pela permanência na sala de aula qu e,

normalmente, anula a possibilidade de participação na construção do conhecimento.

Observamos, também, que essa imersão dos alunos na vida social intercedida pela escrita, suscitou uma aproximação mais positiva com o objeto de conhecimento. O trabalho com as práticas de linguagem ganhou uma roupagem mais viva e situada, promovendo uma aprendizagem mais satisfatória. Esse poder de agência através da escrita nas oficinas é reiterado por JE quando afirma: “Não tínhamos como fazer acontecer sem que pudéssemos usar a escrita”.

Por fim, entendemos que houve mudança porque houve agência e corporeidade. Só mudamos o que tinha densidade, corpo, vida, identidade. Não se muda o nada. Houve transformação, porque agimos inseridos em um contexto social e histórico em que o “homem está no mundo e com o mundo”, conforme observa Freire (2019, p. 37). E é isso que a escola insiste tanto em negar no processo de ensino: o contexto, a agência e o corpo, quer seja dos sujeitos, quer seja do texto e dos instrumentos didáticos.