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1 INTRODUÇÃO

3.1 Letramentos

3.1.1 Letramento crítico e pedagogia crítica

Em nome do “progresso”, muitas verdades foram impostas, subjugando povos e qualquer forma de pensar contrária à ideologia dominante. Nesse sen tido, o neoliberalismo assume o controle do mundo, dita as regras e influi diretamente no próprio fazer pedagógico.

2 Enxergar o letramento como algo ‘singular’ é esquecer que a vida social é permeada por linguagem

de múltiplas f ormas e destinada a dif erentes usos. Nela, são veiculados gêneros diversos que são praticados por dif erentes pessoas nas mais diversas ativid ades sociais, orientadas a partir de propósitos, f unções, interesses e necessidades comunicativas específ icas, não obstante a compreensão de que alguns texto s são considerados canônicos e, por isso, mais legitimados que outros, socialmente. E é exatamente porque se constitui como algo ‘plural’ que vale a pena problematizar, examinando as diversas f acetas que o constituem e as razões por que esse f enômeno tem se tornado um verdadeiro ‘campo de batalha’ no domínio pedagógico (OLIVEIRA, 2010a, p. 329).

A educação brasileira parece ser uma eterna escrava da elite dominante. Com a invasão do solo nacional, ela foi utilizada com fins garantidores do processo de colonização, impondo uma prática escolar catequética que ignorou completamente o saber dos povos autóctones. Em nome da “civilidade”, o sino da igreja ditou o ritmo da nova ordem, do novo mundo.

Os jesuítas foram expulsos, e muitas mudanças ocorreram no mundo e no Brasil até os dias correntes, porém o fazer pedagógico continuou como um camaleão subserviente, que foi se adaptando aos interesses da classe dominante que oscilou em virtude da dinâmica social, política e econômica. Para Franco (2017, p. 167):

[...] em tempos neoliberais de excessivo controle e regulação das práticas pedagógicas; de excessiva vinculação das prát icas educativas vinculad as à lógica do mercado e de excessivo f oco nas práticas de f ormação ao consumo, nessa realidade, a pedagogia tem pouco a f azer, a menos que s e contente em servir como tecnologia manipulatória para instrumentalizar um ensino transmissivo, árido, sem sentido a seus participantes (FRANCO, 2017, p. 167).

A globalização e a soberania do capitalismo robusteceram práticas pedagógicas - norteadas por um currículo fragmentado alheio à realidade social - que se pautaram na memorização e repetição de exercícios que nublam a realidade opressora higienizada pelo discurso autoritário e fatalista vigente, inviabilizando qualquer debate crítico sobre a possibilidade de amenizar as desigualdades sociais. Nessas práticas, o “professor é aquele que domina o conteúdo” (JORDÃO, 2013, p. 75) e que repassa seu saber para “sujeitos sem conhecimento/cultura”. Essa prática foi questionada por Freire (2018, p. 80), ao afirmar que:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária”, em que a única margem de ação que se of erece aos educandos é a de receberem os depósitos, guard á-los e arquivá-los (FREIRE, 2018, p. 80-81).

A constante doutrinação escolar, nessa ótica, esmaece a possibilidade de contribuir para a construção de um pensamento discente mais crítico, pois vai de encontro a uma atuação dialógica, agentiva e emancipatória capaz de instigar uma leitura mais crítica, visto que a língua, nessa perspectiva tradicional, segundo Jordão (2013, p. 72):

é entendida como um meio de comunicação, não interessando a esta perspectiva questões voltadas a contextos políticos de produção e uso de f ormas da língua, ou relações de poder discursivas instituídas em ambiente de comunicação [...]. Os sentidos se constroem portanto a partir de c o mo o código linguístico f unciona em células específ icas da sociedade (JORDÃO, 2013, p. 72).

Como antítese a essa pedagogia doutrinadora, tecnicista e liberal, o pensamento de Freire concebe o sistema educacional como uma ferramenta política que intenta entender as ideologias dominantes da sociedade para poder transformá- la através do diálogo entre professor, aluno, escola e sociedade. Isto é, não se trata de uma educação que busca tão somente o conhecimento, mas sim a construção de valores, ideias e de um pensamento mais crítico que possa emancipar os sujeitos históricos, tornando-os capazes de transformar o mundo tão desigual.

Na pedagogia crítica, segundo Jordão (2013, p. 72), “é preciso ensinar os aprendizes a reconhecerem as ideologias que se escondem por trás da materialidade linguística”, uma vez que a língua deve ser entendida não como um código, mas como um instrumento ideológico cujos sentidos dos textos não estão contidos no próprio texto. Diante disso, cabe, pois, aos alun os trazerem à tona as verdades ocultas na materialidade linguística, para, com isso, libertarem-se da opressão velada, emanciparem-se e mudarem a sociedade.

Para a perspectiva de ensino do letramento crítico, a língua existe nas práticas sociais e é entendida como discurso cujos sentidos não são ofertados por uma realidade alheia aos sujeitos, mas são construídos na cultura, na sociedade bem como na própria língua (JORDÃO, 2013). Desse modo, a ideologia nessa abordagem assume outro sentido, não sendo portan do uma neblina que oculta a verdade, mas sim um “elemento mesmo do processo de construção de sentidos que permite que o processo aconteça”, conforme argumenta JORDÃO (2013, p. 74). Sob essa ótica, a ideologia possibilita a construção de diversos sentidos compartilhados socialmente que são avaliados con forme as crenças e os valores engendrados no processo interpretativo, visto que “O significado de um texto, bem como os indivíduos que fazem ou leem estão sempre situados dentro dos sistemas sociopolíticos” (CASSANY; CASTELLÀ, 2010, p. 10).

Esses valores e crenças são construções que variam no tempo e no espaço. Sendo assim, não há conhecimento melhor ou pior, mas sim múltiplas interpretações construídas socialmente nas qu ais, muitas vezes, impera um saber em detrimento

de outro por questões tão somente valorativas que privilegiam determinadas classes sociais. Servem, como exemplo, as práticas culturais do Boi-Surubim, saber local que vive às margens do currículo escolar. Um conhecimento tão rico cuja realização, na comunidade local, iniciou -se em meados do século passado, resistindo por décadas ao descaso político.

Infelizmente as práticas de linguagem das instituições oficiais de ensino pouco dialogam com o saber local, causando um distanciamento empobrecedor no processo de aprendizagem indiferente à multiplicidade cultural e linguística presen te nos usos sociais da língua. Como afirma Oliveira (2010, p. 12), é importante entender que “a linguagem não é simplesmente um meio de expressão ou comunicação; é antes uma prática a partir da qual os aprendizes conhecem-se a si mesmos, o seu contexto sociocultural e as possibilidades para o futuro” (OLIVEIRA, 2010, p. 12).

Consequentemente, a escola deve dialogar com as práticas de letramento do contexto sociocultural dos educandos, não subjugar seus conhecimentos de mundo e seu potencial agentivo. Ela precisa entender a relevância da língua como instrumento de poder que pode tanto manter as hierarquias sociais como modificá- las.

Vivemos em um mundo de símbolos os quais evidenciam múltiplas visões da complexidade social e subjetiva; um universo global, onde, quase sempre, prevalecem os valores hegemônicos do sistema capitalista. Em razão disso, comungamos com a ideia de que não existe uma prática de escrita neutra, artificial, calcificada no mundo da forma. Ela é situada e seus usos/intenções variam de acordo com o contexto, valores e discursos.

Essa visão crítica e plural dos usos sociais da lingu agem, capaz de reconhecer a realidade multicultural, ajuda-nos a romper os muros que impedem o diálogo entre o saber local e o saber escolar; instiga-nos a entender o mundo objetivo de modo menos fatalista, fazendo com que os abismos sociais sejam percebidos como algo contingencial e não necessário. Esse é o ponto crucial das abordagens críticas.