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1 INTRODUÇÃO

4.2 Um olhar sobre os usos sociais da língua na construção de diálogo entre

4.2.4 Oralidade, memória e afetividade

O sistema econômico vigente impõe um frenético fluxo de consumo manipulado por mecanismos publicitários que se alimentam da construção de necessidades de compra. Quase tudo se torna obsoleto rapidamente e nossos olhares se prendem às efemeridades e às infinitas novidades expostas nas prateleiras do amanhã.

Parece-nos que essa devoção à liquidez e à pressa tenha afetado o modo como olhamos para o passado, dificultando, quase sempre, as possibilidades de darmos vazão às nossas memórias e às emoções frutos dessa retomada ao passado para além de uma fugidia “#tbt”5.

Com o intuito de mostrarmos aos alunos a relevância da memória na edificação da própria identidade e das tradições orais da comunidade, algumas práticas de linguagem do PL conseguiram promover a socialização de fatos marcantes da vida dos colaboradores, da cultura e história locais, desaceleran do os passos da rotina escolar e dando asas à memória, entendida, de acordo com os estudos de Le Goff (2013, p. 435), como “um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades [...]”.

Analisando os dados, pudemos perceber que as interpretações suscitadas pela leitura da música “Era uma vez”, da cantora e compositora Kell Smith, e do

5 Tbt é uma gíria popular que signif ica Throwback Thursday, e pode ser traduzida do inglês como

quinta-f eira do retorno ou quinta-f eira do regresso. A gíria, simbolizada por #tbt, é utilizada pelos usuários de redes sociais como hashtag para marcar f otos que se ref iram ao passado e/ou que d eem saudades. Disponível em: https://www.signif icados.com.br/tbt/. Acesso em: 21 abr. 2020.

poema “Retrato”, da escritora Cecília Meireles, ativaram a memória dos alunos, reportando-os a momentos marcantes de sua vida tanto na infância quanto na adolescência. Por alguns minutos, o tempo parou , e as lembranças seguiram um intenso curso de exibição de imagens guardadas na memória. Um outro mundo veio à tona e nos afetou com sentimentos saudosistas.

As narrativas oriundas dos flashbacks discentes traçaram, simbolicamente, uma linha cronológica que possibilitou aos alu nos fazer um paralelo entre as distintas fases de suas vidas e refletir sobre as inúmeras mudanças até então ocorridas. Ao mesmo tempo em que os alunos se mostraram felizes por recordarem brincadeiras infantis, lugares, hábitos e amigos antigos, outras memórias causaram pesar: falecimentos e separações familiares.

Notamos que a turma saiu da realidade presente e se emocionou, mergulhando em si mesma, em fatos de sua vida que esboçam sua forma de ser e de ver o mundo, revelando que a memória exerce “uma fun ção decisiva na existência, já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações” (BOSI, 2003, p. 36).

Observamos ainda que algumas ações do PL oportunizaram um debate sobre pontos históricos e econômicos da Fazenda Teotônio e sobre o grande valor da memória coletiva para a formação e manutenção das práticas culturais do Boi- Surubim. Isso é corroborado pelos dados que indicam que os trechos do livro de memórias “Cheiro bom de terra molhada”, 2001, da escritora Maggy Câmara Bezerra, revelaram detalhes da comunidade até então desconhecidos pela turma.

Reparamos que a curiosidade dos leitores foi aguçada pelas imagens descritas pela autora. Essas ilustrações mentais “transportaram” a turma para a Teotônio de meados do século XX, com seus alambiques, pomares, armazéns, enormes jardins, piscinas etc. Outros hábitos, outra paisagem, outros modelos econômico locais foram identificados durante a leitura. Isso favoreceu um entendimento mais objetivo do contexto social e histórico em que os alunos estão inseridos e no qual, tradicionalmente, a família Rodrigues realiza os festejos do Boi- Surubim. Assim, aos poucos, de modo colaborativo, com leituras situadas, fomos erguendo um quadro mais verossímil da cultura e história locais.

O capítulo do livro de Maggy, lido na segunda oficina, descreveu u ma paisagem e um modelo de subsistência muito distintos do cenário atual, aspectos que os alunos puderam aperceber comparando o que se lia, via diante de seus olhos

e ouvia de moradores do sobrado. Entendemos que os alunos não leram apenas as memórias da escritora local, leram paisagens, estátuas, prédios antigos, ruínas e modelos econômicos, ou seja, compreenderam melhor o presente olhando o passado.

A imersão da turma no passado histórico e econômico da Teotônio deu -lhes a possibilidade de uma assimilação mais concreta e holística dos festejos dos Caretas, visto que tais práticas são fortemente afetadas pelo meio social no qual estão inseridas e que, assim como a paisagem e a economia locais, sofreram influencias da globalização. As danças do Boi-Surubim também foram afetadas e modificadas pelo ritmo do sistema.

Além da leitura de textos impressos e da observação empírica de prédios e monumentos antigos que serviram como recursos de ativação mnemônicos, dialogar com os guardiões das práticas do Boi-Surubim foi uma ação basilar para entendermos a vida dos mestres de cultura e as nuances do folguedo, porque, segundo Bosi (2003, p. 15), a:

memória dos velhos pode ser trabalhada como um mediador entre nossa geração e as testemunhas do passado. Ela é o intermed iário inf ormal da cultura, visto que existem mediadores f ormalizados constituídos pelas instituições (a escola, a igreja, o partido político etc.) e que existe transmissão de valores, de conteúdos, de atitudes, enf im, os constituintes da cultura (BOSI, 2003, p. 15).

Como bem mostra o corpus da pesquisa, as memórias de Seu Luís, verbalizadas em um momento especial de confraternização, deram mais densidade aos saberes relativos ao mundo dos festejos dos Caretas, criando laços mais afetivos com o líder do folguedo. Além disso, essa interação diminuiu as barreiras existentes entre o mundo da escola e a vida real e estimulou um olhar discente mais reflexivo sobre quão profícuo é o conhecimento da tradição oral tão desvalorizado pelo sistema de ensino.

As narrativas orais presentes, na fala do líder do Boi-Surubim, ecoaram a riqueza de todo um saber marginalizado, devido ao notório destaque que é dado à escrita em sociedades grafocêntricas como a nossa, fazendo com que tradições orais sejam muitas vezes mutiladas e excluídas dos componentes curriculares.

Enquanto o senso comum tacha de culto quem domina o código verbal escrito e de inculto quem não o compreende, a memória do mestre nos provou o

quanto é preconceituoso tal pensamento, pois suas palavras nos mostraram conhecimento sobre toda a história dos festejos da cultura local realizados por pessoas humildes durante décadas.

Todo esse conhecimento não foi adquirido nos bancos escolares, pois sequer os brincantes tiveram acesso a frequentar as instituições de ensino. Eles o construíram ouvindo as vozes da memória coletiva de geração em geração; aprenderam fazendo, pegando restos fúnebres de animais misturados com palhas de carnaúbas; reproduziram as músicas, ouvindo os cantos, improvisando versos e dançando.

Os alunos puderam perceber que o que há de mais belo na cultura local está em mãos sem canetas, porém tão ricas de conhecimento quanto às que exibem diplomas. Entendemos que a desvalorização das práticas do folguedo é mantida por forças sociais e devemos lutar para que a tradição oral seja respeitada, pois, de acordo com Le Goff (2013, p. 435), "a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”.

Embora os festejos locais não tenham a devida legitimação perante as instituições sociais, Seu Luís se mostrou muito orgulhoso de ser o caboclo líder das práticas que seu pai e irmãos deixaram como legado e insiste em compartilhar com a comunidade a alegria, os ritos e dilemas dos Caretas. Com esse folguedo, ele faz de seu terreiro um espaço de empoderamento e resistência, pois as paredes de taipa de sua humilde casa não impedem que o mestre seja um rei guardião de um tesouro imaterial de valor incalculável: a memória social.

Acreditamos que a escola, guardiã oficial do saber formal, tenha muito o qu e aprender com o que lhe escapa, seja em seus contornos físicos, seja nos livros didáticos. Ela precisa entrar em comunhão com abordagens de ensino mais democráticas que aceitem a amplitude linguística, humana e a diversidade cultural do meio no qual estamos inseridos. Assim, embora isso seja um processo lento, entendemos que O Memorial Boi-Surubim seja um ponto de intersecção que possa unir os saberes locais aos formais, descontruindo preconceitos e estabelecendo pontes entre o que está fora da escola, mas deve servir a ela de ponto de partida para o ensino-aprendizagem.