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1 INTRODUÇÃO

4.2 Um olhar sobre os usos sociais da língua na construção de diálogo entre

4.2.1 Reposicionamento identitário do professor no PL

Ao longo do tempo, o professor tem desempenhado papéis distintos, fortemente, influenciados pelo contexto sociocultural e político. Traçar um perfil da identidade docente é embrenhar-se na complexidade das vicissitudes históricas e sociais que a questão requer – o que não é nossa intenção neste trabalho. Interessa-nos, sim, traçarmos, de forma contextualizada, um esboço de possíveis elementos que influíram no nosso (re)posicionamento identitário, ao trabalharmos com projetos de letramento.

Cremos que seja complexo darmos contornos bem definidos para esta construção e sabermos de qual ponto partimos devido ao contínuo fluxo de mudanças sociais e simbólicas que marcam a construção e a manutenção da identidade, conforme afirma Woodward (2000). No entanto, faz-se necessário termos um referencial de análise. Aqui elegemos o nosso posicionamento docente an tes do projeto.

Precisamos entender um pouco a nossa prática, a nossa própria imagem (self) e compreender como a nossa identidade se constrói. A esse respeito, Woodward (2000, p. 8) afirma que a “identidade é relacional”, pois “para existir depende de algo que esteja fora dela”. Formamos nossa identidade, comparando- nos com o que está fora, com o que é diferente. Além das representações e das

questões socioculturais, a visão do outro também afeta nossa autoimagem. Aquilo que supomos que idealizam de nós mesmos e de uma boa aula instiga ações que fazem ecoar tal imagem produzida pelos outros.

Analisando nossa prática em sala de au la, percebemos que, normalmente, atuamos voltados para o passado e ficamos alheios às novas formas de aprender que levam em consideração o contexto, o saber e o poder agentivo do aluno na construção do conhecimento. Negamos, com frequência, a possibilidade de um ensino mais democrático e dinâmico, capaz de dar possíveis respostas aos problemas existentes no convívio social.

Velhas práticas de aprendizagem nos colocam resistentes às atuais demandas da contemporaneidade oriundas, principalmente, da revolução da tecnologia da informação e da comunicação. Quando recusamos essas transformações, eliminamos a possibilidade de nos transformarmos e provocarmos mudança no outro.

Mesmo defendendo uma perspectiva mais crítica de ensino e não acreditando, assim como Woodward (2000, p. 30), que “a emancipação social esteja nas mãos de uma única classe”, concebemos o exercício do magistério como uma possibilidade de transformação social. Apesar de estarmos cientes disso, repetimos atitudes em sala de aula que contribuem para manter tão somente o status quo do sistema capitalista neoliberal, tendo como referência avaliativa padrões educacionais de ordem capitalista que tendem a extirpar as diversidades, como bem destaca Street (2014, p. 198) em seus estudos:

O resultado desse processo de padronização de avaliações educacionais é a perda de “diversidade: diversidade de cultura, de tradições, crenças e práticas” e, com ela, a perda da aprendizagem intercultural (p. 21-22), junto com a privação dos países de uma linha política de “sistemas educacionais alternativos” (STREET, 2014, p. 198).

Agimos, muitas vezes, como repassadores de conteúdos em monótonas aulas expositivas nas quais os alunos não são ouvidos e não fazem parte da construção do conhecimento; o saber informal é descartado; os usos sociais da língua, desconsiderados e o território/tempo de aprendizagem determin ados pelas convenções tradicionais da escola.

Na contramão do negativismo simbólico que afeta diretamente nossa autoimagem fragmentada, insistimos em cumprir nossas obrigações com

responsabilidade, tentando refletir que profissionais somos e que professores queremos ser.

Nossas aflições, desilusões e alegrias têm causas sociais e simbólicas assim como a ideia da insistência em exercer a profissão, mudando a n ós mesmos e, consequentemente, a nossa prática docente, mesmo diante de tantas dificuldades.

Acreditamos, pois, que nosso (re)posicionamento em busca daquilo que queremos ser, tenha se in iciado bem antes da aplicação do projeto, isto é, começou quando nos sentimos incomodados com nossa atuação pedagógica e decidimos ingressar no mestrado (PROFLETRAS). Enfrentamos muitos desafios em busca da atualização de um repertório intelectual que pudesse ecoar nossos anseios.

Na academia, a interação com novos saberes e experiências dos demais mestrandos, professores e orientadora acadêmica nos tornou mais críticos, instigando-nos a abandonar a condição de professor repassador de conhecimento e assumir uma postura de professor pesquisador que intenta refletir e associar a teoria à própria prática, pois segundo Oliveira (2008, p. 101): “Se a teoria é efeito ou resulta da compreensão que construímos sobre o nosso fazer, ela também o subsidia, na medida em que funciona como um dispositivo norteador, capaz de explicar ou dar sentido ao processo de objetivação da realidade”.

Para trabalharmos com o PL, tivemos de redefin ir nossas práticas antes mesmo de aplicá-lo. Foi preciso diminuir as distâncias entre nós e os alunos. Foi necessário ouvi-los para sabermos que questão problemática poderia ser abordada no projeto e tornar as ações mais significativas e menos abstratas.

Decidir isso com os alunos foi um modo de fazer diferente, foi um alinhamento com princípios mais democráticos de ensino que tan to defendemos. Saímos de uma posição central em que, quase sempre, decidimos tudo sozinhos, para fazer reverberar os desejos da turma. Em razão disso, partimos de outro ponto (problemas locais), de outro olhar (olhar do aluno) que nos moldou e exigiu de nós uma nova atuação.

Dar voz ao outro, aos problemas da comunidade apontados pelos alunos e atuar de maneira contextualizada e colaborativa com intento de solucionar tais dilemas foram vetores direcionadores de todo o trabalho, de nossa prática e de nossa maneira de ser.

Assim, trocamos o livro didático por dilemas reais da comunidade e adotamos novas práticas de aprendizagem, pois as respostas para os impasses existentes demandavam a ampliação dos espaços de aprendizagem e novas práticas de linguagem. Com efeito, pudemos notar que as tradicionais práticas de leitura e escrita já não cabiam em sala de aula e que precisávamos de mais recursos, mais habilidades tecnológicas e outros suportes para atender a nossos objetivos.

A busca por tentar encontrar soluções para a problemática em pauta nos obrigou a ampliar os territórios de aprendizagem, pois as possíveis respostas não estavam na lousa ou na exposição oral do professor em sala de aula, estavam no esforço coletivo em agir e usar múltiplos saberes dentro e fora da escola.

De acordo com MA, substituir o contexto artificial da sala de aula por atividades em outros espaços foi “bom porque saímos da teoria e fomos para a prática”. Comprovamos uma avaliação também positiva sobre essa questão, no depoimento de MN, ao retornar da visita ao sobrado na oficina II: “Bom, eu gostei muito dessa oficina, porque fomos mais a fundo, nós mesmos fom os conhecer o sobrado sem ter que ficar ouvindo outras pessoas falando como era [...] outro ponto positivo foi ter ouvido as histórias que não sabíamos [...] sobre o Boi e sobre a Fazenda Teotônio [...]”.

Transbordamos as paredes da escola e nos tornamos rios em busca do mar do saber: deixamos de ser uma sala pântano, água parada. Rompemos a barragem do conhecimento estéril e fertilizamos as práticas culturais da comunidade. Para chegarmos ao nosso destino, contornamos muitos obstáculos, adaptando-nos à natureza do solo, utilizando como bússola um novo olhar afetado pela diferença.

Assim como a desterritorialização dos locais de aprendizagem, a inserção dos aparatos tecnológicos e de múltiplas formas de linguagem, na realização de nossas tarefas, influenciou no nosso fazer didático, pois em vez das aulas expositivas e das produções artificias de leitura e escrita da escola, os alunos passaram a se comunicar em rede, utilizando-se de novas ferramentas de comunicação que viabilizaram a construção de textos multimodais os quais cumpriram funções sociais significativas para o aluno e para o projeto.

O uso de outros recursos de aprendizagem contribui para alterar o modo como os alunos acessaram, socializaram e produziram conhecimentos. Inseridos em

um contexto mais altruísta, engajado e dinâmico, alunos e professor se tornaram pesquisadores de linguagem.

A busca por novas informações para solucionar os problemas existentes gerou uma aprendizagem mais autônoma, colaborativa e crítica. Nesse processo, os discentes participaram efetivamente da construção do conhecimento: pesquisaram, debateram, questionaram, sugeriram, socializaram, escreveram, leram, pintaram e desenharam. Esse redirecionamento agentivo influiu diretamente na autoestima dos discentes os quais puderam exercer sua cidadania. Isso é ratificado pela própria fala de KA e NA, respectivamente, ao relatarem como se sentiram, ao participarem do projeto: “Senti minha presença útil, que ajudei em várias coisas” e eu me senti “bem, pois estou ajudando a deixar essa cultura marcada na mente, em cadernos e na história”.

Durante quase duas décadas de magistério, nunca realizamos uma atividade na qual o aluno tivesse afirmado que se sentiu “útil”. Ou talvez, nunca tivéssemos parado para ouvi-lo. São constatações dolorosas e, ao mesmo tempo, inspiradoras, pois reiteram que estamos agimos um pouco mais alin hados com a busca de uma nova prática. O nosso lugar de atuação já não foi mais o centro do processo de ensino e aprendizagem, pois ensinamos e aprendemos juntamente com os alunos.

Atuar assim nos posicionando deslocados do centro não extinguiu nossa tão defendida “autoridade”, pois descontruímos o conceito de professor autoritário repassador de conteúdo e passamos a agir como um mediador agentivo, isto é, como “um mobilizador de recursos, atento às necessidades, às potencialidades e aos saberes dos membros da comunidade de aprendizagem (a escola) e voltado para a construção da autonomia do aluno” (OLIVEIRA, 2010b, p. 51),

A sensação de “ser útil” também nos deixou mais emotivos. no sentido de que trabalhamos juntamente com os alunos na construção de algo genuinamente relevante para a sociedade (memorial) e demos “voz e oportunidade aos alunos de agirem e narrarem suas experiências”, relacionando “o saber escolar aos saberes sociais” (OLIVEIRA, 2008, p. 95).

Nesse processo, aprendemos a ser um professor mais atencioso, mais democrático, mais dinâmico, mais crítico, mais observador, menos vaidoso e mais prático, pois “é buscando a transformação social que os agentes se transformam a si mesmos” conforme Oliveira (2010b, p. 50).

Não ficamos de braços cruzados teorizando as estruturas linguísticas e esperando as políticas públicas resolveram nossos problemas. Repensamos nossa maneira de ensinar/aprender e nos tornamos sujeitos (alunos e professor) capazes de agir no mundo, utilizando diversas lin guagens e habilidades, como verdadeiros cidadãos. Aprendemos a aprender nas mais distintas situações, porque, quando abandonamos o título de detentores do conhecimento, concebemos o aluno efetivamente como sujeito de conhecimento e mobilizamos recursos, in formações e habilidades, como nos chama a atenção Freire (1996, p. 12): “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.

Imersos nas oficinas, os alunos nos ensinaram a trabalhar com programas de edição de imagens, utilizar suas práticas de linguagem fora da escola, as quais não podemos descartá-las. Mostraram-nos seus conhecimentos de mundo e suas múltiplas habilidades. Revelaram-nos como são carentes e emudecidos. Expuseram- nos um pouco fatos marcantes de suas vidas que nos ajudaram a entendê-los melhor. Provaram que são capazes de transformar a realidade e usar a língua como símbolo de poder, contanto que faça sentido para eles e que se sintam parte do processo. Aprendemos com os alunos que, de fato, nossa prática estava errada e que não podemos construir nada sozinhos e que eles não são baús de guardar informações.

Nenhuma mudança seria possível, caso pensássemos e fizéssemos tudo igual. O PL nos instigou a aprender a fazer diferente, a buscarmos soluções de modo colaborativo, afastando-nos de práticas tradicionais inúteis que negam as transformações sociais, os usos reais da língua e o próprio exercício da cidadania. Mobilizamos saberes e reinventamos nossa prática e nossos métodos de ensino e aprendizagem.

Para tanto, foi preciso mudar, enfrentar desafios, aceitar o novo e ressignificar o velho, transgredir o lugar comum, transformar-se. Hoje, temos um outro olhar, não um olhar de quem leu em algum canto, mas um olhar de quem pesquisou, refletiu, vivenciou, fez diferente e se reconstru iu.

É nesse sentido que nos construímos e que mudamos, ao longo de nossa trajetória. Se essa transformação ocorreu é porque nossa identidade “torna-se ‘uma celebração maleável’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpretados nos sistemas culturais qu e nos

rodeiam” (HALL, 2006, p. 13). Acreditar nisso é ir de encontro à concepção essencialista na qual as identidades não mudam, somente evoluem.