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1 INTRODUÇÃO

4.2 Um olhar sobre os usos sociais da língua na construção de diálogo entre

4.2.5 Multiletramentos e multimodalidade

As intensas transformações sociais e tecnológicas disseminaram diversos modos de comunicação, exigindo novas formas de ler e escrever com intuito de atender às demandas sociais do mundo globalizado, tão marcado pelo intercâmbio cultural, pois vivemos em um meio cada vez mais pluricultural e multimodal.

Os diferentes meios de comunicação e mídias possibilitaram o acentu ado hibridismo de linguagens que se apresentam, diariamente, aos nossos sentidos, relacionando a leitura e a escrita a signos diversos. Essa mudança se deu, de acordo com Rojo (2013, p. 19-20), devido a:

mudanças relativas aos meios de comunicação é à circulação de inf ormação, o surgimento e a ampliação de comunicação de acesso às tecnologias digitais de comunicação e da inf ormação provocaram a intensif icação vertiginosa e a diversif icação da circulação da inf ormação no s meios de comunicação analógico e digitais [...], implicando signif icativas maneiras de ler, produzir e f azer circular textos na sociedades. Provocaram, portanto, novas situações de produção de leitura-autoria (ROJO, 2013, p. 19-20).

Assim, mais do que nunca, parece ser impossível falarmos em práticas linguísticas monomodais, uma vez que, segundo Corrêa e Dias (2016, p. 243), “a contemporaneidade é caracterizada pela multiplicidade cultural das sociedades, qu e se expressam e se comunicam por meio de textos multissemióticos (impressos ou digitais)”. Os textos interagem com outras linguagens (imagens, sons e gestos) e múltiplos saberes/interações culturais, criando um todo interdependente e dialógico.

Para Dionisio (2014, p. 42), o que caracteriza essa multimodalidade são justamente:

[...] as combinações com outros modos para criar sentidos. Ou seja, o que f az com que um signo seja multimodal são as escolhas e as possibilidades de arranjos estabelecidas com outros signos que f azemos para criar sentidos, com os mesmos, quais as articulações criadas p or eles em suas produções textuais (DIONISIO 2014, p. 42).

Em virtude dessas complexas práticas comunicativas da contemporaneidade é que falamos em multiletramentos. Uma única palavra que, consoante Cope e Kalantzis (2000), leva em consideração as múltiplas culturas e as múltiplas

linguagens utilizadas nos textos para fazerem sentidos nas práticas discursivas da atualidade.

Conduzindo essa discussão para o campo escolar, muitas vezes, escapam do planejamento práticas pedagógicas que abordem essas novas modalidades da língua e as habilidades de utilização de meios que explorem o hibridismo de linguagens. Ou seja, os alunos vivem imersos em universo pluricultural cercado de novos letramentos, muitas vezes ignorado pela própria escola, como declaram Rojo e Barbosa (2015, p. 135) ao declararem que:

Não é dif ícil reconhecer o quanto a escola ainda privilegia quase que exclusivamente a cultura dita “culta”, sem levar em conta os multi e novos letramentos, as práticas, procedimentos e gêneros em circulação nos ambientes da cultura de massa e digital e no mundo hipermoderno atual (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 135).

Embora os livros didáticos tragam uma abordagem textual multimodal, normalmente, as práticas de escrita e de leitura se limitam à exploração do texto impresso e as atividades com leitura ficam restritas à decodificação dos signos alfabéticos, mostrando-se alheias às interações multimodais de comunicação do mundo globalizado.

Enquanto a rotina escolar continua alheia aos novos modos de comunicação, nessas mídias digitais de alta qualidade, os estudantes acessam diversos conteúdos, quer da cultura popular/erudita, quer da cultura de massa que se hibridizam, criando misturas que “reinam cada vez mais soberanas” (ROJO; MOURA, 2012, p. 15).

De forma ilustrativa, podemos utilizar exemplos da própria comu nidade escolar, na qual encontramos alunos de diferentes crenças e etnias socializando produtos culturais de outras regiões do país e do mundo. São discentes (muitos deles filhos de agricultores) que usam calças jeans, tênis de marca estrangeira e discutem os lançamentos de jogos eletrônicos tanto nos corredores da escola quanto pelo bate-papo no Whatsapp - espaço virtual usado também para realizarem chamadas de voz ou vídeo. Em suas contas no Facebook, postam imagens de sua rotina andando a cavalo vestidos com gibão de couro, tiram selfies embrenhados na caatinga, compartilham memes sobre jogadores europeus, divulgam videoclipes de forró, rock, funk, rap, reggae etc.

Entendemos com isso que seja difícil hoje agirmos socialmente por meio de práticas de leitura e escrita indiferentes às construções de sentidos motivadas pela intensa simbiose das linguagens humanas. No desenvolvimento do PL, esse fenômeno pôde ser observado nos seus diferentes momentos de aplicação: todas a s ações de linguagem exigiram textos multimodais, como evidencia o corpus da pesquisa.

Os dados nos revelam que agimos socialmente fazendo uso dos múltiplos signos dos meios de comunicação disponíveis ao nosso redor. A busca por respostas para os dilemas sociais presentes na comunidade por meio de práticas de leitura e escrita, no projeto Boi-Surubim: desafios da cultura popular em Madalena, exigiu que adotássemos uma abordagem mais ampliada de ensino de língua, atentando para as suas novas composições textuais. Foi preciso que nos apropriássemos dos meios de comunicação atuais disponíveis para que atingíssemos nossos objetivos.

Como indicam os dados da pesquisa, a exibição de imagens associadas aos textos verbais nos slides de apresentação foi uma das formas de comunicação utilizadas no processo de execução das tarefas que viabilizou uma compreensão mais concreta dos caminhos que intentávamos trilhar no PL. Em um mesmo espaço, imagens e palavras dialogaram ampliando o leque informativo, pois alguns alunos nunca tinham visto uma imagem do Boi-Surubim e a encontraram exposta como slogan nos slides.

Pudemos observar que essa pluralidade de linguagem dos slides enriqueceu as possibilidades de interpretações, o modo de fazer sentido. A turma se embrenhou no mundo simbólico que a figura do Boi-Surubim representa, servindo como um gatilho para explorarmos os festejos e debatermos os dilemas que afetam o folguedo da região. Em comunhão com o texto verbal escrito, o uso de uma semiose visual, nos slides, transcendeu a ideia de mero adorno composicional; funcionou como um elemento essencial para divulgar e apresentar o projeto.

Por ocasião de uma das oficinas, notamos que a sonoridade e as imagens associadas à letra da música “Era uma Vez” (Kell Smith) instigou uma maior fruição estética, aflorando um saudosismo até então adormecido. Elementos como os gestos da cantora, seu timbre de voz e seu desempenho (alternado com cenas de crianças brincando) provocaram efeitos que o texto impresso por si só não

conseguiria, provavelmente. A imbricação entre esses modos pode influenciar a forma e a leitura da mensagem veiculada, segundo Dionisio (2014).

Dessa forma, imagens em movimento e sons musicais acrescentaram à linguagem verbal um novo olhar, uma nova leitura. No PL, deram-nos mais emoção, empolgação e vontade de socializar as memórias individuais, mergulhando em f atos da infância como no videoclipe. A música conjugada ao texto impresso criou uma atmosfera mais envolvente que estimulou o diálogo entre os alun os de tal modo qu e perderam um pouco a timidez e socializaram momentos importantes da infância.

A pesquisa mostrou ainda que os desenhos realizados pelos alunos tentaram transferir para o papel as suas impressões em relação aos aspectos psicológicos e físicos do eu lírico do poema “Retrato”, da escritora Cecília Meireles. Além de promover os talentos artísticos da turma, a associação da imagem ao mundo poético fez os alunos mergulharem no universo de angústias descritas pela poetisa, principalmente na primeira estrofe do poema como mostra a figura a seguir.

Figura 10 - Desenho ref erente ao eu lírico do poema RETRATO

Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Em cada traço, notamos uma busca de comunhão com as vozes do texto impresso, como se os alunos tentassem dar vida à dor que as palavras supostamente evidenciaram, de uma forma única, imersos em si mesmos, como se sentissem a angústia do eu lírico. Assim a imagem se funde com o texto impresso, revelando uma forma peculiar de o aluno mergulhar na poesia e expor sua compreensão.

Pelo texto impresso, os alunos puderam inferir que o eu lírico sofreu algumas transformações que lhes tornaram alguém triste ou até mesmo depressivo. Nas discussões engendradas pelos versos, os alunos cogitaram qu e o eu lírico seria uma pessoa adulta que, possivelmente, foi feliz em outras fases da vida. Essas ponderações nos levaram para um diálogo mais profundo sobre as mudanças na vida dos próprios alunos. Algo que foi muito emocionante, pois os alunos compartilharam fatos marcantes de suas vidas como separação dos pais, perdas de entes queridos, mudanças físicas etc. Isso criou um clima de cumplicidade entre a turma e nos deu uma visão mais densa sobre os colaboradores.

Outro ponto alto das atividades foi a produção dos convites. Os próprios alunos partiram de suas experiências de escrita, de manuseio tecnológico e construíram uma formatação textual na qual se evidenciou uma variedade multissemiótica, pois essas produções textuais exigiram dos colaboradores, além da escrita manual/escrita impressa, a utilização de outras ferramentas de tratamento de imagem (PicsArt) e de edição de texto (Word) ofertados pelas TDIC para dar sentido (vide a figura 11, a seguir).

Figura 11 - Convite para a culminância do projeto

As imagens do Memorial, em segundo plano, bem como a figura do Boi- Surubim em destaque, no canto inferior direito do convite, interagem com o código verbal escrito, ampliando as informações do convite. Elas revelam ao leitor detalhes da própria composição estrutural do espaço destinado à preservação da cultura local e evidenciam as especificidades do personagem principal dos Caretas da Teotônio.

Além desse entrelaçamento do modo verbal e imagético, destacamos outros elementos semióticos como a posição das palavras, a fonte, as cores e os tamanhos das letras. Todos eles contribuíram para produzir efeitos diversos, corroborando o que Dionisio (2014, p. 41) defende: “Nosso alfabeto não é mais formado apenas de letras, sem vida, sem cor e sem movimento”.

À vista disso, a palavra convite assume um tamanho maior e uma cor de destaque (preta) para informar ao leitor a natureza do texto. As demais informações são escritas em uma fonte menor e amarela, com um leve sombreamento, para se destacar da tonalidade das imagens de fundo, destacando os pontos essenciais da mensagem.

Os signos imagéticos dos convites proporcionaram uma leitura mais contextualizada (lançando o leitor imediatamente para o teor da mensagem) e, até mesmo, mais democrática, pois quem não conseguiu decodificar as palavras, leu as imagens. Além dessa imersão no assunto do texto, as imagens selecionadas do próprio Boi-Surubim serviram como uma espécie de elemento de homenagem e divulgação da cultura local. Podemos inferir, inclusive, que elas tenham motivado reações mais emotivas nos idealizadores/amantes do folguedo, pois, na diagramação textual, estava presente o símbolo de décadas de resistência e alegria.

Algo semelhante à produção dos convites se deu com a construção das biografias, em que os modos distintos de linguagem se fu ndiram permitindo criar sentidos discursivos mais ricos.

Figura 12 - Biograf ia dos líderes da cultura local e pinturas do Memorial

Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Os alunos produziram biografias (coluna esquerda da figu ra 12, anterior) utilizando-se de elementos relevantes para o gênero biografia como os registros fotográficos, cuja semiose visual, além de fazer um registro histórico, comunga com a modalidade verbal que tem seu sentido ampliado por tal interação multissemiótica. As biografias produzidas pelos alunos ganharam um suporte de madeira e foram fixadas ao lado da imagem pintada de cada biografado no Memorial Boi - Surubim, como mostra a figura 12, anterior, na coluna direita. Assim, cada texto cumpriu efetivamente seu papel social, informando e interagindo com outras linguagens (pinturas, fotografias, desenhos, objetos etc.).

Seja pesquisando na internet, dialogando no WhatsApp, discutindo com os colegas, construindo convites etc., os textos produzidos apresentaram multimodalidade. Fato esse que ampliou o olhar sobre as formas de produzir sentido, visto que os usos da linguagem no PL se manifestaram de modo mais versátil e instigante, ampliando o próprio conceito de texto e dinamizando as formas de agir por meio da língua, conforme Brito e Sampaio (2013, p. 302) chamam à atenção:

Na chamada “era digital”, o conceito de escrita não diz mais respeito apenas ao texto impresso. É necessário saber se relacionar com a mesma nas diversas mídias em que ela se f az presente; pois novas maneiras do ato de ler, e simultaneamente de produzir textos, f oram criadas, exigindo dos sujeitos outras competências além das linguísticas para que sejam capazes

de compreender a f unção da multiplicidade de f ormas da língua (BRITO; SAMPAIO, 2013, p. 302).

A riqueza de linguagem usada nas oficinas propiciou a construção de um espaço que fez ecoar as inúmeras formas comunicativas, pois quem visita o Memorial Boi-Surubim tem a oportunidade de ler não somente os códigos linguísticos do espaço, mas sim desenhos, pinturas, plantas e objetos que dialogam com a multiplicidade de formas de linguagens. Trata-se de um ambiente onde a modalidade verbal e não verbal se unem para narrar as histórias de um universo tão particular da cultura local, promovendo assim uma rica troca de experiências de vida e valores culturais. Nesse sentido, comungamos com a ideia de Corrêa e Dias (2016, p. 248) para quem a cultura “é resultante da criação humana (costumes, ideias, crenças, leis, conhecimentos, etc.) e todas as pessoas possuem uma forma de pensar, agir, expressar, cada qual com sua própria cultura, resultando em variedades culturais” (CORRÊA; DIAS, 2016, p. 248).

Por tudo isso, acreditamos ser n ecessário repensarmos nossas estratégias de ensino. O mundo exige novas formas de uso da língua e, consequentemente, precisamos de novas práticas. Não se trata de atribuir ao novo ou à tecnologia o segredo do êxito, mas de não negar aos alunos a possibilidade de tomar consciência da natureza da linguagem quanto às diversas simbioses que a constituem.