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Liberdade de Limitação: Poder Auto-limitante

I I A FÉ SALVADORA

IV O PODER SOBERANO DE DEUS

I. x., p 57ss., fala sobre algumas formas de poder humano.

1.4. Liberdade de Limitação: Poder Auto-limitante

Algumas pessoas ficam desconfiadamente impressionadas pelo fato de falarmos de Deus, que é Todo-Poderoso, como sendo isto ou aquilo, fazendo e não fazendo, podendo e não podendo. O raciocí­ nio de tais pessoas, que a priori pode parecer lógico, é o seguinte: Se Deus é soberano, Livre e Todo-Poderoso, ele pode muito bem, conforme sua vontade, mudar “as regras do jogo”,404 modificando as leis, seus princípios de ação, seus critérios; enfim, alterar aquilo

403 “Jesus Cristo, nosso Mediador, cumpriu de forma cabal e vicária as demandas da Lei em favor de seu povo. Se a obra de Cristo não fosse plenamente satisfeita, não haveria ‘bênção’ alguma a ser aplicada (Jo 17,4; 19.30; Hb 9.23-28; IPe 3.18)” (Hermisten M.P. Costa, Breve Teologia da Evangelização, São Paulo, PES, 1996, p. 27; vd. também: Con­

fissão de Westminster (1647), VIII.1, 5, 8; Catecismo M aior de Westminster, Perguntas:

36, 37 e 59; J. Calvino, As Institutos, 11.17.1 ss.).

404 Atitude muito comum nas crianças que, quando estão perdendo o jogo, formam uma nova regra para se beneficiar, dizendo que o que antes não podia “agora pode”. Diga-se de passagem que esta atitude infelizmente não caracteriza somente as crianças; muitas vezes nós adultos, quando estamos investidos de alguma autoridade, somos amiúde - com uma imaturidade maldosa - “levados” a mudar as normas e as leis, obedecendo casuísmos que, “coincidentemente”, nos beneficiam...

que ele mesmo revelou e fez registrar em sua Palavra. Pois bem; se este poder pertencesse a um homem, deveríamos temer. A história tem demonstrado que o pensamento do Lorde Acton (1834-1902) é verdadeiro em muitos casos, visto que amiúde o poder tende a cor­ romper.405

Afinal, Deus poderia ou não fazer tudo isso?! Deus estaria su­ jeito à corrupção resultante do mal uso do poder? Retardemos um pouco mais a resposta.

Geralmente quem raciocina da forma apresentada acima tem em mente a ação do homem como modelo - cometendo o mesmo equívoco de muitos gregos na antigüidade406 -, tomando o homem como parâmetro para uma comparação, como se o “homem fosse a

405 A frase completa é a seguinte: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrom­ pe de modo absoluto. Os grandes homens são quase sempre homens maus” (Lord Acton,

Ensaios e Estudos Históricos).

406 Apesar do paganismo grego da antigüidade sei' cheio de lendas c superstições, dc quando em quando alguns pensadores se levantavam contra as crenças e costumes popula­ res, declarando algo de relevo. Entre os filósofos da antigüidade que souberam criticar com discernimento as práticas religiosas de seu tempo destacamos Xenófanes (c. 580-C.460 aC.), Heráclito (c. 500 aC.) e Empédocles (c. 495-455 aC.).

Xenófanes faz uma crítica mordaz a Homero e Hesiodo, dizendo:

“Homero e Hesiodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergo­ nha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.

“Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo, adultério, e fraudes recíprocas.

“Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.

“Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem com elas pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo sua própria forma.

“Os etíopes dizem que seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos” (Xenófanes, Fragmentos, 11-16. ln: Gerd A. Bornheim (organizador), Os Filósofos Pré-Socráticos, 3“ ed. São Paulo, Cultrix, 1977, p. 32).

Xenófanes propunha uma visão próxima ao monoteísmo ou, pelo menos, um “politeísmo não antropomórfico” (W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, São Paulo, Paulus, 1995, p. 211., di­ zendo: “Um ünieo deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais” (Xenófanes, Frag. 23).

H eráclito ridicularizava o antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea, di­

rigindo sua crítica à prática do sacrifício como meio de purificação, e às orações feitas às imagens: “Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem também suas orações a estátuas, como se fosse possível

IV - O Poder Soberano de Deus 151

medida de todas as coisas”.407 Este tipo de raciocínio encontra alen­ to em Thomas Hobbes (1588-1679), que entendia que “o soberano de uma República, seja ele uma assembléia ou um homem, não está absolutamente sujeito às leis civis. Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis, pode, quando lhe apraz, livrar-se desta sujeição revogando as leis que o incomodam e fazendo novas.”408 De fato, apesar desta atitude não ser apreciável em si, ela ocorre com fre­ qüência, na esfera humana.

Respondo agora: Entretanto, com Deus é diferente; os homens, são tão fracos em suas condições de poderosos que não conseguem controlar seus ímpetos, por isso agem por paixões das mais varia­ das, tais como: preconceito, vaidade, ódio, interesses etc. Deus, no entanto, é tão poderoso que estabelece limites para si mesmo! Por isso, quando afirmamos que Deus não mente, não se contradiz, não muda, não peca e não pode salvar fora de Jesus Cristo, não preten­ demos estabelecer limites para Deus, mas, sim, reconhecer os pró­ prios limites ou critérios que ele mesmo declarou a respeito de si

conversar com edifícios, ignorando o que são os deuses e os heróis” (Frag., 5; vd. também:

Frag., 14). Talvez isto revele o que Heráclito diz no Fragmento 79: “O homem é infantil

frente à divindade, assim como a criança frente ao homem.” Todavia devemos ressaltar que ele não era irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via (F r a g s 14/67).

E m pédodes fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:

“Bem-aventurado o homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina; desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses.

“Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos ou de apanhá-la com as mãos, principais caminhos pelos quais a persuasão penetra o coração do homem.

“Pois seu corpo (da divindade) não é provido de cabeça humana; dois braços não se erguem de seus ombros, nem tem pés, nem ágeis joelhos, nem partes cobertas de cabelos; é apenas um espírito; move-se, santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosmos com rápidos pensamentos” (Empédocles, Fragmentos, 132-134 ln: Ibidem., pp. 80-81).

Sobre Heráclito, Bréhier comenta: “A sabedoria de Heráclito despreza o que ao vulgo se refere: a começar pela religião popular, a veneração das imagens e, particularmente, os cultos misteriosos, órficos ou dionisíacos [Frags., 5, 14, 15], com suas ignóbeis purifica­ ções pelo sangue, os traficantes de mistérios, que alimentam a ignorância dos homens sobre o além” (É. Bréhier, História da Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1977,1/1, p. 53).

407 O sofista grego Protágoras (c. 480-410 aC.) afirmara: “O homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem” (Apud Platão, Teeteto, 152a e Aristóteles, Metafísica, XI, 6. 1062). O Humanismo Renascentista tomou este dito como lema em sua “virada antropológica”.

408T. Hobbes, Apud G. Lebrun, O Que é Poder?, 3“ ed. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 28. Vd. também, T. Hobbes, O Leviatã, ll.xviii, p. 11 Iss.

mesmo em sua relação consigo e com o universo. Estes critérios são decorrentes de suas perfeições, pois se Deus é perfeitamente poderoso, é também perfeitamente verdadeiro, justo, fiel, sábio, amoroso, bondoso, santo. Deus é tão poderoso que trata conosco conforme as perfeições de seu Ser, e nos deu a conhecer tais perfei­ ções a fim de que pudéssemos nele confiar e suas virtudes procla­ mar (Ml 3.6; IPe 2.9,10). O poder de Deus está sob o controle de sua sábia e santa vontade, “Deus pode fazer tudo o que ele deseja, porém ele não deseja fazer tudo o que pode”409 (leia Ex 3.14; Nm 23.19; ISm 15.29; At 4.12; 2Tm 2.13; Hb 6.18; Tg 1.13, 17). “Deus é lei para si próprio, de modo que tudo quanto ele faz é justo.”410

Este fato nos enche de alegre confiança em Deus. H. Bavinck (1854-1921) resume bem este ponto, dizendo:

“A vontade de Deus é idêntica à sua existência, sua sabedoria, sua bon­ dade e todos os seus atributos. E é por essa razão que o coração e a mente do hom em podem descansar nessa vontade, porque é a vontade não da sina cega, nem da energia obscura da natureza, mas de um Deus onipoten­ te e de um Pai misericordioso. Sua soberania é uma soberania de ilimitado poder, porém é tam bém uma soberania de sabedoria e graça. Ele é Rei e Pai ao mesmo tem po.”4"