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Revisão teórica e fundamentação de Hipóteses e Questões de Investigação

2.2 Teoria de Fundo.

2.2.2 Estereótipo.

2.2.2.3 Lippmann e o ‘padrão’ de estereótipos.

O estereótipo constrói-se em estrutura conceptual partilhada. Esta estrutura é para Lippmann um ‘sistema,’ ou ‘padrão,’ de estereótipos.

Para além de constituir um depósito de imagens categoricamente dispostas, a rede de estereótipos alimenta o mecanismo instantâneo do julgamento. Na simples percepção do ambiente toma-se a identificação de tipos como um equivalente da experiência quotidiana. O automatismo deste processo de sincronizar imagens mentais com identidades circunstanciais é de tal modo fluído que se confunde com a percepção, com a linguagem, e com o pensamento:

Esta filosofia é uma série de imagens mais ou menos organizada para descrever o mundo não visto. Mas não apenas para descrevê-lo. Também para o julgar. E assim os estereótipos estão carregados de preferências, rodeados de afectos ou ódios, ligados a receios, volúpias, grandes desejos, orgulhos e esperanças. Seja o que for que o estereótipo invoque é julgado com o sentimento apropriado. Excepto quando deliberadamente suspendemos os nossos preconceitos, não observamos um homem e julgamos que ele é mau. Vemos antes um Boémio despreocupado, um Hindu ocioso, um Oriental truculento, um Eslavo sonhador, um Irlandês volúvel, um Judeu ganancioso, um Americano a 100 por cento. No mundo quotidiano este é muitas vezes o verdadeiro juízo, muito anterior à evidência, e contém em si mesmo a conclusão que a evidência irá decerto confirmar (Lippmann, 1922/1997, p. 78-9).

Constituídos como um ‘padrão,’ os estereótipos são, além de uma garantia da inteligibilidade do mundo, a base do amor-próprio de cada um. São os átomos constituintes da identidade, guardiões de uma mundividência. Uma vez definidores da posição do sujeito,

estruturam-no, localizam-no, dão-lhe um contorno, uma superioridade, uma imagem. A nitidez do recorte percebido é a segurança do eu:

Um padrão de estereótipos não é neutral. Não é meramente um modo de trocar a grande, florescente e ruidosa confusão da realidade por algo ordenado. Não é apenas um atalho. É tudo isto e algo mais. É a garantia do nosso amor próprio; é a projecção sobre o mundo do nosso sentido do próprio valor, a nossa própria posição e os nossos próprios direitos. Os estereótipos estão então muito carregados com as emoções que lhe estão ligadas. Eles são a fortaleza da nossa tradição, e atrás das suas defesas nós podemos continuar a sentir-nos seguros da posição que ocupamos (Lippmann, 1922/1997, p. 63-4).

A acção do estereótipo é defensiva. A integração dos estereótipos vigentes corresponde ao processo construído, ao longo da experiência vivida, na interacção social. É dessa integração que depende a partilha de valores, a adaptação, a pertença. Uma vez adquirido, o sistema de estereótipos é uma chave de acesso a um ambiente de outra forma sentido como confuso, heteróclito e agressivo. O sistema de estereótipos é então uma base para um ponto de vista, pessoal, conquistado. Um ponto de vista territorial, conceptual, reconhecido pelos outros e que depende da sua aprovação implícita, que é a partilha.

Uma vez estabelecido, o padrão de estereótipos torna-se equivalente à normalidade quotidiana. É do interesse de todos, a manutenção dos estereótipos vigentes. O questionamento deste padrão de estereótipos é o questionamento da posição relativa de cada indivíduo face aos restantes. Para o indivíduo, o mundo construído sobre a rede partilhada de estereótipos é um mundo seguro e fácil de reconhecer. É um mundo com poucas surpresas, onde se estabelecem rotinas cognitivas que facilitam as múltiplas pequenas opções do quotidiano. Através da partilha de crenças é estabelecida uma proximidade interpessoal. Havendo simplificação perceptiva há menos adversidade, menos imprevisto, menos tensão:

Nesse mundo as pessoas e as coisas têm os seus lugares bem conhecidos, e fazem determinadas coisas já esperadas. Lá sentimo-nos em casa. Pertencemos. Somos membros. Orientamo-nos. Lá encontramos o encanto do que é familiar, normal, do que depende de nós. As suas modulações e formas estão onde estamos habituados a encontrá-las (Lippmann, 1922/1997, p. 63).

O indivíduo orienta-se num contexto de posições relativas pré-determinadas graças às categorias partilhadas. A sua orientação depende dos conceitos estereotípicos, com a mesma intensidade com que um viajante depende de um mapa. Mapa que não é imaginável questionar. Isto torna o indivíduo num convicto defensor das crenças partilhadas. A flexibilidade é-lhe perigosa. Existe nele uma propensão conservadora latente, pronta a reagir ao mais pequeno sinal de alteração nas hierarquias do ambiente:

…não admira, então, que qualquer perturbação dos estereótipos nos pareça um ataque às fundações do universo, onde grandes coisas estão em causa, e não admitimos que exista alguma diferença entre o nosso mundo e o mundo’ (Lippmann, 1922/1997, p. 64).

O padrão de estereótipos constitui um código que é possuído pelo sujeito. ‘Perceber’ é colocar esse código em funcionamento e, só por funcionar, legitima-se a sua fundamentação. Não se trata de pôr o código à prova, apenas de repetir vezes sem fim os seus pressupostos.

Lippmann quase enuncia que o real é ideológico, factício, articulado em crenças decomponíveis em estereótipos. É como uma espécie de vidro que, parecendo ao sujeito mostrar o mundo, reflecte o mesmo sujeito como num espelho. O sujeito julga este reflexo como equivalente do mundo e não concebe alternativas; se o sujeito conseguisse perceber que os ‘outros’ são feitos das suas próprias categorias, que os lugares atribuídos aos ‘outros’ o identificam e limitam, o localizam por omissão, então perceberia que ao olhar o mundo, se olhava a si mesmo. E, se o conseguisse, estaria a conseguir sair do sistema, tendo acesso à frágil construção da sua identidade e desfazendo a sua própria imagem.

A filosofia de Lippmann aponta esse despojamento como uma saída, espécie de renovação emancipada provocada pela crítica desprendida. É uma nova atitude:

Se nesta filosofia assumirmos que o mundo está codificado segundo o código que possuímos, iremos fazer com que os nossos relatos sobre o que se passa descrevam um mundo dirigido pelo nosso código. Mas se a nossa filosofia nos disser que cada homem é uma pequena parte do mundo, que a sua inteligência, no máximo, capta apenas fases e aspectos de uma rede de ideias em bruto, então quando usamos estereótipos temos a possibilidade de saber que são apenas estereótipos, tendendo a manuseá-los com desprendimento, a modificá-los com satisfação (Lippmann, 1922/1997, p. 60).