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Revisão teórica e fundamentação de Hipóteses e Questões de Investigação

2.2 Teoria de Fundo.

2.2.1.4. O signo sempre ideológico.

Bakhtine sintetiza a interpretação pós-Marx de ideologia. Enuncia que qualquer objecto, natural, tecnológico, ou de consumo, pode ser símbolo ou signo, uma vez que remete sempre para uma outra coisa: ‘sem cessar de ser parte da realidade material, ele reflecte e refracta em certa medida uma outra realidade’ (Bakhtine, 1929/1968, p. 26). Pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou ainda percebê-la de um ponto de vista especial, estando sujeito aos critérios de avaliação ideológica (é verdadeiro, falso, correcto, justificado, bom…).

Bahktine estabelece o signo como o interface entre Homem e Natureza e resolve o enigma do ‘fetiche fantasmático’ de Marx. O aspecto fantasmático que adere ao objecto é uma manifestação sígnica que se substitui ao próprio objecto. O domínio da ideologia corresponde ao dos signos e vice-versa: ‘onde se encontra um signo, encontra-se ideologia. Tudo o que é ideológico possui um valor semiótico’ (Bakhtine, 1929/1968, p. 27). O autor compara o signo ideológico a Janus, de dois rostos, acrescentando que esta dialéctica interna, contraditória nos termos hegelianos, é imperceptível na vida quotidiana e apenas revelável nos períodos revolucionários. O signo ideológico, dissimulado, ‘é sempre um pouco reaccionário e esforça-se, por assim dizer, por estabilizar o estado anterior da corrente dialéctica da evolução social’ (Bakhtine, 1929/1968, p. 44). Daqui resulta o carácter ‘refractante’ e ‘deformante’ do signo nos limites da ideologia dominante. A ‘refracção ideológica’ é um processo semelhante à ‘semiose ilimitada’ de Peirce (que Bakhtine não cita, mas de quem utiliza os termos, incluindo o de ‘semiótica’).

Através do signo, Bakhtine distancia-se dos termos hegelianos e marxistas ao estabelecer claras regras metodológicas: não separa a ideologia da realidade material do signo (evitando assim colocá-la em lugares indesejáveis como a ‘consciência’), não separa o signo das formas concretas de comunicação social (por este não ter existência fora do sistema) e, finalmente, não separa ‘a comunicação e as suas formas da sua base material (a infra-estrutura)’ (Bakhtine, 1929/1968, p. 41).

Guy Debord (1967/1992) desenvolve o conceito de alienação na perspectiva marxista, associando o mundo capitalista avançado aos seus fluxos comunicativos, balizados pelo consumo e pela técnica de produção. Propõe o termo ‘espectáculo’ (recuperado de Hegel) para designar a nova relação social, mediatizada pelas imagens, ou visão do mundo que se objectivou. O ‘espectáculo’ é o ‘fetichismo’ que Marx propusera. O ‘espectáculo’ usa a linguagem dos signos ideológicos na mesma dupla face que Bakhtine apontou. Este autor denuncia o ‘espectáculo’ como a principal produção da sociedade actual, fruto da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia. Assim, ocorre o deslizamento geral do ‘ter’ para o ‘parecer,’ que é necessário quando a necessidade sai do plano real e se torna socialmente sonhada. É ‘a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstracto de todas as mercadorias,’ ou seja, um aspecto do dinheiro que se pode contemplar (Debord, 1967/1992 §49). A origem do ‘espectáculo’ é a perda da unidade do mundo pelo trabalho. A sua essência corresponde à materialização da ideologia.

A noção de ‘espectáculo’ de Debord coincide com o efeito da pré-formatação das práticas, que são expressões retóricas, faces manifestas do ideológico. O ‘espectáculo’ é uma realidade espectral que conforma toda a experiência. O espectáculo inclui toda a acção, posto que, hoje, em toda ela há equivalência fiduciária, há contratualização simbólica.

Para Althusser a ideologia é uma ‘relação imaginária com relações reais’ (1971/1980, p. 85) dotada de existência material pelo facto de o sujeito agir, no real, em conformidade com o sistema de representações. Esta relação imaginária tem ainda um papel cognitivo histórico essencial à reprodução e qualificação das forças de trabalho, através das ‘formas ideológicas’ e das ‘formas de sujeição ideológica.’ Este desfasamento entre o real e o figurado radica no carácter alienado do mundo material. A ideologia impõe-se como uma ‘evidência’ naquilo que Althusser designa por ‘reconhecimento ideológico’:

O acto de escrever a que actualmente procedo e a leitura a que você actualmente se dedica são, também do ponto de vista desta relação, rituais do reconhecimento ideológico, incluindo a ‘evidência’ com a qual se lhe pode impor (a você) a ‘verdade’ ou o ‘erro’ das minhas reflexões (Althusser, 1971/1980, p. 97).

Qualquer indivíduo é sujeito à ideologia, mesmo antes de nascer: insere-se na configuração ideológica familiar, recebe apelidos dos pais, e tudo age na ‘evidência’ da designação, que é o referente ideológico a partilhar. Para Althusser, a simples interpelação de um indivíduo na rua é um exemplo do funcionamento ideológico: “toda a ideologia interpela indivíduos concretos como sujeitos concretos, através do funcionamento da categoria do

Proponho então que a ideologia ‘age’ ou ‘funciona’ de tal maneira que ‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos (e recruta-os a todos), ou ‘transforma’ os indivíduos em sujeitos (e transforma-os a todos) através dessa operação muito precisa a que eu chamei interpelação que pode ser imaginada nos termos do vulgar lugar comum de um polícia (ou outro) interpelando: ‘ei, você aí!’ (Althusser, 1971/1980, p. 97).

A interpelação na rua funciona na maioria das situações (como aponta Althusser,’nove em cada dez vezes’). E o indivíduo, uma vez interpelado, detém-se e volta-se. Ao fazê-lo, ele torna-se um ‘sujeito,’ reconhece que a interpelação lhe foi dirigida ‘na realidade.’ Isto define a propriedade invisível da ideologia: inicia-se nos fundamentos da experiência pessoal, coincide com a apropriação de cada um enquanto sujeito, com a adesão a propriedades significativas em termos colectivos, mas sempre virtuais. A dimensão ideológica naturaliza-se, manifesta-se nos dados da experiência quotidiana, torna-se evidente:

… aquilo que assim parece ocorrer fora da ideologia (na rua, para ser preciso), em realidade ocorre dentro da ideologia. E o que realmente acontece dentro da ideologia parece contudo acontecer fora dela. É por isto que quem está dentro da ideologia acredita estar por definição fora da ideologia: um dos efeitos da ideologia é a denegação prática do carácter ideológico da ideologia pela ideologia: a ideologia nunca diz ‘sou ideológica’

(Althusser, 1971/1980, p. 98).

A presunção de estar fora da ideologia é uma ilusão do conhecimento científico da modernidade. A charneira do debate pós-moderno inclui a viragem crítica da assunção de que os discursos da ciência, as metalinguagens, estão sempre dentro da ideologia. O criticismo pós-moderno distingue-se por ser capaz de relativizar as bases do pensamento moderno. Althusser chega perto dos limites tautológicos da definição: ‘a ideologia não tem exterior em si mesma, mas ao mesmo tempo não é nada a não ser exterior (para a ciência e para a realidade)’ (Althusser, 1971/1980, p. 98).

As reflexões de Althusser conduzem a matriz marxista, de raiz iluminista, positivista, ao novo lugar da crítica pós-moderna. Enunciam a suspeita fundamentada de as categorias universais da filosofia serem legitimadoras de usos consensuais. As suas consequências são amplificadas por Michel Foucault e Lacan, como se verá mais adiante.