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Pós-estruturalismos e crítica de significantes: o Género e a Raça.

Revisão teórica e fundamentação de Hipóteses e Questões de Investigação

2.2 Teoria de Fundo.

2.2.1.8 Pós-estruturalismos e crítica de significantes: o Género e a Raça.

Explorando as perspectivas abertas pelos teóricos pós-estruturalistas surgem, nos anos 90, os autores que aplicam a ‘pós-semiologia’ a sistemas ainda não modelizados, como o problema do Género ou da Raça.

2.2.1.8.1 Género. Judith Butler, nos anos 90, faz uma síntese da crítica do paradigma

do Género (Butler, 1990). Para Butler o Género não é uma qualidade de uma pessoa, mas antes uma variável mutável no tempo e no contexto. Recorre ao conceito de identidade, retomado por Giddens (1991/1994), ao estabelecer o Género como ‘experiência’ a ser ‘adquirida’ e ‘desempenhada’: o Género é agora uma identidade cultural.

Butler considera que os sexos (homem e mulher) são os dados materiais que conduzem culturalmente à distinção de géneros (masculino e feminino) que por sua vez estabelecem as normas de expressão do desejo pelo sexo oposto, ou antes, as suas manifestações codificadas. O género feminino identifica-se como objecto do desejo porque é globalmente apresentado, e auto-apresentado, como objecto do desejo.

Butler segue a inversão de paradigma pós-estruturalista ao apresentar o significante – agora a manifestação ou atitude – como construtor do significado – agora a identidade de género. As manifestações, os desempenhos de tonalidade sexual, constatam-se variáveis ao longo da história de vida de uma pessoa. Assim, também a respectiva identidade de género é variável. A manifestação do desejo é flutuante, mutável, e não é o resultado de outros factores:

Não há identidade de género por trás das manifestações de género; … a identidade é constituída, no seu desempenho, pelas várias ‘expressões’ que são tidas como seus resultados (Butler, 1990, p. 25).

Butler estabelece que o género é o resultado da acção. Nos termos de Foucault, o género é um dos ‘discursos’ – no sentido lato, onde se incluem os desempenhos, públicos ou particulares. O género deixa de ser ‘o que se é,’ para passar a ser ‘o que se faz’ em cada

condições materiais de vida, em vez de corresponder à manifestação de uma essência, ou ‘espírito.’ Que a estratificação por géneros é em si mesma ideológica, distorcida, falsa. Que o próprio género é, enfim, ideologia.

2.2.1.8.2 Raça. Julga-se desnecessário esclarecer que o termo raça é utilizado neste

trabalho no seu sentido comum. Não corresponde a um conceito científico, mas existe como representação social. Rosa Cabecinhas sintetiza:

Apesar de estar cientificamente desacreditado, o conceito de ‘raça’ que existe na mente dos indivíduos não pode ser ignorado pelos cientistas sociais, isto é, a raça deixa de ser ‘biológica’ para se tornar ‘social’ (2002, p. 62).

A raça é um conceito efémero na história. A definição observou nos últimos 150 anos, desde a época da abolição da escravatura em vários pontos do mundo, uma mudança total. Foram dois elementos determinantes a afirmação do ‘racismo científico’ e a sequente teorização do eugenismo. O primeiro foi legitimador da geopolítica colonial e da discriminação civil, e o segundo foi a base do genocídio industrializado executado pelo nazismo.

Se em 1939 a Europa se considerava ‘o cérebro e o coração do mundo’ (Salazar, discurso de 22 Maio, fide Alexandre, 2005, p. 40), a partir de 1945 essa percepção muda pelos factos, e os destinos do planeta passam a ser decididos por Washington e Moscovo, ambos com perspectivas anti-coloniais de fundo. A realidade pós-guerra é materializada no reconhecimento, em dominó, da independência das colónias europeias. No plano civil, o Civil Rights Act nos EUA, em 1964, constitui o prelúdio do talvez último episódio, a queda do regime apartheid na África do Sul, em 1991.

Em Portugal a mudança não foi menor. Entre a perspectiva segundo a qual o domínio colonial era encarado como ‘um facto histórico, natural e inquestionável, destinado a perdurar por longo tempo, com o consenso dos próprios colonizados, incapazes de se governarem a si mesmos’ (Alexandre, 2005, p. 2), e o abandono forçado deste paradigma, decorre um intervalo de menos de uma geração.

O Estado Novo tinha ido buscar às representações históricas do século XIX e aos ecos do ultimato – A Portuguesa de Alfredo Keil – a idealização mítica de uma predestinação messiânica, singular, histórica, rácica e épica. E, à imagem dos regimes europeus, ressuscita-se a expressão Império, aqui apresentado como a herança quinhentista.

Já depois da Segunda Guerra, o império português vê-se distinto, de modo mitológico, das demais potências coloniais e dos respectivos ‘territórios não autónomos’ que entretanto tinham ficado na linha de fogo do capítulo XI da Carta das Nações Unidas (1945). Já após o

grosso da descolonização europeia, no abismo do futuro, a Guerra Colonial é sentida no país como um dever inquestionável a travar contra os terroristas. Até ao fim, a contradição entre a realidade global e a ideologia local alimenta-se num último mito, de compromisso, o mito do luso-tropicalismo, ou da assimilação, de Gilberto Freyre (Freyre, 1940/s.d; Alexandre, 1999; 2006). Esse mito, que ainda vibra, é talvez o último vestígio ideológico de uma imaginada grandeza de essência racial.

Da cristalização do papel de Portugal, tal como foi apresentado na Exposição Colonial do Porto em 1934, até ao descentramento provocado pelo 25 de Abril, projectou-se a utopia civilizadora da última potência colonial de África. Conceitos como o de metrópole e de colónia, antes referências naturalizadas, ficam obsoletos em poucos meses. O 10 de Junho, o Dia da Raça, é transformado no Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas. Surgem as primeiras vagas de imigração, os retornados. A esta vaga, branca, imensa, mas depressa assimilada, vai acrescentar-se a cabo-verdiana. Depois, com a queda do Muro de Berlim em 1989 e a livre circulação de pessoas na Comunidade Europeia, entretanto aberta ao Leste, juntam-se-lhes novos contingentes. O país recebe 150.000 pessoas em 14 anos com o número de residentes estrangeiros a passar de 101.011 em 1989 para 249.995 em 2003, o ano da amostra deste trabalho (Portugal, SEF, 2006).

No regime actual a expressão do racismo sofre uma evolução semelhante à que ocorre nos restantes países da Europa: o racismo subtil substitui o anterior racismo flagrante (Meertens e Pettigrew, 1999; Vala, J., Brito, R. Lopes, D., 1999). A interiorização da nova realidade é assimilada de fora para dentro.

Mas entre as minorias etno-raciais, uma das mais presentes, e talvez a mais numerosa, atravessa silenciosamente todo este período. É a cigana. O seu número estimado é de 50.000 (Bacelar de Vasconcelos, 1998). Sem distinção na cor da pele é um grupo de forte identidade, ora excluído, ora integrado em actividades tradicionais como o comércio ambulante.

A ideologia da Raça, que antes da II Guerra é naturalizada, torna-se visível de modo gradual. Barthes aponta-lhe a charneira, a do mito ideológico, ou como ele prefere, do ‘mito burguês.’ Faz um resumo irónico de um artigo do Paris-Match onde fora descrito o quotidiano de um jovem casal francês e do seu filho Bichon, de dois anos, agora a viverem em África (1957/1988b, p. 58):

…Quanto ao pequeno Bichon, esse brinca aos Parsifal, opondo a sua cor loira, a sua inocência, os seus caracóis e o seu sorriso ao mundo infernal dos peles negras e vermelhas, às escarificações e às máscaras hediondas. É a doçura branca que sai, naturalmente, vencedora: Bichon domina os ‘comedores de homens’ e torna-se o seu ídolo (decididamente,

os Brancos foram feitos para serem deuses). Bichon é um bravo francesinho, que amansa e submete sem violência os selvagens…

O contraste racial da imagem do preto, a concreção mítica da fantasia canibal com a da criança loira, síntese do bem-estar burguês, compõe a essência dramática do fait-divers. O medo frívolo, como num espectáculo de feira, e a demonstração do domínio das feras é a chave que garante o interesse das páginas:

Sem a presença desse risco, a história perderia toda a sua virtude de choque, o leitor não sentiria medo; assim multiplicam-se as confrontações em que a criança branca se encontra sozinha, abandonada, despreocupada e exposta dentro de um círculo de pretos potencialmente ameaçadores (…) a cada imagem, as pessoas devem tremer perante o que teria podido acontecer: isso não é nunca precisado, a narração é ‘objectiva’… (Barthes, 1957/1988b, p. 58).

Os significantes estão prestes a mostrar a crise da ideologia.

Ao mesmo tempo, no lado inverso, o do Outro, o psiquiatra francês, natural da Martinica, Frantz Fannon, descreve a sua experiência numa viagem de comboio em França. A sua qualificação como significante ostensivo, como objecto de uma cultura descentrada é descrita:

‘Mamã, olha para o preto! Tenho medo!’… Então, acossado em vários pontos, o schema

corpóreo ruiu, e o seu lugar foi tomado por um schema racial epidérmico. … Naquele

comboio deram-me não um, mas dois, três lugares. …Eu era responsável ao mesmo tempo pelo meu corpo, pela minha raça, pelos meus ascendentes. Sujeitei-me a uma observação objectiva, descobri a minha negritude, as minhas características étnicas; e era acossado pelos

tom-toms, pelo canibalismo, pela deficiência intelectual, pelo feiticismo, pelos defeitos

raciais, pelos navios negreiros (Fannon, 1967, p. 79).

E Fannon conclui pela alienação do ser instruído, de classe média, com valores franceses. É uma disjunção com o seu corpo, insolúvel na identidade espantosa de ser negro:

…Nesse dia, completamente deslocado, incapaz de estar no lado de fora com o outro, o branco, que sem piedade me tinha aprisionado, afastei-me para bem longe da minha presença, mesmo longe, e tornei-me num objecto(Fannon, 1967, p. 79).

Edward Said (1978), no seu ensaio sobre o Orientalismo, apontara a diferença entre o orientalismo latente e o orientalismo manifesto. O latente seria o mito, o estereótipo, que localiza o oriente como uma zona precisa no mapa imaginário, detalhada na sua representação numa cultura de adereços veristas, uma cultura projectada e de fantasia uniforme, com paisagens e personagens estereotipados, o cenário teatral onde ocorrem as diferenças sonhadas, mas interditas no Ocidente: o harém, o eunuco, a odalisca, a sensualidade, a

indulgência, o abandono, o banho turco, a riqueza, o encantamento, a submissão, o leilão das escravas, a efabulação do sexo luxuriante ou diferente.

Para Bhabha (1983) o discurso colonial é um aspecto do Orientalismo. O termo discurso é utilizado por Bhabha no sentido de Saussure e de Foucault, ou seja, uma fala, a manifestação do poder. O discurso colonial manifesta-se como a face permitida na interdição ocidental, espécie de deslocamento motivado pelo bloqueio. É o processo que Freud descreve no fetichismo: a deslocação do desejo do objecto impossível para um novo significante próximo, apenas desviado. Este é um processo estrutural que se manifesta funcionalmente:

O elo funcional entre a fixação do fetiche e o estereótipo (ou do estereótipo como fetiche) ainda é mais relevante. Porque o fetichismo é sempre um ‘jogo’ vacilante entre a afirmação arcaica da totalidade / semelhança – nos termos de Freud: ‘Todos os homens têm pénis’; e nos nossos termos ‘Todos os homens têm a mesma pele/raça/cultura’ – e a ansiedade associada à falta de diferença – de novo, para Freud ‘Alguns não têm pénis’; e para nós ‘Alguns não têm a mesma pele /raça/cultura’ (Bhabha, 1983).

Assim o estereótipo, ou fetiche, age no discurso do poder na dupla função que o identifica: ora como metáfora, enquanto substituição disfarçando a diferença primordial, ora como metonímia, que procede ao deslocamento, por contiguidade, da diferença denegada. Constrói-se, pelo estereótipo, uma identidade ambivalente, contraditória, própria do fetiche, que tanto assenta no domínio como na defesa, ou tanto se foca no prazer como na sua privação ansiosa. É a diferença ou fractura original, de que a racialidade é estigma, que ora é reconhecida, ora é denegada:

Este conflito de prazer / desprazer, domínio / defesa, conhecimento / denegação, ausência / presença tem uma significância fundamental no discurso colonial. É que a encenação do fetichismo é também a encenação da reactivação e repetição da fantasia primeva – o desejo do sujeito por uma origem pura que está sempre ameaçada por esta divisão, uma vez que o sujeito tem de ter género para ser gerado, para ser falado (Bhabha, 1983).