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Materialismo e alienação, fetichização, reificação.

Revisão teórica e fundamentação de Hipóteses e Questões de Investigação

2.2 Teoria de Fundo.

2.2.1.2 Materialismo e alienação, fetichização, reificação.

Em oposição a Hegel, Marx, em A Ideologia Alemã, afirma que ‘ideologia’ é a falsa crença em que o real é produto do ideal (criticando o geist). Descreve o mundo ideológico como um mundo às avessas, uma vez que ‘não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência’ (Marx e Engels, 1932/1976, p. 26) invertendo o lugar primordial do ‘espírito’ de Hegel. E comenta:

São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias, etc., mas os homens reais, actuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhes corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais que o Ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo da vida real (Marx e Engels,

1932/1976, p. 25).

Para Marx, são as condições concretas de interacção produtiva e relacional, que conformam a consciência da realidade. Sendo determinada pelo ‘processo de vida histórico,’ esta consciência não tem verdade, apresenta-se como falsa.

‘Ideologia’ é para Marx menos que o contraponto ao ‘espírito’ de Hegel, é a forma que resta da ilusão idealista, que, por ser tão poderosa e abrangente, se confunde com a essência. A ideologia é uma espécie de resto, destroço, vestígio do real. É a falsa consciência do mundo da vida, ilusória porque determinada pelas próprias contingências materiais e relacionais do quotidiano. Este vestígio é descrito por Marx como uma projecção invertida:

E se em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos, tal como acontece numa camara obscura, isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico,

consequência do seu processo de vida directamente físico (Marx e Engels,

1932/1976, p. 25-6).

Do ‘ser consciente’ evolutivo, do geist de Hegel, caminha-se a uma consciência inversa e ténue, difusa, como na câmara escura. A falsa consciência é fruto da própria distorção posicional e circunstancial dos intervenientes. Este enviesamento é histórico, no tempo e no espaço, e favorece a assimetria das relações entre os homens e a separação das classes.

Marx torna materialista a dialéctica hegeliana: na relação Homem / Natureza, coloca a fronteira na acção do trabalho, na praxis. A acção é a ruptura, a separação que expulsa o Homem da própria Natureza, tal como nas narrativas míticas. Esta expulsão, alienação, é gradativa, evolui com as próprias condições de complexidade social. Nos Manuscritos Económicos e Filosóficos (Marx, 1844/2001, XXII) este autor descreve como o trabalhador nas fábricas se relaciona com o objecto do seu trabalho como com algo alheio. A perda, ou separação, acentua-se em várias direcções: o trabalho alienado separa o homem da sua espécie, culminando na perda da própria Natureza.

Ao inverter os termos idealistas de Hegel, Marx opõe a Natureza e o Homem de um modo expresso na relação infra-estrutura / estrutura / super-estrutura. Considera que sobre a Natureza, ou infra-estrutura, o homem, estrutura, age em alienação produtiva, e o resultado deste interface é a super-estrutura: o mundo separado, ou alienado, das ideias, da cultura e da sociedade.

A alienação é então chave produtiva de tudo o que existe de ‘humano,’ ou seja, não natural. Surge multiplicada pela divisão do trabalho a tal ponto que sai da área da visibilidade dos homens, ‘antes lhes surgindo como um poder estranho, situado fora deles e do qual não conhecem nem a origem nem o fim que se propõe, que não podem dominar’ (Marx, 1844/2001, XXII).

Com a alienação acontece a objectivação do trabalho, a quantificação, a troca, o valor, a sujeição às leis estranhas da economia. Em Grundrisse, Marx comenta que a objectivação do trabalho não pertence ao trabalhador mas às condições de produção, elas próprias objectivadas no capital (Marx e Engels, 1944/1999, p. 272).

A alienação inicia o movimento em direcção ao fim da História. E é ‘tão independente da vontade e da marcha da humanidade que é na verdade ela quem dirige essa vontade e essa marcha da humanidade’ (Marx e Engels, 1932/1976, p. 41).

Na praxis, ou como Marx prefere, no trabalho, ocorre uma mudança de categoria que este autor coloca no centro do debate de O Capital. Com a objectivação do trabalho, sob a forma de mercadoria, surge uma nova substância cuja materialidade não se esgota nos seus componentes naturais. É uma síntese de trabalho e Natureza, ou melhor, ‘trabalho separado,’ traduzível no equivalente ‘fantástico,’ ou ‘espectral,’ do capital. Este processo é designado por Marx como ‘fetichismo’ – no sentido de ser a materialização aparente de uma essência. Em O Capital, Marx define ‘mercadoria’ e ‘fetichismo:’ à mercadoria, na qual o produto se transforma assim que é concluído, adere uma ‘forma fantasmagórica de uma relação entre coisas,’ que é o fetichismo ‘perceptível e imperceptível’ (Vol. 1, III, Sec. 4).

Pelo fetichismo a mercadoria torna-se ‘coisa social,’ ‘misteriosa,’ pois as relações nela presentes não são as aparentes, as humanas, mas antes as relações entre cadeias de objectos. E acrescenta, levando mais longe a coexistência contraditória entre a Natureza e o valor:

Por exemplo, a forma da madeira é alterada, ao fazer-se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; face a todas as outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar (Marx, 1867/1990, Vol. 1, III, Sec. 4).

A transformação simbólica do Objecto (ou da Natureza, infra-estrutura), através do trabalho, da praxis, investe-o de uma materialidade distorcida. O objecto, agora com ‘valor-de-troca,’ ou seja, mercadoria, separa-se do natural sem deixar de ser concreto, sendo a sua aparência traduzida socialmente no dinheiro, no signo. Os objectos tornam-se fantásticos por serem regidos por novas leis, alheias à Natureza, e incontroláveis: as da Economia. Rodeados de conotações e contextos variáveis, como o mercado, eles manifestam-se contudo nas suas propriedades materiais: são agora ‘coisas a um tempo sensíveis e suprasensíveis (isto é, coisas sociais)’ (1867/1990, Vol. 1, III, Sec. 4).

Já não é possível haver relação social entre os homens sem a reificação do simbólico, a objectivação do convencional, o ritual, as práticas codificadas. O fantástico mundo ideológico torna-se Objecto, e surge aos homens travestido de ‘Natural’; é ‘a fantasmagoria que faz aparecer o carácter social do trabalho como uma qualidade das coisas, dos próprios produtos’ (1867/1990, Vol. 1, III, Sec. 4).