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Revisão teórica e fundamentação de Hipóteses e Questões de Investigação

2.2 Teoria de Fundo.

2.2.1.7 O ‘dispositivo’ e as críticas ideológicas.

Foucault propõe no primeiro volume de A História da Sexualidade (1976-84/1994, p. 88-117) o termo ‘dispositivo’ nele identificando o quadro conformador de conhecimentos e valores em que se desdobra. O dispositivo é a operacionalização organizadora de poderes. É relacional, insensível, invisível, e funciona pela escolha histórica dos temas, problemas e estruturas. Foucault enfatiza a perspectiva genealógica do que os homens constroem ou omitem, em todas as dimensões, ao longo do tempo, dentro dos quadros cognitivos da conformidade.

O dispositivo é uma rede heterogénea de ‘discursos, instituições, organizações arquitectónicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas’ (Foucault, 1979/1992, p. 244). Tem por função, em cada momento, responder a uma necessidade, e fá-lo de modo estratégico e imbricado no poder. O dispositivo não actua como uma força: é a sombra do mundo concebível, organizando-o segundo estruturas de conhecimento, regras, espaços. Cada indivíduo, ideia, discurso, acção, conformados no dispositivo, são em simultâneo os vigias atentos e inconscientes dos indivíduos, ideias, discursos e acções que lhe são próximos. Assim o poder é exercido sem essência, mas por consenso, sem acção mas por operação. O poder equivale ao dispositivo e o dispositivo equivale à verdade – nada existe fora do dispositivo.

O dispositivo é a manifestação do poder, é o seu significante, o seu discurso, onde está tudo o que é histórico. Mas o dispositivo determina o próprio poder – como na metáfora do Senhor e do Escravo, de Hegel (1807/2001, §178-197). Nesta teia, o saber sustenta as forças e as forças sustentam o saber.

Foucault revê o quadro do poder, afirmando que ele não existe per se mas antes como um feixe de relações mais ou menos organizado, hierarquizado, e estruturalmente bem disfarçado: o poder é o seu próprio discurso. Mas o discurso do poder, a sua retórica, é um dado naturalizado, invisível. No discurso do poder estão incluídas as categorias Filosofia, Religião, Ciência, Arte, ou seja, a episteme. Na episteme estão os limites do conhecível, do pensável, do interrogável. A própria episteme é portadora dos circuitos conformadores, dos discursos que a estabelecem.

Foucault anuncia a crise da verdade – enquanto constante, ou ponto de chegada – e descreve o mundo por ela conformado como um mundo frágil, assente em perspectivas históricas e determinado pelos seus discursos. É uma inversão crítica que começara em Nietzsche (1998, §110) e nos autores de Frankfurt (Horkheimer, 1947/1974).

Foucault consegue ir além da ideologia, até ao seu nível estrutural, tomando como objecto de estudo variadas retóricas ideológicas da humanidade (a arquitectura, a política, o sexo, a exclusão penal, o hospício e a loucura). Distanciando-se do idealismo de Hegel e do materialismo de Marx, Foucault sai dos termos do binómio ideal / material e recusa todos os outros universais. Os termos Sujeito e Objecto denunciam os seus próprios processos de validação. O poder do dispositivo coincide tanto com o real como com o ideal. Produz em si mesmo a realidade e a verdade.

Foucault ultrapassa o paradigma estruturalista que privilegia o sistema a-histórico. Debruça-se sobre a mudança, a diacronia, para nela isolar as regularidades produtoras da irregularidade que é a mudança.

Barthes aplica os conceitos de ‘conotação’ e ‘denotação’ de Hjelmslev aos mecanismos de produção de sentido em todas as actividades humanas (Barthes, 1957/1988a). Define duas ordens de significação, em que, de modo iterativo, se passa da significação primeira, denotativa, para a segunda ordem, em que signos denotados agem em nova relação sígnica, como significantes, de outros signos sobrepostos: é a geração conotativa da cultura, das ideias e suas manifestações, com os respectivos conteúdos que este autor designa por ‘mitos.’

O tema racial é usado por Barthes para explicar o que é o mito ideológico. Perante a capa do Paris-Match, de 1955 (Figura 2-1):

Eu estou na barbearia; dão-me um número de Paris-Match. Na capa um jovem negro vestido

com uniforme francês faz a saudação militar, com os olhos erguidos, fixados certamente numa prega da bandeira tricolor. Esse é o sentido da imagem. Mas quer eu seja ou não ingénuo, vejo bem o que ela me significa: que a França é um vasto Império, que todos os seus filhos, sem distinção de cor, servem fielmente sob a sua bandeira, e que não há melhor resposta aos pretensos detractores de um pretenso colonialismo do que o zelo deste negro em servir os seus pretensos opressores. Encontro-me pois, ainda aqui, perante um sistema ideológico privilegiado: há um significante, formado já, ele, de um sistema prévio (um soldado negro faz a saudação militar francesa); há um significado (que é aqui a mistura

intencional de francesismo e de militarismo); e há, enfim, uma presença do significado através do significante (Barthes, 1957/1988a, p. 187).

Os ‘mitos’ de Barthes estão próximos da retórica ideológica e do estereótipo.

Este autor propõe-se concretizar a ‘ciência geral dos signos’ proposta por Saussure: introduz a semiologia da moda, da publicidade, da banda desenhada, da literatura, ultrapassando, claro está, as distinções académicas entre cultura erudita e cultura popular – ao mesmo tempo que o fazem os Cultural Studies, ou Estudos Culturais.

Barthes contribui para as conceptualizações pós-estruturalistas na medida em que transgride os limites do ‘sistema’ ou ‘paradigma’ quando propõe entidades que lhe são exteriores, ou conteúdos determinados pela manifestação, como o faz também Lacan.

Barthes propõe como objectivo último da semiologia o acesso à ideologia (Barthes, 1966/1989, p. 79). Sabe, contudo, que a linguagem se escreve a si mesma sem se ver fora da linguagem. Que qualquer análise é uma ‘vista’:

Qualquer descrição literária é uma vista. Dir-se-ia que a enunciação, antes de descrever, se

põe à janela, não tanto para ver melhor, mas mais para basear aquilo que vê no seu próprio quadro: o peitoril permite o espectáculo. Descrever, é portanto, colocar o quadro vazio que o autor realista transporta sempre consigo (mais importante que o seu cavalete), diante de uma colecção ou conjunto de objectos inacessíveis à palavra sem essa operação maníaca (…); para poder falar deles, é preciso que o escritor, com um rito inicial, transforme primeiro o ‘real’ em objecto, tirá-lo da sua pintura: numa palavra: despintá-lo (despintar é fazer descer

o tapete dos códigos, é referir, não uma linguagem a um referente, mas um código a outro código. Assim, o realismo (bastante mal nomeado e, em todo o caso, muitas vezes mal interpretado) consiste, não em copiar o real, mas em copiar uma cópia (pintada) do real

(Barthes, 1970/1999, p. 47).

Barthes reergue o projecto semiológico de Saussure, mas descobre-se na teia da denotação / conotação, chave para a descodificação de mitos e para a elaboração crítica da metalinguagem:

Estruturalmente, a existência de dois sistemas considerados diferentes, a denotação e a conotação, permite ao texto funcionar como um jogo, pois cada sistema reenvia para outro, de acordo com a necessidade de criar uma certa ilusão. Ideologicamente, por fim, este jogo

assegura vantajosamente ao texto clássico uma certa inocência; dos dois sistemas, denotativo

sentidos, mas finge ser; sob tal ilusão, ela não é, finalmente, senão a última das conotações

(Barthes, 1970/1999, p. 15).

A localização, no texto, de ‘deidades’ denotativas é um artifício ideológico inerente a quem é limitado pelo ponto de vista (a condição humana). A denotação é a localização do quadro, é a estrutura do perspectógrafo. A denotação é a mais ideológica e perversa das conotações, precisamente por ser aparentemente objectiva, natural, passiva, simples, ‘denotativa.’ A ilusão da denotação é o contraponto narrativo da interpelação de Althusser (1971/1980). O estruturalismo revela-se aí como um mecanismo ideológico de metalinguagem.

A pesquisa dos Estudos Culturais, lançada nos anos 60 por Anthony Hogarth, na Universidade de Birmingham, e hoje dirigida por Stuart Hall, caracteriza-se por utilizar uma perspectiva semelhante à de uma antropologia da vida urbana. É um olhar ‘etnográfico,’ isento, sobre a nova cultura popular, os modos de vida, os objectos de comunicação quotidianos, as novas realidades pós-coloniais. Os Estudos Culturais encaram a banalidade do quotidiano como se fosse uma manifestação desconhecida, a estudar por métodos objectivos, como a observação participante, o questionário, ou, muito menos frequente, a análise de conteúdo.

Também aliam a problematização ideológica do pós-guerra aos estudos qualitativos de base empírica produzindo um corpo de investigação na primeira linha da interpretação pós-moderna da cultura. Um dos passos decisivos consistiu em anular a distinção entre a cultura erudita e a cultura popular, ainda vigente mesmo nos textos mais avançados da Escola de Frankfurt. De facto, nos Estudos Culturais, surge tão atenta a pesquisa sobre os pequenos anúncios pessoais como sobre os romances, ou é tão válida a pesquisa sobre cinema como sobre concursos televisivos. É a perspectiva da elucidação, por exemplo, dos agregados ideológicos que manifestam poder nos discursos e nas práticas, presentes em temas tão candentes como o feminismo, o neo-colonialismo, o multi-culturalismo, ou as manifestações dos mass media e da publicidade.

Os Estudos Culturais analisam também todo o circuito socioeconómico da comunicação, da pessoa à indústria, do consumidor ao accionista, e de todos os comportamentos comunicativos ideológicos quanto às estratégias e práticas de produção de discursos.

Os Estudos Culturais fazem a crítica ideológica sem recorrerem à ‘linha de horizonte artificial’ da denotação. Para Stuart Hall, a chave está nos processos de codificação e

descodificação, como o seu esquema, ilustrativo da conformação ideológica do programa de televisão, expõe (Figura 2-2).

Sobressai no modelo de Hall a simetria centrada no conteúdo, o programa de televisão. No seu diagrama é enfatizada a sobre-determinação sofrida no conteúdo pelo contexto, tanto de produção como de consumo. Esta sobre-determinação é conformadora, em ambos os momentos, embora não idêntica. O consumo pré-determina (codifica) o que pode ser consumido (i.e. o conteúdo) seja pela partilha da tecnologia, de códigos e conhecimentos, de hábitos e expectativas, seja por assentimentos sociais. Por seu lado, a produção determina (codifica) o conteúdo pelos seus modos profissionais, pelos constrangimentos e possibilidades tecnológicas, pelos seus quadros de conhecimento, gerais ou especializados, pelas suas rotinas profissionais, pelos códigos partilhados. O que permanece, a substância da comunicação, é o conteúdo. A forma está nos momentos de produção e de consumo. É um modelo informado em Marx, em que a praxis determina o espírito.

Mas o conteúdo, sendo conformado, não vê as respostas ou leituras que dele se fazem serem limitadas com eficácia. Longe disso. Hall cita os três sistemas de significação de Parkin (1972) dentro da perspectiva ideologia hegemónica. O primeiro, o sistema dominante, corresponde a uma interpretação dentro da manutenção da doxa, naturalizando as desigualdades e promovendo uma adesão das classes subordinadas, tanto numa forma

Programa enquanto discurso significativo CODIFICAÇÃO Estruturas significativas 1 Quadros de referência de conhecimento ………. Relações de Produção ………. Infraestrutura técnica DESCODIFICAÇÃO Estruturas significativas 2 Quadros de referência de conhecimento ……… Relações de Produção ……… Infraestrutura técnica

Figura 2-2. Modelo encoding / decoding

‘deferente’ como ‘aspirante’; o segundo, o sistema subordinado, é um quadro sócio moral que apoia o sistema dominante sem todavia deixar de tentar constantes pequenas negociações para obter benefícios corporativos. Este sistema, pelo seu agir, promove respostas, ora ‘acomodatícias,’ ora ‘negociadas,’ às desigualdades. Finalmente o terceiro, o sistema radical, é dotado de consciência de classe, age solidariamente e rejeita os processos de negociação particulares, promovendo respostas do tipo oposicional às manifestações de interesses que mantêm a desigualdade (Parkin, 1972, p. 73 e ss.). Para Hall estes sistemas aplicam-se aos níveis de resposta no seu esquema sobre o programa de televisão, e influenciam tanto a codificação, pelo emissor, como a descodificação, pelo receptor. O momento da descodificação, feito segundo uma destas três chaves de descodificação, depende do contexto pessoal do espectador. As três chaves constituem-se então como três códigos alternativos, a leitura dominante, negociada ou oposicional (Hall, 1973/1980), e o seu significado é, antes de ser apreendido, alvo de negociação pela audiência.

Hall apercebe-se da centralidade substantiva do conteúdo, e das possibilidades de leitura que o conteúdo oferece. Os Estudos Culturais da Universidade de Birmingham, os trabalhos sobre noticiários do Glasgow Media Group (1976) e as análises de conteúdo qualitativas cinematográficas na revista Screen dedicam-se a isolar os sintomas ideológicos. Estas abordagens tornam mais e mais evidente um dos paradigmas pós-modernos, aquele que problematiza a determinância ideológica. Os novos problemas que se tornam visíveis neste novo contexto de crítica do conteúdo, ou de análise de discursos, são, por exemplo, as questões pós-coloniais, o multi-culturalismo e a racialidade, o feminismo, as sub-culturas, as queer theories, a ecologia, a retórica da história, os novos discursos e formas familiares, ou temas mais específicos, como a obesidade e a magreza mórbidas.

O modelo ideológico de comunicação de Hall (1973/1980) segundo o esquema codificação / descodificação ainda hoje é dos mais influentes. Situa-se próximo das formulações do argentino Eliseo Véron (1980). Véron, aluno de Lévi-Strauss, propõe uma reformulação do processo de construção ideológica, recuperando a ‘semiose ilimitada’ de Peirce na forma hegeliana do devir histórico da sociedade. Introduz as noções de gramáticas de produção (próximas da pretensão, de Weber) e gramáticas de reconhecimento (próximas da crença, também de Weber): são aparatos sócio-culturais em oposição, desfasados, mas em constante retroacção. Deste desfasamento gera-se a cultura, em permanência, situando-se o poder, invisível, na capacidade de ser ‘reconhecido’ – assim a ideologia se produz, reproduz e renova.

A crise dos significantes permite a crítica dos fundamentos da razão, como o sujeito, o objecto, a verdade. Lacan enuncia que o encadeamento de significados substitui-se ao real: o ‘eu’ é encarado como conjunto de significados e estes são determinados pelas cadeias históricas de significantes – as mesmas que Bourdieu aponta na sua crítica das biografias (Bourdieu, 1994). Lacan, levando mais longe a dialéctica marxista, afirma que o conceito de ‘eu’ é ilusório, construído, determinado pelas condições materiais de vida, estas agora sob a forma dos significantes. Propõe um regresso a Freud e faz a correspondência entre os níveis da personalidade e os novos conceitos de Saussure (significante, significado, arbitrariedade do signo). A condensação, de Freud, é descrita por Lacan no mecanismo linguístico da metáfora, no eixo do paradigma, de Saussure e Hjelmslev, e o deslocamento ou fetichismo, descrevem-se no mecanismo da metonímia, no eixo do sintagma (Lacan, 1949/2002a, p. 183). Lacan relembra a revolução copernicana que Freud declarara: o corpo é um significante, um sintoma, a que é atribuída uma identidade outra, na fase do espelho, e não um a priori que atribui identidades em redor (Lacan, 1949/2002b). Aí a identidade é construída como um processo, significado móvel numa relação de deslizamento contínuo, determinado pelos significantes, na dinâmica jogada na arbitrariedade do signo. Dos deslizamentos advêm as patologias e também as curas:

…podemos dizer que é na cadeia do significante que o sentido ‘insiste’ mas que nenhum dos seus elementos ‘consiste’ na significação que é nesse momento capaz (Lacan, 1949/2002a, p. 170).

O traço que separa o significante do significado em Saussure (St/Sd) é apontado por Lacan como sendo o inconsciente de Freud: não existindo, sabe-se onde está (Lacan, 1949/2002a, p. 183). E o autor inverte os termos do cogito:

… Será o local que ocupo o sujeito de um significante concêntrico ou excêntrico, em relação ao local que ocupo como sujeito do significado? – esta é a questão.

Não é a questão de saber se eu falo de mim de um modo que se conforma com o que sou, mas antes de saber se eu sou aquele de quem falo (Lacan, 1949/2002a, p. 182).

Lacan evidencia a crise do ponto de vista moderno. O eu não é o ápice do perspectógrafo: ‘eu não estou onde está o jogo do meu pensamento; eu penso no que sou onde eu não penso que penso’ (Lacan, 1949/2002a, p. 183). O eu é constituído pela subtracção dos significantes, como um outro construído. O eu existe porque é visto no centro do perspectógrafo, ele mesmo uma construção ideológica anterior à construção do eu: ‘o que me determina, ao nível mais profundo, no visível, é o olhar que é exterior (…) eu sou foto-grafado’ (Lacan, 1977, p. 126).

No pós-estruturalismo são interrogados os limites conceptuais desta modelização. Critica-se, por exemplo, a conceptualização de totalidade fechada que está implícita nas noções saussureanas de ‘langue,’ ‘significante’ e ‘paradigma’: o sistema. Por outro lado, o isomorfismo estrutural entre significante e significado sugere a sua inter-mutabilidade. Na inversão dos termos perde-se o paradigma cartesiano do real versus consciência, ou melhor, do Objecto versus Sujeito.