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A música Cristã na Idade Média, entre os séculos VI e XVI: um modelo se

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1.1. Linguagem Musical e Cristianismo: formatos, conteúdos e transgressões

1.1.1. A música Cristã na Idade Média, entre os séculos VI e XVI: um modelo se

Para percebemos os momentos de transgressão musical no cristianismo é necessário antes de tudo entender como os modelos foram se estabelecendo como modelo oficial da instituição ou ainda aqueles que se tornaram consensualmente aceitos. Dessa forma, precisaremos construir nosso panorama histórico conceitual a partir da Idade Média, tempo no qual a Igreja Católica Romana organizou-se enquanto instituição religiosa, e nessa construção foi formando o modelo musical religioso oficial para o cristianismo. Esse modelo musical era fundamental para que a música fosse utilizada

dentro da sua liturgia. Para se criar um modelo foi crucial elaborar uma estruturação para a escrita musical. Essa escrita musical baseou o modelo para toda a linguagem musical, sacra ou profana, que foi sendo produzida desde então. Uma das ações que contribuíram nesse processo de estruturação aconteceu em Milão, na Itália, no século IV a partir do momento em que o bispo Santo Ambrósio introduziu estribilho vocais aos cânticos: “Ambrósio fundou na sua diocese uma liturgia magnífica, determinando as Antífonas e os Hinos a executar para as diferentes festas do ano e compondo, ele próprio, letra e música de um grande número de cantos religiosos” (CHAMPIGNEULLE, 1961, p. 14). Todavia, foi o papa Gregório Magno, no século VI, que acrescentou algumas alterações na obra produzida por Santo Ambrósio e organizou um Antifonário, e determinou que este fosse utilizado como base para toda a liturgia cristã de todos os lugares, o que permitiu uma unidade musical dentro da Igreja Cristã. O Papa Gregório não inventou um novo formato musical, mais compilou os modelos que já eram utilizados em diversos lugares onde a Igreja Cristã estava se estabelecendo, buscando um estilo que fosse ao mesmo tempo uma mistura do que havia e criando um formato universal, para que de certa maneira houvesse uma homogeneidade musical. Então, em sua homenagem esse estilo musical recebeu o seu nome e assim nascia o canto gregoriano. Esse estilo é utilizado até os dias de hoje em muitas liturgias católicas e que foi durante muitos séculos o modelo estabelecido para a música cristã. Esse canto tinha como características: ser executado apenas por vozes masculinas; “(...) se dividia em oito modos, isto é, em oito sistemas de escalas; esses modos estão ali somente para fixar a extensão da melodia: são os quadros em cujo centro podem mover-se as vozes” (CHAMPIGNEULLE, 1961, p. 15- 16). Possuem:

(...) riqueza melódica, o ritmo puramente prosódico, subordinado ao texto, dispensando a separação de compassos pelo risco e a rigorosa homofonia: o cantochão, por mais numeroso que seja o coro que o executa, sempre é cantado em uníssono a uma só voz (CARPEAUX, 1977, p. 16).

Era um canto monódico com grande ênfase na palavra cantada em relação a melodia, isso porque, os que esses cristãos, especialmente os padres, bispos e papas, buscavam era ensinar ao povo, majoritariamente analfabeto, a Bíblia através da linguagem musical. Segundo Xabier Basurko os padres tinham um apreço pela melodia, mas “insistiram com firmeza e clareza em sua função de serviço e de subordinação à

palavra divina proclamando no salmo” (BASURKO, 2005, p. 44). Eles também insistiam que o canto cristão deveria ser uma expressão inteligente do ser humano, e não uma mera repetição, deveria ser cantado com atenção num espírito meditativo para atingir uma sintonia com a voz proclamada no exterior e o que a mente entoa no interior (BASURKO, 2005). Percebemos assim que o modelo estabelecido para o estilo do canto cristão privilegia as palavras entoadas, com isso os fiéis oferecem louvor a Deus, mas também são instruídos sobre a própria palavra divina, tendo em vista uma transformação interior nas pessoas, para que elas possam praticar a vontade de Deus no seu cotidiano.

No processo de formação da linguagem musical o Cristianismo foi fundamental, pois, no século XI, na cidade italiana de Arezzo o monge Guido d’ Arezzo estabeleceu o modelo para a escrita musical tal qual temos até hoje. Guido d’ Arezzo organizou: “(...) o sistema do hexacorde, a solmização, os progressos da notação musical e a mão guidonianal” (ALALEONA, 1972, p. 69). Ele nomeou as notas musicais a partir das primeiras sílabas do hino a São João Batista, formado pelas seguintes letras:

UT queant laxis Para que se possa REsonare fibris Cantar com vigor

MIra gestorum Apreciando a grandiosidade FAmuli tuorum De teus notáveis feitos SOLve pollute Absolve a mácula LAbii reatum Dos lábios dos teus servos

Sancte Joannes! Ó São João! (MONTANARI, 1988, p. 28).

Posteriormente o UT foi substituído pelo Dó e a nota Si foi acrescentada. A partir daquele momento estava constituída a escala musical ocidental com setes notas musicais. Percebemos desse modo que a Igreja Cristã não apenas implementou um formato musical para sua liturgia, mas, também criou o formato que ultrapassa o território religioso e é utilizado por toda a linguagem musical produzida nos últimos séculos.

Cabe-nos também um destaque relacionado a música profana do período para que possamos perceber a diferença entre as linguagens musicais “sagradas” e “profanas”. Se a ênfase da música cristã estava na palavra, a música popular e não religiosa privilegia o ritmo, isso porque, como destaca Andrade:

A música popular anônima se origina em grande parte da precisão de organizar num movimento coletivo as festas e trabalhos em

comum. Daí as danças, as marchas, e os cantos de trabalho, que - nem cantigas de ceifa, cantigas de fiadeiras, barcarolas, acalantos etc. (ANDRADE,1942, p. 49-50).

No ritmo Rondó há o uso de fórmulas rítmico-melódicas repetidas que visam a memorização e o gesto. Outro estilo musical típico do período são as canções trovadorescas. Essas canções eram produzidas pelos trovadores com o intuito de divertir a corte, possuíam letras com poética rica, com uma temática de amor, dirigidas a uma dama, recheada de formalismo sentimental, com histórias que em alguns casos baseavam- se num amor inatingível, e outros composto por elementos eróticos. Segundo Segismundo Spina (1972) entre as principais características da lírica trovadoresca estão: submissão absoluta a dama; vassalagem com humildade e paciência; promessa de fidelidade no serviço e na honra a dama; prudência; moderação; a mulher amada possui a maior formosura do mundo; por ela o trovador renuncia aos títulos, as riquezas e as posses dos demais impérios. Invoca os pássaros como mensageiros da paixão; existem confidentes das tragédias amorosas. Na presença da mulher o trovador sente-se impossibilitado de se declarar, assim, sua voz fica embargada e ele treme. Ocorre a perda do apetite, insônia e dolorosos tormentos. O cavalheiro percebe na morte a solução para os seus dramas incontroláveis, além de sentir prazer na humilhação e no sofrimento amoroso, tal qual um masoquista (SPINA,1972).

Apesar de buscar o distanciamento em termos de melodia, as letras na Idade Média da música cristã receberam a influência da música profana trovadoresca, pois, as características atribuídas a dama, poderiam ser facilmente atribuídas na relação entre os fiéis e os atributos da Virgem Maria, mãe de Jesus. Nesse caso Maria seria a dama e os fiéis o amado. A ordem dos dominicanos começou a impor como tema oficial aos novos trovadores o culto a Maria, composto de um lirismo contemplativo da Virgem. (SPINA, 1972).Percebemos nesse caso que os cristãos não realizaram uma transgressão através da quebra do modelo musical estabelecido sim uma negociação desde com o estilo musical do espírito da época implementado o conteúdo religioso. Apesar das instituições cristãs tentarem muitas vezes salientar que existe uma divisão clara e bem definida entre o padrão aceito para a produção de música religiosa em relação a música profana, percebemos que constantemente essas fronteiras não são bem delimitadas ou definidas, especialmente pela reciprocidade do espírito da época, dos processos de enculturação, que abrange toda a

produção cultural de um período. Quando essas negociações parecem de forma mais sutil raramente produzem uma ruptura polêmica ou transgressora.

Um outro destaque que nos cabe realizar sobre a música cristã da Idade Média que também utiliza da lírica trovadoresca de uma maneira mais transgressora está relacionado as mulheres da mística. Todavia, precisamos primeiramente discorrer sobre essa mística que surge a partir da filosofia medieval cristã através do pensamento de Dionísio. Em “(...) sua vertente cristã, se vê enredada numa mística que une elementos pagãos e cristãos e que termina por estabelecer a estrutura e a terminologia do que chamamos de mística cristã” (NOGUEIRA, 2013, p. 157). Dessa forma o místico: “(...) é aquele que se recolhe e que neste recolhimento se despoja de tudo que pode constituir um empecilho no caminho de sua união com o divino” (NOGUEIRA, 2013, p. 157). E foi a partir do século XII, que os pensadores e pensadoras dessa mística cristã:

(...) insistem em dizer o indizível, só sendo tal discurso possível na medida em que transgredirem a linguagem ordinária. Quer isto significar que dizer o indizível implica transformar o ordinário em extraordinário e assim a linguagem deve ser superada no mesmo sentido em que a experiência mística pode ser interpretada como a superação do humano. Assim, a linguagem utilizada pelos pensadores místicos (destacando, sobretudo, as formulações paradoxais – se analisadas do ponto de vista de uma lógica discursiva apoiada no Princípio de não contradição – e a linguagem apofática) diz, sem dizer, o que ser quer dizer sobre o indizível (NOGUEIRA, 2013, p. 158).

Muitas mulheres seguem o caminho da experiência mística. Dentre as quais podemos destacar: Hildegard de Bingen, que funda conventos femininos denominados Beguinas, Marguerite Porete, Catarina de Siena, Christine de Pisan, Hadewijch de Antuérpia e Santa Tereza de Ávila. Entre essas experiências míticas estão as visões e as chagas. A partir dessas experiências com o divino essas mulheres escrevem poemas e canções com um conteúdo diferente das demais canções religiosas, pois, consideravam- se mais íntimas de Deus em função de suas experiências espirituais. Elas acreditavam que suas palavras eram reflexo do próprio Deus. Essas canções, também no estilo trovadoresco, falavam de amor e de uma união muito próxima com Deus, uma relação que percebe Deus como noivo, e amante enquanto elas seriam suas noivas e amantes.

Nessa perspectiva das místicas, Deus se revela com características e sentimentos humanos (NOGUEIRA, 2013; TROCH, 2013; PALAZZO, 2002; RENDERS, 2011). Uma transgressão de conteúdo, especialmente se pensarmos que o imaginário sobre Deus da maioria das pessoas da Idade Média, segundo nos aponta Jacques Le Goff, pois era bem diferente. Para Le Goff (2017) o Deus imaginado pela maioria dos homens e das mulheres durante os diferentes momentos da Idade Média tinha como característica: ser o Deus dos chefes e é o Deus oficial, quando o Cristianismo se torna o Deus do poder político; é o Deus do lugar de culto, porque os primeiros templos começam a ser construídos, é o Deus da Bíblia; é o Bom Deus; é o Deus inacessível porque está num nível superior; é misterioso; da majestade e do Juízo Final, da dominação, é Rei da cólera (LE GOFF, 2017). Um Deus bem diferente do que a concepção das místicas, tal como podemos perceber através da descrição das canções de Hadewijch que falam sobre:

(...) o amor que é livre e orgulhoso e que cria autonomia e autoconsciência. Ela conectou canções religiosas com poesia dos trovadores daquela época. Ela se vê como uma noiva e amante de Deus, e descreve uma relação muito pessoal de amor com Deus que a leva a uma situação de liberdade e autoestima (TROCH, 2013, p. 7).

Nessas transgressões em relação ao formato e ao conteúdo musical cristão expressas na relação de proximidade com o divino e que se utiliza da linguagem dos trovadores. As mulheres místicas esboçaram uma fé mais pessoal, amorosa e de liberdade do padrão estabelecido ao feminino do período e mesmo ao padrão de vivência da religiosidade humana. Para Maria Simone Marinho Nogueira as mulheres míticas da Idade Média realizavam uma quádrupla transgressão:

(...) uma transgressão de gênero (mesmo que não deva ter o peso do sentido moderno do termo); uma transgressão da ortodoxia da Igreja (quando criticam explicitamente ou veladamente alguns dos seus hábitos); uma transgressão linguística – ou de expressão – (posto que escrevem em língua vernácula e não em latim – língua oficial da igreja) e uma transgressão dos limites da relação entre o humano e o divino (quando a alma e Deus se tornam um só) (NOGUEIRA, 2013, p. 262-263).

Através da transgressão de gênero, da ortodoxia, entre a relação dos seres humanos como o divino e de linguagem para se dirigir e falar sobre Deus essas mulheres da mística cristã continuaram influenciando muitos movimentos de mulheres no transcorrer da história, e no nosso caso específico o conteúdo da música religiosa. Pois, mesmo com os passar dos séculos as caraterísticas atribuídas a dama e seu amado como metáfora para a relação de Deus e a igreja, as experiências consideradas mais profundas com o divino, as características humanas de Deus, a erotização são temas dos conteúdos utilizados nas letras dos cristãos em suas canções. Isso pode ser observado na hinologia dos primeiros missionários evangélicos que chegaram ao Brasil, e nas canções da música gospel contemporânea. Com isso percebemos que muitas vezes o que é considerado transgressor, num sentindo de inovação, num determinado período histórico demonstram mais uma continuidade do que já aconteceu em outro período.

1.1.2. Um reformador de formato e conteúdo da canção cristã: A música em

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