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Um formato transformador: A gravação musical e seu uso pelos evangélicos

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1.1. Linguagem Musical e Cristianismo: formatos, conteúdos e transgressões

1.1.4. Um formato transformador: A gravação musical e seu uso pelos evangélicos

O século XX foi um período de expressivo desenvolvimento para a tecnologia. Desde a segunda metade do século XIX muitos pesquisadores desenvolviam suas ideias e muitas delas se concretizaram a partir do aprimoramento de diferentes pesquisas experimentais que juntas deram origem a múltiplos aparelhos. Esses aparelhos transformaram a forma da humanidade se relacionar entre si, no espaço e no lazer. Uma invenção começou a marcar profundamente a relação na produção, apreciação e utilização da linguagem musical. Ela foi um marco divisor e revolucionário no formato de divulgação sonora: a criação dos aparelhos capazes de gravar e reproduzir canções. Se até o final do século XIX para observar uma apresentação musical era necessário um deslocamento até uma casa de música, um teatro ou frequentar uma celebração cúltica religiosa. A partir da invenção do gramofone esse deslocamento não era mais necessário, isso porque, graças a ele era possível apreciar um grande espetáculo musical no conforto dos lares. No entanto, o primeiro experimento com as características de gravar e reproduzir a música foi o fonógrafo, criado por Thomas Alva Edison em 1878. Nele as gravações eram feitas em cilindros de cera que podiam ser posteriormente reproduzidas. O fonografo passou por alterações que aperfeiçoaram sua tecnologia até chegar no modelo gramafone em 1888 através do trabalho de Emile Berliner. Desde então os aparelhos de gravação e reprodução foram passando por novas adaptações e aperfeiçoamentos, com essas transformações as canções também foram adaptando o seu formato para tornar a gravação e a reprodução musical possível. Essas invenções chegaram ao Brasil e trouxeram consigo mudanças na apreciação musical, pois:

(...) a coleta providencial de exemplos de alguns gêneros musicais ligados à cultura negro-brasileira, como o lundu e os batuques, os quais certamente ficariam sem registro, não fora a oportunidade

histórica da criação do processo de gravar sons (TINHORÃO, 2014, p. 14).

Como atesta José Ramos Tinhorão (2014) a possibilidade de gravação e reprodução musical favoreceu especialmente a música popular, que é a que mais sofria com as perdas de memórias coletivas, como atestada com o passar do tempo porque raramente eram escritas numa partitura. A duração e a quantidade de músicas que poderiam ser gravadas foram transformadas conforme o avanço na tecnologia de armazenamento. A profissionalização dos músicos foi um fenômeno decorrente dessas inovações tecnológicas, pois, a partir desse momento era possível ser remunerado não apenas pelas apresentações ao vivo mais também pela gravação instrumental. A gravação musical transformou a relação da música com a cultura e com a economia. Isso porque gradativamente surgiu o mercado de gravadoras mundiais, já que elas eram responsáveis pela gravação, produção, distribuição e divulgação dos seus cantores e bandas. A princípio esse interesse comercial das gravações estava relacionado ao interesse em vender fonógrafos e gramofones.

A novidade dos aparelhos musicais agradou muito o povo brasileiro, ter um desses em casa tornou-se uma necessidade das famílias do período e logo a moda dos fonógrafos e gramofones agradou os evangélicos. Aparentemente sem nenhuma resistência doutrinária eles aderiram a sua utilização. A primeira gravação de uma música evangélica brasileira aconteceu em 1901, realizada de forma artesanal por José Celestino de Aguiar e pelo reverendoBellarmino Ferraz. Eles e seus familiares formaram um coral a quatro vozes e gravaram o hino “Se nos cega o sol ardente” que fazia parte do repertório do Salmos e Hinos (SOUSA, 2011). Em pouco tempo, acompanhando o ritmo da criação e do crescimento das gravadoras Coros das evangélicas brasileiras começaram a gravar seus discos. O primeiro coro a gravar seu trabalho foi o Coral da Igreja Evangélica Fluminense em 1912. O repertório era composto basicamente de músicas do Salmos e Hinos ou de algumas cantatas natalinas (BRAGA, s.d.p.). Podemos perceber nesse momento que era transgressor utilizar essa nova tecnologia, no entanto o estilo era conservador, porque eram gravações de hinos do estilo coral, estilo esse consagrado na linguagem musical cristã. Outras gravações particulares de diferentes denominações aconteceram nas primeiras décadas do século XX como consequência da crescente demanda de produção e o aumento do mercado consumidor de música evangélica brasileira foram surgindo as gravadoras específicas, duas em especial foram: o Departamento de Rádio e Gravações do Serviço Noticioso Atlas, no Rio de Janeiro, em

1948, e o Centro Audiovisual Evangélico (C.A.V.E.) em São Paulo, no ano de 1950. Com o tempo elas foram expandindo e outras foram criadas, houve ainda um aumento expressivo de cantores, duplas, conjuntos, bandas, ministérios de louvor que gravavam música evangélica brasileira. Paralelamente a criação das primeiras gravadoras desse seguimento ocorreu o aperfeiçoamento da tecnologia de gravação e reprodução que passou pela fase do Long Play (LP) e posteriormente a fase do compact-disc (CD).

Com a possibilidade de gravação e reprodução a linguagem musical passou por uma profunda mudança. Novos ritmos surgiram e com eles novos cantores, bandas, conjuntos, duplas que por sua obra tornaram-se ídolos para milhares de pessoas, com casos em que a popularidade atingiu os quatro cantos do planeta. Uma indústria musical, foi se estabelecendo. Tal indústria rompeu as barreiras da língua materna, do tempo, de espaço e da cultura. Ao ponto das obras musicais tornaram-se atemporais e uma presença na ausência, porque mesmo depois de ter falecido um ídolo musical pode ter suas canções reproduzidas, pois, através das gravações suas produções não morrem. Graças ao constante desenvolvimento da indústria tecnológica, a música pode ser apreciada através do rádio, do cinema, da televisão e da internet. A linguagem musical invadiu o cotidiano das pessoas na pós-modernidade mesmo quando ele é feito para não ser escutada como acontece com a música ambiente denominada muzak. Essa mudança no formato de apreciação, gravação e reprodução representou uma das maiores e mais significativas transformações da linguagem musical na história.

Vale ainda destacar que nos anos iniciais dessas transformações na linguagem musical apreciar a música no conforto de casa através aconteceu quando o rádio entrou em cena. Ele foi o primeiro grande divulgador de conteúdo musical a longa distância, para milhares de pessoas ao mesmo tempo, em diferentes lugares. Para chegar no formato que entrasse no mercado para ser comercializado a história começou no final do século XIX. Ela aconteceu através de um processo lento e foi preciso o desenvolvimento de várias tecnologias, em diversas etapas realizadas por diferentes inventores. Esses processos aconteceram entre os anos de 1864 até a primeira transmissão radiofônica em 1920 (SEVERIANO, 2017). Se sua criação foi lenta e gradativa depois de pronto sua popularização e aceitação pela população aconteceu de forma muito rápida. No Brasil, depois de iniciativas isoladas de distribuição de radiodifusão artesanal em algumas cidades o lançamento oficial do rádio aconteceu durante as celebrações do primeiro centenário da independência do Brasil, na Exposição Internacional do Centenário, no dia 7 de setembro de 1922 (TINHORÃO, 2014). Conforme o número de emissoras

aumentava sua competitividade para encontrar novos ouvintes também, a oferta por uma programação que atraíssem a atenção do público possibilitou a criação de atrações múltiplas. A partir de 1935 a moda eram os programas de calouros, que tinham a intenção de revelar novos cantores para o rádio. Esses programas eram gravados nos auditórios das próprias emissoras radiofônicas e contavam com a participação de uma plateia. Posteriormente vieram os programas de auditório com show musical, espetáculo de teatro e variedades, circo e festa. Outro importante elemento na composição da grade de programação radiofônica foram os anúncios cantados denominadas jingles. Eles movimentavam a publicidade e a propaganda dentro da programação do rádio, com músicas que “ficavam na cabeça das pessoas”. Outro tipo de programa de popularidade eram as radionovelas. Elas mexiam com a imaginação do público através de suas tramas envolventes que permitiam aos ouvintes sofrerem e se emocionarem com os dramas e desventuras dos personagens. Com a expansão musical possibilitada pelo rádio ídolos musicais brasileiros surgiram e se consolidaram e esse período recebeu o nome de “Era de Ouro do Rádio Brasileiro”.

A “Era de Ouro do Rádio”, era o espírito cultural da época para o povo brasileiro nas primeiras décadas do século XX e os evangélicos não poderiam ficar alheios a ela. Alguns perceberam rapidamente a oportunidade produtiva de distribuição de conteúdo evangelístico e musical a longa distância para milhares de pessoas através das ondas radiofônicas. Iniciativas isoladas de programa evangélicos foram surgindo em rádios locais. A primeira delas aconteceu em 19 de maio de 1929 na Rádio Club do Brasil, realizada pelo Reverendo Rodolfo Hasse que enfatizou em sua mensagem Jesus Cristo (BRAGA, s.d.p.). Após a primeira transmissão outros pastores de diferentes denominações produziram programas nas rádios locais, com formatos que seguiam um modelo composto por mensagens evangélicas proferidas alternadas por músicas. Eram programas que iam para o ar em alguma estação de rádio secular, com custos muitas vezes subsidiados pelos próprios membros das igrejas locais através de doações. Em algumas cidades e estações de rádios existem relatos de “perseguição católica” aos programas, que por esse motivo ficavam pouco tempo no ar (FARJADO, 2011). As propagandas sobre os programas eram realizadas por meio dos jornais oficiais das denominações, neles era possível observar a recepção do público, pois, eram comuns cartas enviadas as redações dos jornais ou mesmo enviadas a própria emissora de rádio com as impressões dos ouvintes sobre o programa. Tornou-se muito comum dos anos iniciais do rádio que os membros das igrejas locais convidassem seus vizinhos para ouvirem os programas em

suas casas. Pois, o custo do rádio era muito caro e ter um aparelho desses em casa era um luxo que muitas famílias não podiam bancar (FARJADO, 2011).

Entre os primeiros programas de rádio evangélicos brasileiros vamos destacar alguns de forma cronológica, com a data do início de sua transmissão: Hora Cristã (1931), Confederação Evangélica do Brasil (1938), A Voz Evangélica (1938), Instituto de Cultura Religiosa (1939), Quarto de Hora Batista (1942), A Voz da Profecia (1943), Pátria para Cristo (1945), Ondas de Salvação (1947), Escola Bíblica no Ar, (1949), Voz Evangélica das Assembleias de Deus (1950), Batistas em Marcha (1956), Alô, Alô, Mocidade (1956), Ondas de Paz (1962) dentre outros (BRAGA, s.d.p. ; FARJADO, 2011). Posteriormente o que eram apenas programas evangélicos em meio a programação de alguma emissora radiofônica secular tornou-se programação evangélica de forma integral com a aquisição de emissoras de rádio entre os evangélicos, assim as primeiras emissoras com esse perfil foram se estabelecendo. Essas rádios tinham como destaque na programação a cura e o exorcismo (CUNHA, 2007). Entre esses programas com ênfase em cura e exorcismo, um deles deu origem a uma nova igreja no Brasil. Num fenômeno diferente dos demais programas radiofônicos evangélicos, que já citamos anteriormente, que eram produzidos por igrejas institucionalmente formadas há décadas no país. E que perceberam no formato de distribuição de conteúdo pelo rádio uma possiblidade de evangelização e consequentemente aumento de sua membresia. No caso do programa radiofônico A Voz do Brasil para Cristo, que culminou com a criação da Igreja O Brasil para Cristo, fundada pelo então apresentador do programa Manuel de Mello em 1956 (FARJADO, 2011).

A partir da década de 1990 algumas denominações evangélicas compraram emissoras de rádios, criaram gravadoras e canais de televisão, entre as quais podemos destacar: a Rádio Aleluia, da Igreja Universal do Reino de Deus e a Gospel FM da Igreja Renascer em Cristo. As atuais emissoras evangélicas de rádio privilegiam o conteúdo musical em sua programação, ao contrário dos primeiros programas que tinham sua ênfase na mensagem, tal qual, um sermão durante um culto. Elas também contribuem de forma significativa com a propagação e estabelecimento da Cultura Gospel Brasileira, especialmente porque “A evangelização se dá através da cumplicidade, lazer, entretenimento, cotidiano, força e fé, que andam de mãos dadas com o rádio (PRATA; LOPEZ, CAMPELO, 2014). Trataremos de forma específica outros aspectos da Cultura Gospel Brasileira no capítulo dois. Podemos perceber que com o transcorrer das décadas, desde a criação e a expansão da utilização das frequências radiofônicas pelos evangélicos brasileiros, que o rádio tem sido um meio significativamente utilizado para a divulgação

de conteúdo religioso, especialmente o musical. As estratégias em termos de formato e de conteúdo de distribuição de conteúdo da linguagem religiosa estabelecida pelos evangélicos brasileiros adaptou-se muito bem a sua utilização. Do mesmo modo que a invenção da imprensa contribuiu para a expansão da Reforma Protestante de Lutero no século XVI, o rádio tem sido nos séculos XX e XI uma das mais expressivas invenções, em termos dos meios de comunicação de massa, que contribui na expansão de conteúdo religioso das igrejas evangélicas brasileiras.

1.1.5. Corinhos e grupos musicais paraeclesiásticos: as transgressões de conteúdo e

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