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A música evangélica brasileira no século XIX: O formato e os conteúdos dos

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1.1. Linguagem Musical e Cristianismo: formatos, conteúdos e transgressões

1.1.3. A música evangélica brasileira no século XIX: O formato e os conteúdos dos

Após nossos apontamentos sobre a música cristã na Idade Média e no início da Idade Moderna vamos fazer um salto histórico e espacial para discorrermos sobre linguagem musical evangélica brasileira. Seu desenvolvimento aconteceu com a chegada ao Brasil dos missionários evangélicos nas primeiras décadas do século XIX. Entretanto, é necessário discorrermos aspectos do período histórico do país, que ainda era uma colônia portuguesa, para entendermos o contexto em que esses missionários viveram. Foi uma época de mudanças na colônia, especialmente porque aconteceu a chegada da Família Real Portuguesa, esse processo foi desencadeado porque a corte portuguesa precisava fugir dos ataques de Napoleão Bonaparte, em 1808. A chegada da realeza rendeu ao Brasil um expressivo desenvolvimento cultural, para atender as necessidades da Corte. Além do desenvolvimento urbano, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, que se tornou a capital da monarquia portuguesa. Houve a abertura de: teatros, bibliotecas, academias literárias e científicas. Esta efervescência cultural influenciou a música profana produzida na colônia, no entanto, vamos nos concentrar na música evangélica do período.

A primeira igreja evangélica que desembarcou no Brasil nesse momento foi a Igreja Anglicana, beneficiada especialmente pela assinatura do Tratado do Comércio firmado em 1810 entre a Corte Portuguesa e a Inglaterra, que abria os portos coloniais para as embarcações inglesas. Entre os artigos que compunham o Tratado, um deles tratava da liberdade religiosa que seria concedida aos ingleses que habitassem o Brasil ou que estivessem de passagem. Cabe salientar que a igreja oficial da corte portuguesa era a Igreja Católica Romana e em função disso havia uma proibição para qualquer atividade missionária que não fosse católica, logo esse artigo representou um marco para os evangélicos europeus que passava pelo Brasil. E foi por causa da abertura que o artigo estabelecia que, no Rio de Janeiro em 1816, chegou: “(...) o primeiro capelão britânico, Reverendo Roberto Crane, o trabalho foi se desenvolvendo a ponto de, em 12 de agosto de 1816, ser lançada, com o cerimonial anglicano, a pedra fundamental do seu primeiro templo, à Rua dos Barbonos” (BRAGA, s.d.p. , p. 72). Se a lei proibia que os templos evangélicos fossem construídos com aparência de templo, em seu interior havia quase sempre um órgão de tubos de procedência europeia, o que reforça a ideia de que a questão musical era demasiadamente importante nesses primeiros evangélicos que vieram para o Brasil. Além dos anglicanos, desembarcaram no Brasil no século XIX os congregacionais, os batistas, os metodistas e os luteranos. De um modo geral esses evangélicos de diferentes denominações ao se estabelecerem no país cantavam os hinos na sua língua mãe, com o uso de hinários específicos conforme seu modelo religioso. Com o passar das décadas essa música foi se desenvolvendo, segundo as pesquisas de Henriqueta Rosa Fernandes Braga, a música evangélica brasileira da segunda metade do século XIX pode ser dividida em duas fases, a primeira fase entre os anos de 1855 até 1862, relacionada a sua formação e a segunda fase, relacionada a sua consolidação a partir de 1932. Na primeira fase Braga destaca que ocorreu a organização dos denominados hinários eclesiásticos, que na maioria dos casos era formado por canções estrangeiras traduzidas para a língua portuguesa. E a segunda fase uma produção brasileira começa a ser formar, além da formação de coros da música sacra evangélica (BRAGA, s.d.p.).

Seguindo essas perspectivas de Braga podemos reiterar que a partir desse momento estava estabelecido o primeiro modelo, e por muitas décadas considerado o mais sagrado formato de se produzir e entoar músicas nas igrejas evangélicas brasileiras. Esse estilo criou um distanciamento cultural dos sons e dos instrumentos de origens indígenas e africanas, por ter seguido os modelos europeus e estadunidenses dos primeiros missionários. Outra característica da linguagem musical dos evangélicos

brasileiros foi o canto coral, que se tornou fundamental para a construção litúrgica e a prática musical nas igrejas locais. Via de regra, independente da denominação, foram organizados nas igrejas evangélicas brasileiras coros mistos, masculinos, femininos, infantis e de jovens, no formato da divisão de quatro vozes e acompanhado por órgãos. O repertório musical desses coros, bem como das igrejas, ou dos trabalhos religiosos em casas foi baseado por mais de um século no hinário Salmos e Hinos, criado pelo casal de missionários escoceses Robert Reid Kalley (1809-1888) e Sarah Poulton Kalley (1825- 1907). Os Kalley chegaram ao Brasil em 1855, e em 1861 publicaram a primeira edição do Salmos e Hinos. Essa edição era composta por dezoito Salmos e trinta e dois hinos, num total de cinquenta canções. Cada nova edição dos Salmos e Hinos outras canções eram inseridas, de composição do casal Kalley e de outros missionários que viviam no Brasil. Em alguns casos as melodias eram estrangeiras e as letras traduzidas, ou adaptadas para a língua portuguesa, algumas canções contavam com mais de uma opção de melodia. O Salmos e Hinos, não tinha barreira denominacional, e foi utilizado de forma extensiva pelos missionários de todas as igrejas protestantes que chegaram no Brasil no século XIX: “(...) foi o primeiro hinário evangélico brasileiro, até hoje o de maior divulgação e o que tem alimentado, mais ou menos substancialmente, quase todas as coleções depois dele organizadas” (BRAGA, s.d.p. , p. 125). Logo, podemos atestar que a base da música evangélica brasileira em termos de formato remete ao estilo estrangeiro, com nenhum contanto ou ressignificação, ou negociação com a música brasileira que também estava se formando no período. Durante muitas décadas esse modelo internacionalizado criou um impedimento para que nas Igrejas Evangélicas no Brasil utilizassem as influências da música popular brasileira2 em suas celebrações litúrgicas. Os estilos brasileiros eram considerados demoníacos, o modelo consensual de música sagrada entre os evangélicos brasileiros era o importado. Uma certa abertura para as mudanças no formato e nos estilos só começou a acontecer na segunda metade do século XX, através de grupos jovens, que, no entanto, sofreram resistência, como veremos nem outro item desse capítulo.

Em termos de conteúdo das letras os Salmos e Hinos, é constituído por: cristologia, penitência, convite a conversão, sacrifício expiatório na cruz, amizade e amor íntimo com Jesus (próximo ao erotismo), vida futura no céu, individualismo, exaltação

2 Música Popular Brasileira segundo Henrique Autran Dourado consensualmente, refere-se à música não- erudita e não-folclórica feita por brasileiros no Brasil ou mesmo no exterior. Na verdade, a expressão refere- se mais a produção pós-bossanovista, passando pelo Tropicalismo, a Jovem-Guarda e outras correntes (DOURADO, 2004, p. 219)

da vida superior, misticismo, esperança, os fiéis eram considerados embaixadores da mensagem celestial na terra, entre outros assuntos (MENDONÇA, 2008). Antônio Gouvêa de Mendonça separou o conteúdo em cinco tipos de protestantismo para classificar os temas das letras dos Salmos e Hinos: Protestantismo pietista, protestantismo peregrino, protestantismo guerreiro e protestantismo milenarista (MENDONÇA, 2008). O protestantismo pietista tem como características: “(...) o individualismo no cultivo da vida religiosa, a leitura solitária da Bíblia e sua interpretação literal ou espiritualizada e, especialmente, a experiência pessoal com Jesus” (MENDONÇA, 2008, p. 337). No que se refere ao pietismo: Percepção do pecado e sentimento de culpa decorrente do sentimento que foi Jesus que levou sobre si essa culpa. A justiça divina que se transforma em amor e perdão através da contemplação espiritual da cruz. O lirismo se reveste na poesia do cântico sagrado. O sofrimento vicário de Jesus é descrito em detalhes e exaltado com emoção. A linguagem adocicada e próxima do erotismo nas descrições das experiências com Jesus (MENDONÇA, 2008).

O protestantismo peregrino, outro tipo destacado na análise dos conteúdos de Salmos e Hinos realizado por Mendonça, ganhou força no Brasil especialmente após a grande divulgação e leitura do livro de John Bungan, O Peregrino: A viagem do Cristão à Cidade Celestial, de 1678. Nele o autor discorre sobre as dificuldades encontradas por um cristão até chegar à cidade celestial. Tal imaginário tornou-se forte nos cristãos nos séculos que se seguiram, e seu reflexo pode ser percebido nesses missionários que vieram para o Brasil e escreveram suas canções. As características desse protestantismo são: vida no provisório; ética de negação do mundo; expectativa constante do porvir; o mundo além é muito melhor que o presente. Canta-se então a glória do futuro, vislumbrada na verdadeira pátria. Recusa-se os valores do presente. A vida presente é um tempo de peregrinação. O cristão não tem morada e repouso e está rodeado de inimigos; O cristão sente-se como um estrangeiro na Terra, pois ela não é o seu lugar, vive caminhando penosamente para a pátria celestial (MENDONÇA, 2008).

O protestantismo guerreiro, influenciado especialmente pelo Exército de Salvação, fundado em 1878, na Inglaterra. Tem como pensamento preponderante o alistamento dos cristãos para combater o mal, num imaginário semelhante aos dos padres jesuítas que vieram para o Brasil no início do processo de colonização. Pois, não existia inimigos físicos para combater os protestantes que vieram para o país três séculos depois transportaram esse imaginário guerreiro, refletido nas canções para o âmbito da guerra espiritual (MENDONÇA, 2008). Tem como características: o mal é um inimigo a ser

combatido; Jesus é o chefe guerreiro; a vinda pessoal vitoriosa de Jesus é o triunfo final sobre o mal e irá inaugurar o milênio, a certeza que essa vinda será encurtada na medida que o mal for superado pelo bem(MENDONÇA, 2008).

O último tipo segundo Mendonça foi o protestantismo milenarista, que encontrou um terreno bastante fértil no Brasil para o seu desenvolvimento no imaginário popular, especialmente porque esse era o espírito da época no país. Isso porque no período aconteceu o início da República brasileira. Diante do novo regime político o povo carente e sofrido estava desesperançado, ansiava por ações salvadores vindas de outros poderes. Logo, figuras que ofereciam esperanças salvadoras em meio a esse cenário eram facilmente seguidas. O mais importante movimento desse período aconteceu na Bahia, no povoado de Canudos, liderado pelo beato, Antônio Conselheiro entre os anos de 1893 até 1987. Conselheiro era uma espécie de sacerdote e chefe de jagunços, por onde passava, com sua vida nômade agregava seguidores até se estabelecer em Canudos, com uma população sertaneja composta entre 20 e 30 mil pessoas. Essas pessoas estavam em busca de uma vida menos sofrida (FAUSTO, 2009). Além desse cenário brasileiro, o imaginário do protestantismo milenarista também foi influenciado por uma reação perante o liberalismo, suas principais características eram: o Reino de Deus não era produto final da cristianização progressiva da ordem social, reflexo da posição evolutiva mais do que da esperança contida no Novo Testamento. O Reino viria por ação divina e não pelo esforço humano. O homem na Terra não deve edificar o Reino e sim estar pronto para a vinda sobrenatural por intermédio do arrependimento e da fé (MENDONÇA, 2008).

Podemos concluir que a base temática do conteúdo da hinologia cristã dos evangélicos no Brasil refletiu o pensamento europeu, as questões teológicas comuns às igrejas e um certo espírito da época do que acontecia no país e fora dele no período. Vale ressaltar que o reflexo do espírito da época do que acontecia no país e apareceu no conteúdo das letras muito provavelmente de forma não intencional ou explicitado, porém, foi transformado em linguagem teológica. Outro fato a se destacar é que não houve negociações em termos de formato e conteúdo da música produzida e utilizada pelos evangélicos brasileiros com a cultura dos povos que aqui já habitavam o país, especialmente a produzida pelos negros e pelos indígenas. O que gerou um distanciamento da cultura brasileira por partes das denominações evangélicas e consequentemente criou uma barreira entre as manifestações da cultura popular brasileira, considerada profana diante da sacralidade musical dessas igrejas. O conteúdo e o formato

musical nesse período não realizaram ressignificações com a cultura nacional, entretanto, inscreveram o que poderíamos denominar “linguagem musical evangélica brasileira”, que permeou e permeia a maneira de se produzir e utilizar a música em muitas igrejas locais, nas mais variadas denominações evangélicas que foram e que vão surgindo no Brasil.

1.1.4. Um formato transformador: A gravação musical e seu uso pelos evangélicos

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