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Um reformador de formato e conteúdo da canção cristã: A música em

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1.1. Linguagem Musical e Cristianismo: formatos, conteúdos e transgressões

1.1.2. Um reformador de formato e conteúdo da canção cristã: A música em

O século XVI foi marcado por significativas mudanças para a história do Ocidente. Nele as transgressões sobre padrões que durante séculos predominavam culturalmente foram quebrados com grande intensidade. Logo, a quebra de modelos estabelecidos e as mudanças ocorreram também na religião e por consequência na linguagem musical cristã. Foi o período denominado Renascimento, no qual a concepção de mundo deixou de ser teocêntrica, e passou a ser antropocêntrica. Sobreveio uma volta aos valores da Grécia Antiga, e uma revolução no campo do conhecimento científico. Fundamentada no naturalismo, no racionalismo e hedonismo pessoas revolucionaram o jeito de viver da sociedade com obras marcantes. Entre as marcas expressivas dessas mudanças, e as pessoas que contribuíram para que elas acontecessem, está a criação da imprensa, ainda em meados do século XV, por Johannes Gutenberg. Ao criar a imprensa Gutemberg colabora para que as informações circulem com uma maior abrangência, pois, a produção de vários exemplares de um mesmo livro ou de um folheto poderiam ocorrer em escalas muito maiores. Além do que também aconteceu uma mudança estrutural em termos sociais, pois, se até aquele momento as sociedades eram orais através do uso da imprensa elas tornam-se sociedades da palavra escrita. Para a linguagem musical: “A invenção da imprensa contribuiu muitíssimo para a conservação e difusão das obras musicais; e desde esse momento diminuiu cada vez mais o número de composições

perdidas de um dado autor” (ALALEONA, 1972, p. 34). Se hoje somos capazes de executar obras compostas no século XVI é porque as partituras nos chegaram de forma escrita graças à imprensa. A partir do seu uso ocorreram também mudanças relacionadas ao formato da música ocidental. Se por um lado ela perdeu bastante a espontaneidade e o improviso, ela obteve a extensão da leitura e de uma organização: “(...) ganhou uma outra dimensão, revolucionária: a da música escrita, que pôde ser pensada e repensada a partir da sua visão (por assim dizer em estado congelado) sobre o papel” (MORAES, 1986, p. 93-94).

Durante os séculos de predomínio do pensamento cristão no ocidente, alguns reformadores, dentro de sua própria estrutura eclesiástica tentaram questionar algumas posições tomadas pela Igreja em relação as mais diversas questões, no entanto, nenhum deles conseguiu seguir tão longe e profundamente com suas ideias do que Martinho Lutero. Lutero em 1517, resolveu copilar em 95 teses o que considerava erros cometidos pela estrutura institucional da Igreja Católica Romana e as pendurou no dia 31 de outubro na porta da Igreja de Wittenberg, na Alemanha. Entre os pontos discutidos por Lutero nas teses está a crítica a venda das indulgências, ou seja, a venda do perdão realizada pela Igreja Católica Romana aos fiéis, pois, Lutero acreditava que o pecador era justificado somente pela graça mediante a fé. Ao contrário dos outros reformadores que o antecederam, a reforma protestante proposta por Lutero atingiu de forma mais ampla a população por causa da impressa, pois: “(...) as ideias do pré-reformador inglês João Wyclif se espalharam de forma extremamente lenta, por meio de cópias manuscritas, os pensamentos de Lutero espalharam-se pela Europa em poucos meses” (WACHHOLZ, 2010, p. 21). Dessa forma Lutero considerava a imprensa um “dom de Deus”.

Após a difusão das 95 teses Lutero não aceitou se retratar como solicitava a bula Papal enviada a ele, e assim acabou sendo excomungado da Igreja Católica Romana. Após sua saída ele organizou outra igreja, a Igreja Protestante, posteriormente denominada Igreja Luterana. E como toda instituição religiosa se constituindo, pessoas eram necessárias para que seu projeto fosse possível. Dessa maneira, para ganhar adeptos para sua igreja, e para a propagação de suas ideias reformadoras Lutero utilizou a música como uma ferramenta de evangelização. Entretanto, era necessário que as pessoas aprendessem rapidamente as canções, logo, Lutero realiza uma transgressão na linguagem musical cristã para estabelecer seu modelo. Ele utilizou as melodias das músicas profanas alterando suas letras com conteúdo cristão, o que facilitou a memorização da canção e tornou o cântico muito mais próximo do cotidiano do povo. Em Lutero percebemos a

negociação entre formato e conteúdo da música para ser utilizada pela religião, uma transgressão como estratégia de evangelização. Pois, apesar da Igreja Católica Romana aceitar a canção popular, na linguagem vulgar, nas festas e celebrações fora do espaço litúrgico da missa, o que significava um distanciamento do “espírito católico legítimo”, pois eram canções consideradas heréticas, Lutero perceberá nessa forma popular da canção uma forma de utilização no ofício religioso” (ANDRADE, 1942). O que de certa forma, oferece ao povo o sentimento de pertença na liturgia. Ao ponto de: “Concenius escreveu que os cantos luteranos tinham atraído mais gente para a Reforma que os próprios sermões e escritos de Lutero” (ANDRADE, 1942, p. 74).

Além de deslocar o canto cristão para um estilo próximo ao popular, Lutero também promoveu uma mudança no formato do canto, pois, este na Igreja Católica Romana era monódico, ou seja, cantado a uma voz, Lutero começou a utilizar a polifonia, ou seja, o canto dividido por vozes. As transformações no modelo dos cânticos cristãos foram possíveis porque Lutero era músico, tocava flauta e alaúde. Nas celebrações cúlticas de sua Igreja ele utilizava o canto Coral, era um canto mais democrático onde a comunidade toda poderia participar, assim, Lutero “(...) tirou a comunidade reunida do isolamento e a colocou no meio de um empreendimento litúrgico e musical vivificante e ativo. [...] todos foram encorajados a se juntar ao louvor comunitário (SCHALK, 2006, p. 58). O coral luterano tinha como características: (...) “melodia sacra popular e de origem popular, cantada pela comunidade inteira, e não por um grupo profissional restrito, e era acompanhado pelo órgão” (CARPEAUX, 1977, p. 28)

Lutero compreendia que a música cristã tinha cinco modelos diferentes de louvor: “1- como criação e dádiva de Deus; 2- como proclamação e louvor; 3- como canto litúrgico; 4- como canção do sacerdócio de todos os crentes; 5- como um sinal de continuidade da igreja uma” (SCHALK, 2006, p. 40). Para além do formato, do estilo e do modelo que se estabeleceu como possibilidade para a música cristãs a transformação na forma de cantar da Igreja Reformada de Lutero foi bastante transgressora em relação ao modelo estabelecido anteriormente pelo cristianismo do catolicismo romano. Houve também uma mudança no conceito em relação a ênfase da música religiosa: “(...) mudou a ênfase de ciência especulativa que era dada à música para uma ênfase prática, ou seja, a música como algo a ser executado praticamente, uma arte de performance” (SCHALK, 2006, p. 22). Em decorrência de todas essas transformações propostas por Lutero na linguagem musical do cristianismo, que ocorreu no seu tempo, e prevalece como fundamento para a maioria das Igrejas Evangélicas que surgiram desde então. Segundo

Otto Carpeaux através da linguagem musical de Lutero sobreveio um impacto social em termos de estratificação visto que nos países onde os:

(...) fiéis à fé romana, a música sai; mais que antes do recinto das igrejas para encher a vida da sociedade aristocrática; nos países que aderem a Reforma, a música retira-se principalmente para a igreja, adaptando-se às formas mais simples de devoção popular (CARPEAUX, 1977, p. 23).

Já que Lutero aproximou a linguagem musical as formas mais simples de devoção popular mais através de sua Reforma Protestante a Igreja Católica Romana precisou se reorganizar, inclusive nas questões musicais. Isso aconteceu através da denominada Contrarreforma, ou Reforma Católica. Com decisões tomada especialmente no Concílio de Trento, na cidade italiana de mesmo nome, realizado durante um longo período com excessivas interrupções entre os anos de 1545 e 1563. Entre as medidas tomadas estavam: a condenação da Reforma Protestante; reafirmação dos princípios católicos; retomada do Tribunal do Santo Ofício; criação de uma relação de livros proibidos denominado Index Librorum Phohibitorum; incentivos a catequese do denominado “Novo Mundo” com a formação de novas ordens religiosas, dentre as quais a Companhia de Jesus, ordem dos jesuítas, que posteriormente vem para o Brasil; reafirmação da autoridade da papal; manutenção do celibato eclesiástico; edição do catecismo tridentino, reformas e fundação de seminários e universidades; eliminação dos abusos que envolviam as indulgências e a adoção da Vulgata como tradução oficial da Bíblia. A música utilizada pela Igreja Católica Romana também passou por uma mudança em seu formato. Segundo Donald Jay Grout e Claude Victor Palisca as decisões do Concílio de Trento sobre a música foram:

(...) necessidade de evitar tudo o que fosse «impuro ou lascivo» para «que a casa de Deus possa de direito ser chamada uma casa de oração». A aplicação desta diretiva foi deixada ao cuidado dos bispos diocesanos, tendo sido também nomeada uma comissão especial de cardeais para superintender na sua aplicação em Roma. O concílio não abordou quaisquer aspectos de carácter técnico: não foram especificamente proibidas nem a polifonia nem a imitação de modelos profanos (GROUT; PALISCA, 2001, p. 284).

Percebemos que se por um lado Lutero buscava ritmos populares para a linguagem religiosa, a Igreja Católica Romana buscava uma separação do que ela considerada “puro” e “impuro” em termos musicais para o uso oficial na liturgia, ainda que no Concílio nada foi abordado em relação as questões de formato, como destacaram Grout e Palisca (2001). Todavia, tais discussões visavam além do restabelecimento de um modelo oficial da Igreja, atrair de volta seus adeptos, uma vez que Lutero teve êxito no campo musical: “Estabeleceu-se daí em diante fosse admitido nas igrejas o canto figurado (isto é, o canto não gregoriano) mediante a condição de ser a sua música simples e clara, permitindo compreender as palavras e de não lhes alterar a maneira natural” (ALALEONA, 1972, p. 80). O modelo para a linguagem musical da Contrarreforma tinha como característica: “(...) é rigorosamente desacompanhada, a capela. Só a voz da criação humana é digna de louvar o Criador”. Pois “Para a verdade religiosa ficar representada, têm os fiéis de entender bem as palavras sacras que um coro canta” (CARPEAUX, 1977, p. 29). Então, o estilo do compositor renascentista italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina foi o que: “(...) esteve associado, ao longo de séculos, ao Concílio de Trento e à Contrarreforma, razão pela qual sua obra serviria como modelo e reforço ideológico para uma nova reação do catolicismo aos vícios observados no campo da música (DUARTE, 2017, p. 60). Por causa dele esse novo modelo de linguagem musical recebeu o nome de Palestrina. Que tinha como características ser um canto polifônico, mas sem nenhum acompanhamento instrumental:

Palestrina foi cognominado «o príncipe da música», e as suas obras consideradas como a «perfeição absoluta» do estilo sacro. Quase todos os autores são unânimes em afirmar que ele captou melhor do que qualquer outro compositor a essência do carácter sóbrio e conservador da Contrarreforma. Não muito depois da sua morte era corrente considerar-se o «estilo de Palestrina», o estilo palestriniano, como o modelo da música sacra polifónica (GROUT; PALISCA, 2001, p. 287)

Grout e Palisca, salientam que a estrutura musical de Palestrina foi o modelo da música sacra conservadora da Igreja Católica Romana da Contrarreforma e o modelo de música sacra polifônica até os nossos dias. Palestrina transformou o:

(...) contraponto medieval em harmonioso e suavíssimo concerto (canto simultâneo) de melodias expressivas. Serviu-se de formas já em uso na Idade Média e entre os flamengos, mas purificadas, reanimadas pela sua pureza de sentimento e humanidade da sua inspiração (ALALEONA, 1972, p. 81).

Com um contraponto mais harmonioso e suave: “Palestrina concebia as frases musicais como linhas contínuas e indivisíveis, e não como conjunto de células” (MAMMI, 1998-1999, p. 22). Podemos perceber diante disso que a música da Igreja Católica Romana pós Reforma Protestante foi transformada em seu formato também a partir das influências, ainda que distantes, da música profana, em mais um momento da história da música cristã podemos perceber uma negociação entre o formato e o conteúdo com as manifestações culturais do período, com o espírito da época. Tal como aconteceu com as músicas compostas por Martinho Lutero, para sua Igreja Protestante que utilizou da influência da música popular profana.

1.1.3. A música evangélica brasileira no século XIX: O formato e os conteúdos dos

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