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Certamente poderíamos dedicar todo um livro ao tema da família na Sagrada Escritura, mas podemos evocar tudo em poucas palavras: “Projeto de Deus”. É nesse contexto que convido você a reler comigo os textos da Escritura para entrever o projeto de Deus, mesmo que esses, tantas vezes, se exprimam na fragilidade e nas fraquezas registradas no percurso histórico.

A Bíblia nos ensina que o ideal da família deve ser sempre uma meta a ser alcançada, ou seja, a fecundidade, a fidelidade do matrimônio, porém, a Igreja deve se inclinar em frente das feridas da família humana dos nossos dias e encontrar meios para conjugar a fidelidade aos ensinamentos dos ideais e, ao mesmo tempo, a fidelidade à misericórdia, porque não eram somente famílias ideais aquelas com quem Deus escreveu a história da Salvação, como assim chamamos hoje, e não eram sempre ideais aquelas famílias recordadas no Novo Testamento; encontramos “luz e obscuridade” e, ao interno deste caminho assim humano, a Igreja é chamada a derramar a “luz da sua doutrina e o óleo da misericórdia”.

Iniciamos então este caminho, com um percurso que os Padres da Igreja chamavam de “passeio na Escritura”, para crescermos aqui na Escola do Evangelho de Nazaré, tendo como luz e guia a Palavra da Salvação, que se fez Carne aqui neste lugar Santo. A criação do ser humano é narrada no primeiro livro da Bíblia, o livro de Gênesis: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos’” (Gn 1,27- 28a). Daqui decorre certamente uma antropologia profunda e elevada, que poderíamos explicar deste modo, sem pretensão de simplificar: o ser humano foi criado à imagem de Deus, e esta imagem é constituída do casal homem e mulher como unidade, apesar das diferentes identidades. O comando de gerar indica que o fim primário da união entre o homem e a mulher é a transmissão da vida, uma finalidade sublime que é objeto de bênção.

O livro de Gênesis tem uma outra narração da criação do casal homem e mulher que apresenta a mesma realidade:

E o Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda”. Depois, da costela tirada do homem, o Senhor Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem. E o homem exclamou: “Desta vez sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada ‘humana’ porque do homem foi tirada”. Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne (Gn 2,18.22-24).

O autor sacro usa imagens que não indicam uma realidade de natureza histórica, dizem os especialistas dos estudos bíblicos, mas indicam a criação dos dois sexos como

um remédio contra a solidão do homem, e que a mulher que dele vem tem a sua mesma dignidade. Se na primeira narração colocava em relevo o fator de procriação, aqui se evidencia aquele de unidade. Nota-se, por fim, que em nenhuma das duas narrações encontramos ataduras de subordinação: Adão e Eva aparecem em um plano de paridade. O jogo de palavras em hebraico, ‘ish = homem e ‘ishah = mulher, enfatizam a unidade do ser humano na distinção dos sexos. Tal distinção corresponde à vontade de Deus e é ordenada para a procriação do gênero humano. O sexo não é uma realidade absoluta, mas integrada.

O fato de Deus ter criado o homem à Sua própria imagem, enquanto homem e mulher, inclui em si a força atrativa do amor. É o equilíbrio destes dois elementos – unidade e procriação – que devem marcar para sempre o matrimônio como Deus o concebeu no Seu desígnio originário. É maravilhoso que este projeto nunca tenha se perdido no horizonte do povo da antiga aliança e pode-se alcançar pelo menos uma parte da humanidade. Porém, o pecado original quebrou a genuinidade do primeiro casal. Depois do pecado, a mesma sexualidade sofreu uma distorção com a qual a narração bíblica assim se exprime: “Multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre dores darás à luz os filhos. Teus desejos te arrastarão para teu marido, e ele te dominará” (Gn 3,16). Ousarei dizer que a causa desta desordem comprometeu todas as relações que abrangem todos os desvios que interessam ao matrimônio e à família.

Certamente não podemos ignorar a realidade pluralista do judaísmo, realidade concreta do mundo bíblico. As opiniões são diferentes, e na literatura rabínica encontramos uma forte dependência da Sagrada Escritura, na qual o matrimônio é um ato jurídico constituído por uma lista de deveres e pouco espaço para os sentimentos. O divórcio é condenado por Malaquias, mas será aceito nos ambientes farisaicos. Finalmente, o matrimônio se tornará um símbolo do pacto do Sinai e a união conjugal de Deus com Israel, na qual a Tohah é o símbolo deste pacto matrimonial.

Sinteticamente se poderia afirmar que a tradição judaica antiga continua a desenvolver os ensinamentos encontrados na vasta literatura do Antigo Testamento, e o problema do divórcio, da sua legitimidade, não era argumento de discussão até a tradição evangélica (cf. Mt 19,3-9; Mc 10,1-12). Passando ao Novo Testamento, podemos dizer que registramos também aqui uma certa continuidade nos valores fundamentais do matrimônio e da família, presentes no Antigo Testamento,

E aqui voltamos sempre à Sagrada Família de Nazaré, na qual a vinda do Filho de Deus ao mundo tem como contexto uma família concreta, José e Maria, dos quais Jesus era Filho. Encontramos neles o exemplo concreto dos valores do matrimônio e da família, no qual temos a graça de tocar o patrimônio da fé. O evento único da história, a Encarnação do Filho de Deus, acontece na simplicidade e cotidianidade da vida em

família que a história e a arqueologia, hoje, nos ajudam a conhecer melhor, como já meditamos nos primeiros capítulos deste livro. Conforme nos dizia o Beato Papa Paulo VI no ano de 1964: “Aqui em Nazaré descobrimos a necessidade de observar o ambiente da sua demora entre nós, os lugares, os tempos, os costumes, a linguagem, os usos religiosos, toda a humanidade de Jesus ao se revelar ao mundo.”

E aproveitando esta reflexão bíblica e teológica da beleza da família, na qual o Filho de Deus quis ter uma família e, então, se submeteu à Família de Nazaré, gostaria de lembrar o que nos diz a psicologia moderna, que afirma a importância e a grande influência que a atmosfera familiar pode ter no desenvolvimento da vida de uma pessoa. A experiência familiar vivida por Jesus foi realmente positiva e é apresentada por dois testemunhos evangélicos. Mateus fala partindo do papel de São José, e Lucas narra partindo de Maria. Juntos delineiam, segundo o pensamento da Igreja, a família modelo.

Mateus ressalta a figura de São José ao narrar a Anunciação do Anjo a ele e seu papel de chefe de família. José é definido como o esposo de Maria (Mt 1,19), e Maria como a sua esposa (Mt 1,24), e assim a Mãe de Jesus, o Emanuel, Deus conosco (Mt 1,18; 2,11). Mateus delineia a figura moral de José chamando-o “justo” (Mt 1,19), uma terminologia que reassume toda a espiritualidade bíblica (cf. Mt 5,20). Lucas, quanto à figura de São José, nos apresenta informações similares às de Mateus, mas dá relevância à figura e à missão de Maria nos quadros da vida familiar. Maria é descrita como “esposa e virgem” (Lc 1,27.34) de José, mulher cheia de graça, unida ao Senhor (Lc 1,28). Dócil à mensagem divina, concebe pelo Espírito Santo, potência de Deus (Lc 1,35), Jesus, o “Filho do Altíssimo” e herdeiro do trono de Davi (Lc 1,32). Ela e José são os pais de Jesus (Lc 2,27), e este filho constitui o significado de suas vidas (cf. Lc 2,44-45), o que os fez se preocuparem com a Sua autonomia. Neste ambiente familiar, o Filho de Deus transcorreu a maior parte da Sua vida terrena. A tradição evangélica nos atesta que a família de Jesus era uma família que se rendia à vontade de Deus (cf. Lc 2,21-22) e vivia relações sociais.

No ministério público de Jesus, Ele sempre se mostrou muito interessado pela vida concreta das famílias, conforme podemos confirmar pelos Evangelhos da Bíblia: amigo de Lázaro e de suas irmãs, Marta e Maria (cf. Jo 11,5); a cura da sogra de Pedro (cf. Mc 1,19-31); o conhecimento da realidade de uma família, relatado na parábola do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32); o tratamento afetuoso com as crianças e o exemplo delas para quem quer entrar no Reino de Deus (cf. Mc 10,13-16). São muitos os episódios de curas e atenção de Jesus pelo ambiente familiar.

Neste ponto gostaria de concluir este subcapítulo com uma pequena chamada do tema matrimônio e a família no pensamento de São Paulo e da tradição Paulina. Com relação à experiência de Paulo, pode-se notar a característica doméstica e familiar das

comunidades cristãs. Sabemos que o apóstolo Paulo teve que afrontar as práticas do matrimônio e da família. Os escritos da tradição paulina nos oferecem elementos para uma verdadeira e própria Pastoral Familiar. Paulo mostra a grande estima e exalta a virgindade escolhida como expressão da liberdade interior e maior disponibilidade pela obra missionária, mas ao mesmo tempo não diminui a importância e o valor da vida conjugal. É interessante o quanto Paulo passa pela tradição, que ele conhece muito bem como bom judeu de origem farisaica e também por aquela helenista grega, que era o contexto social do seu tempo, e, como consequência, emite a novidade cristã destinada a frutificar nas gerações futuras de todos os tempos.

Como exemplo, podemos citar a carta aos Efésios, na qual narra os deveres da família cristã e, em particular, os dos cônjuges.

Sede submissos uns aos outros, no temor de Cristo. As mulheres o sejam aos maridos, como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo também é a cabeça da Igreja, seu Corpo, do qual ele é o Salvador. Por outro lado, como a Igreja se submete a Cristo, que as mulheres também se submetam, em tudo, a seus maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo também amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de santificar pela palavra aquela que ele purifica pelo banho da água. Pois ele quis apresentá-la a si mesmo toda bela, sem mancha nem ruga ou qualquer reparo, mas santa e sem defeito. É assim que os maridos devem amar suas esposas, como amam seu próprio corpo. Aquele que ama sua esposa está amando a si mesmo. Ninguém jamais odiou sua própria carne. Pelo contrário, alimenta-a e a cerca de cuidado, como Cristo faz com a Igreja; e nós somos membros do seu corpo! “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne”. Este mistério é grande – eu digo isto com referência a Cristo e à Igreja. Em suma, cada um de vós também ame a sua esposa como a si mesmo; e que a esposa tenha respeito pelo marido (Ef 5,21-33).

Em específico à exortação sobre o matrimônio, é no horizonte do amor recíproco que também jorra a reciprocidade deste amor. Não se trata de uma dependência escravista, mas de um dinamismo do amor humano e da graça divina. Além disso, é a relação Cristo-Igreja, ou seja, a relação voluntária a modular a relação dos cônjuges. A realidade do matrimônio, enfim, não é somente de natureza humana, mas é uma realidade que toca o projeto de Deus e imerge no mistério, na experiência de Cristo e da Igreja. Assim, a grande e sublime vocação e o projeto de Deus não são somente um pacto entre os esposos, mas uma realidade eclesial.

Gostaria de concluir com um rápido aceno sobre a realidade familiar presente no livro de Atos dos Apóstolos, o qual oferece elementos significativos da época apostólica. Necessitamos dizer que o livro dos Atos não é um conjunto de temas sobre as famílias, mas sim algumas informações claras que demonstram que elas tiveram papéis importantes na difusão do cristianismo. Neste livro, são explicitamente citadas a casa de Judas, onde São Paulo foi hospedado quando Ananias foi visitá-lo (cf. At 9,10-11.17); e

a casa de Simão, o curtidor de pele em Jaffa (Jope), onde Pedro foi hóspede (cf. At 9,43; 10,6.32). Fala-se, também, da família e da casa de Cornélio, centurião em Cesárea (cf. At 11,13). Trata-se, porém, de edifícios e casas, mas também de famílias, nas quais foram acolhidos para a predicação apostólica e contribuíram na difusão do cristianismo e na formação das comunidades cristãs.

O livro de Atos dos Apóstolos ainda se refere a casas privadas, habituais lugares de reunião dos cristãos (cf. At 2,46; 8,3; 20,7-12). Depois desta reflexão bíblica, continuaremos meditando a beleza da família e do matrimônio no livro humano da existência, da vida dos irmãos e irmãs chamados a tão sublime vocação.