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Movimentos sociais e populares na América Latina

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CAPÍTULO II – MOVIMENTOS SOCIAIS E POPULARES E OS GRUPOS DAS

2.1. Movimentos sociais e populares

2.1.1. Movimentos sociais e populares na América Latina

As ações sociais coletivas representadas por meio da atuação de atores de movimentos sociais e populares se manifestam na sociedade em esfera global. Há diversos estudos acerca

da participação de movimentos sociais norte-americano, europeus e latino-americano, entre outros, que contemplam inclusive pesquisas a partir da introdução da internet no cotidiano da sociedade (GOHN, 2010; CASTELLS, 2013; SORJ; FAUSTO, 2015). Na tentativa de delinear o perfil dos protagonistas dos grupos estudados nesta dissertação, delimitamos tecer abordagens sobre movimentos sociais e populares no âmbito da América Latina e do Brasil a partir de estudos mais recentes. Temos ciência de que o debate proposto não se esgota aqui. Apenas abre espaço para novas discussões e abordagens tão oportunas sobre o assunto em tempos da era digital.

Antes de diversas manifestações populares se propagarem por vários lugares do planeta fazendo uso de ferramentas tecnológicas, num efeito dominó, pesquisadores sobre movimentos sociais na América Latina já previam no final do século 20 um cenário nada animador para essas sociedades. “Níveis sem precedentes de violência, pobreza, discriminação e exclusão parecem indicar que o ‘desempenho’ e próprio projeto das ‘novas’ democracias da América Latina estão longe de ser satisfatórios” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.15).

Nesse contexto, os autores acreditam que os movimentos sociais desempenham “um papel crítico nessa luta” por projetos alternativos para a democracia e questionam quais são os parâmetros dessa democracia e quais são as fronteiras do que deve ser definido como arena política. Para eles, os processos de globalização econômica, atrelados a uma política neoliberalista, introduziram uma nova relação entre o Estado e a sociedade civil, com definição distinta da esfera pública e seus participantes, baseada “numa concepção minimalista do Estado e da democracia”.

Enquanto a sociedade civil é obrigada a assumir as responsabilidades sociais evitadas pelo Estado neoliberal em processo de encolhimento, sua capacidade como esfera política crucial para o exercício da cidadania democrática está cada vez mais desenfatizada. Nessa concepção, os cidadãos devem fazer-se por seus próprios esforços particulares e a cidadania é cada vez mais equiparada à integração individual no mercado (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.15-16).

Neste novo cenário de cidadania há uma redefinição não apenas do sistema político, mas também das práticas econômicas, sociais e culturais como forma de “engendrar uma ordem democrática para a sociedade como um todo”. Tem-se, então, a ampliação de esferas públicas, onde a cidadania pode ser exercida e os interesses da sociedade não são apenas representados, mas fundamentalmente “re/modelados”. A consequência disso é a construção de uma democracia interna descontínua e desigual.

Os movimentos sociais não somente conseguiram traduzir suas agendas em políticas públicas e expandir as fronteiras da política institucional, como também lutaram de maneira significativa para redefinir o próprio sentido de noções convencionais de cidadania, representação política e participação e, em consequência, da própria democracia (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.16).

Assim as sociedades da América Latina já vêm num processo de desenvolvimento de cidadania e os movimentos sociais têm se destacado antes mesmo do início do novo milênio. Os acontecimentos recentes ocorridos no Brasil – em especial as manifestações públicas civis do processo impeachment de Dilma Rousseff – não emergiram de uma hora para outra. Os rumos da história de uma nação se constroem no dia a dia, passam por transformações e sofrem influências externas. Na era digital essa influência é ainda mais rápida, quase de instantânea por conta da velocidade com que as informações circulam nos ambientes sociais, rapidez essa propiciada pelo avanço tecnológico dos meios de comunicação.

“As culturas políticas da América Latina são muito influenciadas por aquelas que prevalecem na Europa e na América do Norte e, contudo, se diferenciam delas” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.27). Os autores mostram que ao analisar a atuação dos movimentos sociais é fundamental que se considere o contexto político e social em questão. Um exemplo citado foi o surgimento de regimes militares das décadas de 1960 e 1970 em quase toda a América Latina “numa reação às tentativas de radicalizar as alianças populistas ou de explorar alternativas socialistas democráticas”.

É significativo que os movimentos sociais que surgiram da sociedade civil na América Latina ao longo das duas últimas décadas – tanto em países sob regime autoritário como em nações fortemente democráticas – tenham desenvolvido versões plurais de uma cultura política que vão muito além do (re)estabelecimento da democracia formal liberal. Assim, as redefinições emergentes de conceitos como democracia e cidadania apontam para direções que confrontam a cultura autoritária por meio da atribuição de novo significado às noções de direito, espaços públicos e privados, formas de sociabilidade, ética, igualdade e diferença e assim por diante. Esses processos múltiplos de re-significação revelam claramente definições alternativas do que conta como político (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.29).

A pesquisadora Gohn (2006, p.221-240) observa que a distribuição dos movimentos sociais em termos espaciais ocorreu de forma muito diferenciada na América Latina depois dos anos de 1970, apesar de ter acontecido na totalidade dos países. Naqueles mais industrializados, a articulação se deu a partir dos grandes centros, tendo sido feita por representantes da igreja, dos sindicatos e de partidos de oposição ao regime político da época,

e, a partir daí, espalharam-se para outras regiões. Nos países de base agrária, as ações se caracterizaram por rebeliões. Na pauta dos movimentos daquela época entraram questões étnicas, suprimento de gêneros e serviços sociais de primeira necessidade, demandas por terra e moradia, por educação, e demandas consideradas “modernas” ao redor de questões de gêneros. Neste contexto, há de se considerar ainda as diferenças históricas que influenciam a formulação de um paradigma latino-americano sobre os movimentos sociais.

O estudo sobre os movimentos sociais latino-americanos deve ter um enfoque multidisciplinar, envolvendo a sociologia, a ciência política, a antropologia, a história, a economia, e a psicologia social. A política deve ser destacada por ser a grande arena de articulação, pelo fato de os movimentos sempre estarem envolvidos ou ligados a relações de poder. Deve-se considerar: ideologias, valores, tradições e rituais da cultura de um grupo; a cultura política como um todo, etc.; assim como a estrutura sociopolítica e econômica em que os movimentos estão inseridos, numa abordagem histórico-estrutural renovada (GOHN, 2006, p.240).

Alguns autores notam que na década de 1990 ocorre um renascimento do conceito de sociedade civil. Alvarez, Dagnino e Escobar (2000, p.38) abordam o assunto por meio de Alfred Stepan, que diz que esta “tornou-se a celebridade política de muitas transições latino- americanas recentes do regime autoritário e foi uniformemente vista como ator significativo na literatura da democratização”. Nesse processo de revitalização da sociedade civil, os pesquisadores destacam que esta “não é uma família ou ‘aldeia global’ homogêneas e felizes, mas um terreno de luta”; é “um terreno minado por relações desiguais de poder, bem como acesso diferenciado a recursos materiais, culturais e políticos”; e, por fim, “há conexões entre o Estado e a sociedade civil que tornam ilusória a ideia de um confronto ou mesmo de uma delimitação entre os dois como entidades completamente autônomas” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.39-40).

No que tange à formação do público, os pesquisadores avaliam como positiva para a democracia na América Latina a proliferação de ‘públicos’ alternativos dos movimentos sociais. Eles tomam como referência, três pontos observados por Diamond e Linz (apud ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.42): porque serve para pôr em xeque o poder do Estado, ou porque dá expressão a interesses populares estruturalmente pré-ordenados e porque é nesses espaços públicos alternativos que esses mesmos interesses podem ser continuamente re/construídos. Ou seja, independentemente do momento histórico, a atuação dos movimentos sociais é vista de forma positiva pelos pesquisadores. São forças que emergem da sociedade civil com o intuito de transformar e promover mudanças em defesa de interesses coletivos amplos ou de grupos minoritários.

“Os movimentos são como as ondas e as marés, vão e voltam e isto ocorre não por causas naturais (...). Os movimentos vão e voltam segundo a dinâmica do conflito social, da luta social, da busca do novo ou reposição/conservação do velho” (GOHN, 2006, 247-248). Assim a ação dos movimentos não é estática. Ao contrário, é dinâmica e se desenvolve em consonância com os contextos sociais, culturais e institucionais da sociedade. Com a disseminação da internet no mundo, muitas ações encabeçadas por movimentos de lutas sociais coletivas são apoiadas por este novo artefato tecnológico.

O uruguaio Somma (2015, p.138-140), pesquisador em sociologia política e movimentos sociais, observa que o ativismo digital emergiu e se expandiu em vários países latino-americanos nas duas últimas décadas. São diversos os grupos e organizações que empregam a internet para “promover suas causas, gerar adesões, coordenar ações coletivas e pressionar as autoridades políticas via redes sociais”. Estes representantes da sociedade civil também apresentam ideologias, objetivos e grau de proximidade com a política institucional de formas muito distintas.

No entanto, ainda há barreiras que freiam a difusão do ativismo digital na América Latina. Na maioria desses países, as pessoas ainda não usam a internet regularmente e o seu uso para fins político ainda é restrito, sendo fortemente segmentados e favorecendo os mais jovens e ricos moradores de centros urbanos. Além disso, o uso da ferramenta traz múltiplos riscos, que “vão desde a facilidade com que se espalham rumores ou informações imprecisas até tensões internas às organizações, passando por dificuldades técnicas e deficiências de capital humano para fazer um uso eficiente dessa ferramenta” (SOMMA, 2015, p.139). O autor apresenta três possíveis consequências do ativismo digital sobre as mobilizações de ações coletivas, as decisões das elites políticas e os vínculos entre as próprias organizações, além de traçar um panorama para o futuro dos países latino-americanos.

Primeiro, diversas experiências na região sugerem que a internet permitiu mobilizar em pouco tempo quantidades consideráveis de pessoas em manifestações públicas — incluindo no nível internacional e fora do nosso continente. Segundo, são apresentados casos nos quais tais protestos, promovidos sobretudo a partir das redes sociais, possivelmente exerceram influência sobre autoridades públicas de diversas maneiras (...). Terceiro, sugere-se que a internet também possa impactar o tipo de alianças entre organizações dedicadas a causas comuns, favorecendo estruturas pouco centralizadas e com alto grau de autonomia.

Olhando para o futuro, tudo indica que o ativismo digital latino-americano seguirá se desenvolvendo. O ritmo em que isso ocorrerá irá depender de vários fatores, entre eles a consolidação das democracias da internet a novos grupos, e a melhoria das habilidades técnicas da população. Esta última pode ocorrer tanto por melhoras na aprendizagem e familiaridade com novas tecnologias, como pela mudança geracional, na qual as gerações mais

velhas e distantes da internet são substituídas por novas gerações de “nativos digitais” (SOMMA, 2015, p.139-140).

As reflexões trazidas por Somma mostram que os novos meios de comunicação e recursos tecnológicos têm sido usados e incorporados à rotina da sociedade de forma ampla. Assim o ativismo digital se manifesta para além dos movimentos sociais e populares. Os estudos acerca das manifestações nos ambientes on-line – que estão interconectados com ações no universo off-line – devem ser observados sob o prisma da sociedade civil. Assim compartilhamos da concepção de Sorj (2015) sobre o tema sociedade civil.

Entendemos por sociedade civil o conjunto de ações (simbólicas, organizacionais ou materiais) realizadas pelos cidadãos que intervêm no espaço público com o objetivo principal de conservar/modificar/transformar o sistema de valores que orientam o sistema legal e a forma pela qual o Estado e a sociedade organizam e distribuem seus recursos. Essa definição, como qualquer outra que se refere ao mundo social, é indicativa, uma vez que a sociedade é um objeto fluido e as fronteiras entre seus subsistemas são porosas (SORJ, 2015, p.36).

Notamos que as ações dos movimentos sociais e populares, e num cenário ainda mais amplo que abarca a sociedade civil – reflexão que merece ser feita já que buscamos investigar os perfis dos protagonistas e atores sociais das manifestações públicas do impeachment de Dilma Rousseff no universo da esfera pública –, têm forte relação com questões culturais, sociais e momento histórico.

Nos países latino-americanos, verificamos três ciclos históricos que influenciaram os perfis e a participação dos atores sociais a partir dos anos de 1970 até a atualidade. Em resumo: houve 1) a organização de grupos e movimentos sociais e populares em oposição aos regimes militares do final da década de 70 e parte dos anos 80; 2) o surgimento de outras formas de organização popular, mais institucionalizadas, em que as ONGs ganham papel de destaque, sobretudo a partir dos anos de 1990; 3) e as mobilizações civis públicas que ocorrem no âmbito do ciberespaço a partir da disseminação da internet no mundo.

Acreditamos que o debate sobre estes “novos movimentos” sequer começou. A organização dos grupos e atores sociais nos ambientes on-line tem se mostrado tão dinâmica quanto a evolução dos recursos tecnológicos dos meios de informação e comunicação. Os impactos da “galáxia da internet” têm transformado a esfera pública nos âmbitos do sistema político, da sociedade civil e do espaço público (MARTUCCELLI, 2015).

A fim de melhor compreendermos a dinâmica dos atores sociais brasileiros na contemporaneidade, faz-se necessário apresentarmos, de forma breve, a trajetória dos

movimentos sociais e populares no Brasil, tendo como referência o mesmo período histórico abordado no espectro dos países latino-americanos.

2.1.2. Uma passagem sobre movimentos sociais e populares no Brasil: dos anos de

No documento Download/Open (páginas 61-67)