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Novas tecnologias da informação e da comunicação e a construção da experiência

Diante da noção de leitura e escrita como experiências humanas essenciais em uma sociedade como a nossa e da concepção de indissociabilidade, é imperativo pensarmos nas novas tecnologias da informação e da comunicação e nas suas relações com o ensino de LP. Então, o objetivo desta seção é explicitar essa relação, além de defender a necessidade de criação de espaços para a experiência na escola, conforme contribuições teóricas de Larrosa (2017).

Ao pensarmos nas novas tecnologias, pensamos nos novos suportes textuais8 (blogs, fanpages, sites etc), assim como nos novos gêneros (hiperconto, chat, ciberpoema, memes etc) que foram surgindo como respostas às demandas de interação virtual. Esses novos espaços de interação transformam o modo de produção e recepção de textos nas práticas sociais e, consequentemente, na escola. A BNCC (2018, p. 61) destaca que “As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens”, dentre as quais está a linguagem digital. Então, o ensino que toma a dialogicidade da linguagem e as suas dimensões sociais como fundamento não pode desconsiderar as manifestações linguísticas contemporâneas.

Queremos destacar que, embora as facilidades decorrentes das novas tecnologias da informação e da comunicação sejam inegáveis, em vários aspectos e em várias áreas, não podemos assumir uma postura entusiasta a ponto de não levantar questionamentos sobre: a) o lugar que os textos digitais ocupam de fato nas relações sociais de cada turma especificamente, a fim de evitarmos uma abordagem que não tenha tanta relevância em um dado contexto; b) o risco de usar as novas tecnologias como ferramentas de ensino sem objetivos claros, sob pena de incorrer em um modismo mais do que em um uso efetivo para a facilitação da aprendizagem; e, principalmente, c) os usos feitos pelos adolescentes e as implicações do seu excesso na construção das experiências.

8 Consideramos o blog como suporte textual neste trabalho em função de abrigar textos de diferentes gêneros, como perfis, artigos, entrevistas, crônicas etc, assim como a fanpage (página do Facebook) que abriga memes, vídeos, comentários, status etc.

Porém, antes de tratarmos do espaço das novas tecnologias da informação e da comunicação na escola, entendemos ser necessário falarmos sobre o processo histórico pelo qual chegamos à atual revolução digital. Passamos, pois, à trajetória que antecede e explica o quadro atual.

A comunicação permite a participação e a evolução de um indivíduo e é inerente à cultura humana, de modo que o homem sempre buscou diferentes formas de se comunicar ao longo da História: a fala, as pinturas rupestres, a escrita (em pedra, cerâmica, papiro, papel); e diferentes técnicas: telégrafo, telefone, rádio, televisão, computador. De acordo com Stampa

(apud MOLLICA, PATUSCO, BATISTA et al., 2015)9, a criação do computador foi proposta

ao exército americano durante a II Guerra, com fins estratégicos e a internet surgiu em 1969, nos Estados Unidos, também com esses objetivos; somente em 1987, ela passou a ter fins comerciais. Assim, foi um longo processo desde as primeiras palavras faladas até as culturas impressa e, mais recentemente, digital.

Quanto às transformações no modo de produção e recepção de textos, é importante destacarmos que ler e escrever não são verbos intransitivos. Sob essa lógica, um professor de EB não pode afirmar que os seus alunos não leem e não escrevem. Talvez não leiam e não escrevam o que e como a escola gostaria, mas leem e escrevem muito; prova disso são os números do Portal TecMundo10 referentes ao uso das redes sociais, segundo os quais, 8 em cada 10 brasileiros entre 9 e 17 anos fazem uso da internet. Entre os adolescentes das classes D e E, o público alvo desta pesquisa, o índice chega a 70%. De fato, os adolescentes estão lendo e escrevendo muito em ambientes digitais: mensagens instantâneas de texto, status, comentários de publicações dos colegas, legendas de fotos e vídeos, memes. Todos esses textos são muito comuns na rotina dos adolescentes.

Concomitantemente à popularização da internet no Brasil nos últimos anos, a escola passou a discutir o assunto, ora como uma ferramenta para ampliação das aprendizagens, ora como um inimigo que rouba a atenção e o protagonismo do professor tradicional. Por um lado, profissionais da Educação defendem o acesso à internet como um grande aliado dos professores porque permite a hipertextualidade na leitura e na escrita e a troca com outros sujeitos, o que pode configurar como a potencialização de diferentes aprendizagens, tendo em vista que os estudantes têm acesso a outras informações e conhecimentos, além daqueles disponíveis no LD;

9STAMPA, M. Perícia como análise comunicativa do sujeito: possibilidades através dos recursos informatizados.

In MOLLICA, M. C.; PATUSCO, C.; BATISTA, H. R. (orgs.). Sujeitos em ambientes virtuais: Festschriften para Stella Maris Bortoni-Ricardo. São Paulo: Parábola, 2015.

10 Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/mercado/134424-oito-cada-dez-criancas-adolescentes-tem- acesso-internet-brasil.htm>. Acesso em: 22 set. 2018.

além disso, destacam o surgimento de novas formas de leitura e escrita e a consequente multiplicação de assuntos; um outro aspecto positivo é a velocidade com que as informações e os conhecimentos chegam aos alunos, pelo fato de possibilitar a constante atualização dos conteúdos e o favorecimento da contextualização dos assuntos estudados em sala de aula com as demandas sociais.

No entanto, há quem pense diferente, destacando que a quantidade de informações disponíveis na rede de internet é potencialmente extenuante, o que gera uma sobrecarga de informação. Outro aspecto criticado é que a quantidade de informações a que um adolescente está submetido em ambientes virtuais nem sempre é proporcional à qualidade, de modo que, em um processo de filtragem, os usuários precisam selecionar o que querem arquivar para decidir quais devem ser ignoradas ou esquecidas e quais devem ser ampliadas ou consolidadas. Um terceiro aspecto negativo apontado diz respeito a um comportamento intitulado por Palfrey e Gasser (2011) de multitarefas, o qual é muito comum entre os “Nativos Digitais”11 e consiste em dividir a atenção entre as mídias digitais e as mídias tradicionais – televisão, música e leitura de impressos.

Como dissemos, leitura e escrita são experiências humanas e, portanto, são construções históricas e sociais; desse modo, as novas tecnologias inauguram novas formas tanto nas práticas de leitura, quanto nas práticas de produção, como também problematizam questões sobre a noção de autoria compartilhada, tão comum em publicações nas redes sociais ou ainda sobre a veracidade das informações e a responsabilidade de quem as compartilha. Assim, à escola cabe tratar das diferentes modulações da leitura e da escrita, eximindo-se de preconceitos quanto à linguagem própria dos textos de comunicação imediata em redes sociais ou de rótulos quanto ao público que prioriza esses textos, tendo em vista que qualquer preconceito ou rotulação são incoerentes com a percepção de que as linguagens são múltiplas e dinâmicas e que isso é resultante de transformações provocadas pelos sujeitos sociais.

A própria BNCC define que as práticas contemporâneas de linguagem devam ser tomadas como objeto de estudo nas aulas tendo em vista que os alunos têm acesso a ela, mas que isso não representa, necessariamente, um uso crítico. Conforme o documento: “Ser familiarizado e usar não significa necessariamente levar em conta as dimensões ética, estética

11 Segundo Ribeiro (2018, p. 45), Prensky (2001) adotou o par nativos digitais/imigrantes digitais, definindo os primeiros como jovens nascidos a partir de 1980, com “cérebros e cognição fisicamente adaptados a uma

comunicação acelerada e multitarefa”. Neste trabalho, define-se como pessoas nascidas após a popularização da

e política desse uso, nem tampouco lidar de forma crítica com os conteúdos que circulam na Web” (BRASIL, 2018, p. 66).

Realmente, é o que notamos: a maioria dos adolescentes colaboradores desta pesquisa não conhece as possibilidades de ferramentas de aprendizagem disponíveis na internet e, por isso, faz uma subutilização da rede, limitando-se, quase sempre, aos aplicativos mais populares de conversas e compartilhamentos (Facebook, WhatsApp) nas redes sociais. Por essa razão, é fundamental que a escola esteja aberta às novas tecnologias digitais, seja como ferramenta, seja como objeto de ensino, como uma das dez Competências Específicas de LP para o Ensino Fundamental:

Mobilizar práticas da cultura digital, diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitais para expandir as formas de produzir sentidos (nos processos de compreensão e produção), aprender e refletir sobre o mundo e realizar diferentes projetos autorais. (BNCC, 2018, p. 85).

Como vemos, é responsabilidade dos professores de LP tratar dessas questões em sala de aula, sob pena de incorrer no erro de não abordar as práticas sociais contemporâneas, fortalecendo estigmas e desconsiderando a dinamicidade da língua. Por outro lado, é preciso atentarmos para o que o próprio documento destaca:

Não se trata de deixar de privilegiar o escrito/impresso nem de deixar de considerar gêneros e práticas consagrados pela escola, tais como notícia, reportagem, entrevista, artigo de opinião, charge, tirinha, crônica, conto, verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica etc., próprios do letramento da letra e do impresso, mas de contemplar também os novos letramentos, essencialmente digitais. (BRASIL, 2018, p. 67)

Conforme a orientação, é fundamental elucidarmos que não se trata de, sob o argumento de estarmos abordando as práticas sociais contemporâneas, excluirmos outras práticas, assumindo um comportamento de substituição dos textos de tradição escolar pelos de circulação digital. Chamar a atenção para isso pode até parecer elementar; no entanto, o modo como os PCN foram interpretados quanto à prática fundamentada nos gêneros nos dá a certeza de que essa não é uma preocupação desmotivada, já que muito do que o documento orientava chegou às salas de aula de maneira equivocada.

Notamos que os textos mais utilizados pelo grupo de colaboradores são mensagens instantâneas de textos, status, comentários de publicações, legendas de fotos e vídeos, memes, os quais apresentam especificidades próprias do suporte de veiculação e da intenção comunicativa. A objetividade, a linguagem direta e informal, a estrutura composicional

simplificada, a baixa informatividade, o uso de períodos curtos e a consequente supressão de elementos coesivos são características muito comuns a esses textos e, obviamente, não há nada de errado nisso, já que atendem claramente aos objetivos de comunicação nesses espaços virtuais.

Não pretendemos negar a relevância desses textos em seus contextos de uso, tampouco rejeitá-los como experiências significativas para os sujeitos participantes da pesquisa, até porque já assumimos que leitura e escrita são construções sociais e históricas. O que propomos é diagnosticar o impacto dos textos de comunicação imediata nas redes sociais na construção narrativa dos estudantes, ou seja, investigar de que modo o que eles leem e escrevem no ciberespaço interfere nas escolhas feitas ao escreverem em contexto escolar. Isso porque entendemos que o contato excessivo com textos usados em ambientes virtuais pode ter alguma influência nas produções escritas em sala de aula.

Nessa linha, é relevante observar o comportamento dos estudantes partindo da premissa de que a maneira como os adolescentes leem e escrevem na escola seja, em alguma medida, consequência da forma como se relacionam com as tecnologias digitais, em especial, com os aplicativos de comunicação instantânea mais populares, em virtude de ser esse o uso social de leitura e escrita mais frequente para muitos deles. Dada a quantidade de textos que chegam ao usuário via ciberespaço, é natural que este estabeleça alguns critérios de filtro e, por uma questão de economia de tempo, escolha ler os mais curtos e objetivos, adotando intuitivamente o mesmo comportamento em espaços não-virtuais.

Assim, narrativas breves, descrições rasas de personagens e ambientes, construção imaginativa simplificada, repetição de recursos linguísticos, períodos curtos e desconectados, uso de texto motivador como modelo de escrita são características comumente encontradas nos textos produzidos pelos discentes na escola. Isso pode estar relacionado com as experiências de leitura que eles constroem em ambientes digitais, visto que, quando incentivados a leituras impressas, os alunos, quase sempre, optam por textos mais curtos que exijam um intervalo de atenção mais reduzido, como se houvesse uma transposição das estratégias que usam no ciberespaço para as que usam na escola, sem uma reflexão crítica sobre as adequações do que o sujeito escreve com base nos interlocutores, no suporte e nos propósitos. Não queremos tratar escola e tecnologia de maneira dicotômica, mas a necessidade das adequações precisa ficar clara para os alunos.

Alinhada a esse pensamento, destacamos a visão de Larrosa (2017, p. 18): “A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação”. O autor levanta a problemática de que a uma geração exposta a tantas informações, faz-se

necessário dizer que: em primeiro lugar, informação não é experiência; em segundo lugar, a informação não deixa lugar para a experiência; e, por fim, constituir-nos como sujeitos informantes e informados cancela nossas possibilidades de experiência. Assim, para o autor:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça (LARROSA, 2017, p. 18).

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, o que tem acontecido aos estudantes durante as aulas no EF? O que toca os alunos nas aulas de LP? Na nossa sociedade, chamada sociedade da informação, há espaço para a experiência, no sentido empregado por Larrosa? Diante dessas perguntas retóricas, convém pensarmos que quando enxergamos os nossos alunos somente como processadores de informações, deixamos de estimular a construção da experiência individual e coletiva e limitamos as múltiplas possibilidades de aprendizagens decorrentes de uma prática que lhes permita se reconhecerem como sujeitos que atuam no mundo e na escola. Com base na perspectiva distintiva entre informação e experiência dada pelo autor, pareceu-nos fundamental traçar um perfil dos discentes colaboradores da pesquisa quanto ao uso das novas tecnologias da informação e da comunicação, assim como se revelou essencial acionar outros bens culturais que favorecessem outras experiências.

Ainda com base em Larrosa, depois da necessidade de informação vem a necessidade de opinião e a obsessão por opinar também “anula as nossas possibilidades de experiência” (LARROSA, 2017, p. 20). Para ele, nós somos o resultado da combinação entre informação e opinião e isso gera cada vez mais sujeitos fabricados e manipulados, os quais supostamente têm opinião própria e supostamente são bem informados. É interessante a relação que podemos fazer entre a necessidade de opinar e o comportamento da maioria dos usuários das redes sociais, em especial, os adolescentes. Um novo fato exige uma nova opinião a publicar, quase sempre sem verificar a veracidade do fato ou a credibilidade de quem o divulgou ou ainda sem qualquer filtro de seleção das informações. Espera-se que todos se posicionem e isso anula o espaço da experiência, seja pela efemeridade dos debates diariamente substituídos, seja pela velocidade que impede uma reflexão mais complexa.

Além de apontar o excesso de informações e a exigência de emitir opinião como obstáculos para a experiência, o autor também aponta a ausência de tempo. Os sujeitos modernos são consumidores de notícias e as redes sociais se constituem como o espaço

privilegiado para compartilhá-las ou acompanhá-las. Por essa razão, os usuários dedicam-se tanto a elas, porque as novidades são renovadas a cada segundo e é preciso estar informado e opinar, sob pena de não fazer parte do grupo e ficar excluído das relações sociais. E sentir-se incluído em um grupo é necessidade permanente para os adolescentes, pois lhes garante o sentimento de pertencimento, de independência dos pais e, assim, ganhar popularidade nas redes é sinônimo de status.

Para Larrosa (2017), esse contexto também anula a experiência, uma vez que não há tempo para pensar sobre os fatos, já que a velocidade com que se apresentam e se sobrepõem impossibilita o acompanhamento; além disso, anula a experiência porque, enquanto se investe tempo em relacionamentos virtuais, negligenciam-se as relações reais próximas.

A título de exemplo, pensemos no contexto de lançamento de um novo filme. Antes mesmo da sua estreia no cinema, é possível obter informações sobre as gravações e a opinião de críticos, quando se cria uma expectativa. Na primeira semana de exibição, os adolescentes formam filas gigantes para assistir antes que comecem a divulgar os spoilers12. A experiência

de estar com a família ou os amigos para ver o filme, de sentir o cheiro da pipoca, de se emocionar com a história, de comentar as cenas depois, de relacioná-las à própria vida é substituída pela pressa de assistir antes dos colegas. Ou seja, se “A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova” (LARROSA, 2017, p. 26), ela não nos acontece no excesso de informação e de opinião ou na falta de tempo, porque o sujeito da experiência precisa estar aberto ao novo, ao pensamento, ao autoconhecimento, à escuta de si e do outro, às lembranças, à formação, à transformação e à exposição.

Nesse sentido, o excesso de exposição aos textos disponíveis no ciberespaço e o tempo gasto nos compartilhamentos virtuais constituem um distanciamento das possibilidades de construção do saber da experiência, o qual se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana, de modo particular, subjetivo, pessoal e real.

Desse modo, a escola não deve assumir uma postura entusiasta em relação às novas tecnologias da informação e da comunicação, como se elas fossem a grande solução para os seus problemas. Isso seria incoerente com a dimensão investigativa inerente à Educação. Portanto, a fim de proceder à análise do impacto das experiências leitora e escritora construídas em espaços virtuais sobre a leitura de textos em uma linguagem literária mais complexa, assim como, sobre a produção escrita mais distanciada dos textos utilitaristas, propomos a construção

de outras experiências de leitura e escrita através de narrativas literárias, transformando a sala de aula em lugar de experiências. Isso mesmo, no plural, haja vista que “duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência” (LARROSA, 2017, p. 32). Ou seja, na aula de LP encontra-se o espaço privilegiado para a construção das experiências, pela centralidade no texto, uma produção dialógica que se dá no encontro de um

eu com um tu e cujos sujeitos se percebem na condição de coparticipantes das construções da

língua, sendo delas constituintes e por elas constituídos.

Isso posto, escolhemos partir da ideia de que as experiências de leitura geram experiências em produção textual através do texto literário, sobre o qual passamos a tratar.