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Oficina Compartilhando histórias, construindo experiências

5.3 A experiência do Módulo 3

5.3.5 Oficina Compartilhando histórias, construindo experiências

Na Oficina 5, foram definidos os seguintes objetivos: analisar a adequação da linguagem à situação; reconhecer a escrita enquanto processo; fortalecer a autonomia dos sujeitos quanto à avaliação do próprio texto; compartilhar as narrativas produzidas; favorecer a construção de experiências éticas e estéticas.

Para iniciar, retomamos rapidamente a nossa trajetória durante o projeto, relembrando os momentos de cada módulo. Apresentamos um cartaz com alguns dos mapas interpretativos que os alunos construíram na Oficina 3, destacando as relações que cada grupo fez entre as figuras e o desenvolvimento dos acontecimentos na narrativa.

Figura 52 - Cartaz dos mapas interpretativos produzidos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Após esse momento, organizamos a sala em círculo e distribuímos as cópias do material contendo as 10 narrativas produzidas durante este último módulo. Iniciamos a leitura de cada texto e, à medida que concluíamos cada um, fazíamos uma pausa para ouvirmos o que os alunos tinham a dizer sobre a história.

A maioria dos alunos presentes se mostrou bastante interessada em ouvir as histórias escritas pelos colegas, então foi um momento com uma participação considerável. Alguns textos provocaram risadas, outros provocaram espanto e outros geraram elogios. Por um lado, a intenção era terminar com leitura, assim como iniciamos. Por outro lado, a escolha de terminar com a leitura dos textos deles teve a intenção de posicioná-los como sujeitos de escrita. Essa etapa, na nossa opinião, reiterava a nossa defesa da concepção de leitura e escrita como práticas sociais complexas e indissociáveis.

Lemos todas as produções e aproveitamos essa etapa para ressaltar a importância do título para os leitores. Assim, escolhemos títulos colaborativamente para as narrativas que ainda

não tinham. Foi uma experiência gratificante, enquanto docente, observar a cooperação dos alunos entre si.

Questionados sobre as dificuldades no processo de escrita, os alunos responderam conforme o gráfico 6 a seguir.

Gráfico 6 - Dificuldades no processo de escrita

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Em primeiro lugar, de acordo com o Gráfico 6, 70% dos alunos apontaram a reescrita como a principal dificuldade enfrentada durante as oficinas. Isso mostra que, inconscientemente, eles ainda resistem para aderir à visão de escrita como processo.

Em segundo lugar, com 15% do total, está o número de alunos que não declararam qualquer dificuldade; aparentemente, isso poderia ser um fator positivo, todavia observamos que esses alunos que não declararam as suas dificuldades correspondem àqueles que não têm feito os seus registros no Diário frequentemente ou àqueles que não estiveram presentes em todas as oficinas, o que prejudica a sua visão do processo de forma mais reflexiva e abrangente. Algumas respostas que nos surpreenderam foram: o barulho, citado por apenas um aluno, em uma turma considerada barulhenta; e combinar com o colega, resposta apontada por dois alunos como fator que dificultou o trabalho, pois sugerimos produções em duplas exatamente para facilitar o processo. Assim, o quadro a seguir resume as maiores dificuldades enfrentadas pela turma, referentes à escrita:

Quadro 14 - Dificuldades no processo de escrita

Total de alunos 27

Registros das dificuldades 23

Reescrita 19

Escrita em dupla 02

Tempo 01

Barulho 01

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Feito esse levantamento, demos continuidade, conversando sobre a organização do livro. Primeiro, listamos no quadro os nomes que os alunos iam sugerindo e fizemos uma votação da qual todos os presentes participaram; depois, agendamos o dia de tirar uma foto com todos para inserir no livro; em seguida, definimos um grupo de alunos responsáveis pelas ilustrações e outro pela digitação dos textos; após, projetamos os textos de apresentação do livro e de introdução dos capítulos para avaliação da turma que poderia sugerir alterações; por fim, levantamos ideias para a capa.

Aproveitamos esse momento para explicar-lhes as etapas do processo de produção do livro: digitação, revisão, criação de capa e ilustrações, diagramação, revisão novamente e impressão. Conhecer esse processo também nos pareceu uma boa oportunidade de demonstrar que escrita é processo.

Continuando, passamos ao planejamento do lançamento da Comunidade de leitores. Cada um dos cinco mediadores de leitura (eram três inicialmente, mas ampliamos para cinco) apresentaria um resumo oral da sua última leitura para estimular os outros. Na sequência, definimos uma programação prévia para o dia do lançamento do livro: apresentação do projeto, socialização de uma das narrativas produzidas e participação dos mediadores de leitura relatando a relevância do projeto para eles.

Passamos à análise de cinco das narrativas produzidas durante o módulo, para as quais usamos o código: M3.1, M3.2, M3.3, M3.4 e M3.5, sendo M3 referente a Módulo 3 e os números seguintes (1, 2, 3, 4 e 5) correspondentes à identificação dos alunos/duplas.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Transcrição M3.1: O velho

Havia um velho que se chamava Dinho, ele bebia cachaça e chegava em cassa chumbado. Ele

tinha família e era bravo e não comprava alimento pra casa pois só gastava com bebida e dependia da família pra comer. Esse velho era muito chato, pois sem fazer nada ele mexia com a

vizinhança sem ninguém fazer nada com ele mexia com todo mumdo.

Teve um dia que eu e meus amigos estávamos na calçada rindo com outras coisas ele pensou que era com ele e nos ameaçou de morte. Isso se repetia todo dia.

Ele falou:

- Eu vou mata-lo. 7 dias depois ele veio de novo ameaçou e foi embora. Eu tive uma raiva tão grande que eu não queria saber da família e pais, não queria saber de nada eu disse:

- Vou comprar uma bomba. No mesmo da hora 11:00 da noite fui lá com um isqueiro uma bomba acendeu: PÁPÁ!!! O velho acordou assustado, o filho dele me viu correndo e foi contar a minha mãe. Eu me lasquei, eu estava ferrado ainda bem que meu pai estava dormindo quem resolveu foi ela no outro dia meu pai abriu a porta e disse: quem tava lá no na frente à mãe dele e ela comtaram tudo ao meu pai, ai que eu me lasquei de verdade, pois meu pai quando chegou do trabalho eu pensei que ia ser pior mais ele falou comigo tranquilho ele aproveitou que a janela estava aberta e foi falar com ele. Meu pai me chamou e fez eu pedir desculpa ao velho e eu pede e eu falei pra ele pedir desculpa pra mim, por ele ficar me ameaçando e foi isso tudo desculpado: eu na minha e ele na dele

Observamos, de início, a tentativa de caracterizar a personagem no trecho “Havia um

velho que se chamava Dinho, ele bebia cachaça e chegava em cassa chumbado. Ele tinha família e era bravo e não comprava alimento pra casa pois só gastava com bebida e dependia da família pra comer. Esse velho era muito chato, pois sem fazer nada ele mexia com a vizinhança sem ninguém fazer nada com ele mexia com todo mumdo” (linhas 1-5), através de

termos como chumbado, bravo e chato, por exemplo. Só então o aluno introduz o acontecimento que desencadeia a história: “ameaçou de morte” (linha 6).

Notamos que o aluno tem alguma dificuldade de escolher como dar sequência à narrativa. Tal dificuldade fica evidente pelo uso das expressões “Teve um dia” (linha 5) e “Isso

se repetia todo dia” (linha 6) dentro do mesmo parágrafo. A escolha parece não ser coerente,

já que essas expressões se excluem, ou teve um dia para ocorrer o fato ou ele se repetia todo dia. Apesar dessa escolha que gera uma incoerência pontual, em seguida, por meio do discurso direto, o aluno introduz a expressão que reafirma a ideia de que a ameaça se repetia no trecho

“veio de novo ameaçou” (linha 8).

Um aspecto interessante a destacarmos é a forma como se dá a passagem do tempo no texto: “7 dias depois” (linha 8) e “No mesmo da hora 11:00 da noite” (linha 10) são construções que exemplificam a tentativa de fornecer informações exatas sobre o tempo. A nossa hipótese é que, de tanto falarmos sobre a importância de marcar o tempo dentro da

narrativa para a construção de sentidos, o aluno pode ter entendido que se tratava de um tempo cronológico exato.

Outro aspecto a se destacar é o uso da palavra “PÁPÁ!!!” (linha 11) que, além de já chamar a atenção do leitor por ser uma onomatopeia, foi intensificada pelo emprego das letras maiúsculas e pelo uso do sinal de exclamação. Ou seja, há a intenção clara de enfatizar o termo, o que se confirma com a expressão seguinte “O velho acordou assustado” (linha 11).

Embora o foco narrativo esteja em 1ª pessoa desde o início do texto, a partir da linha 12, notamos mais envolvimento do narrador-personagem com a história, como observamos no trecho “Eu me lasquei, eu estava ferrado ainda bem que meu pai estava dormindo quem

resolveu foi ela no outro dia meu pai abriu a porta e disse: quem tava lá no na frente à mãe dele e ela comtaram tudo ao meu pai, ai que eu me lasquei de verdade...” (linhas 12-14).

Por fim, o texto termina com uma experiência ética: “Meu pai me chamou e fez eu

pedir desculpa ao velho e eu pede e eu falei pra ele pedir desculpa pra mim, por ele ficar me ameaçando e foi isso tudo desculpado: eu na minha e ele na dele”. O aluno compartilha a sua

experiência e permite uma reflexão aos leitores. Vejamos outra análise.

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Transcrição M3.2: sem título

Estava indo passear em um parque de tarde, o céu estava sem nuvens, o sol brilhava como nunca, o parque era bem bonito; inclusive, era cheio de árvores, tinha uma lagoa com água cristalina, que

lembrava diamantes sendo refletido pela luz. Fiquei encantada com um balancê cheio de musgo em um grande e velho carvalho do lado da lagoa e havia flores amarelas ao redor. Uma paisagem

linda e encantadora para se apreciar... Fiquei um bom tempo lá. Já estava escurecendo e tinha que ir embora. No portão, indo em direção ao carro, olhei para o lado e passava uma criança sozinha,

moradora de rua, pedindo esmola. Era um garotínho e aparentava estar com fome e frio e, naquela

noite, estava bem frio na verdade, principalmente para quem estava com roupas rasgadas, sujas e

velhas que aquela pobre alma usava.

Ele vinha em minha direção, enquanto isso, olhava o rosto triste e amargurado daquela inocente criança. Ele me pediu dinheiro para comer algo. Sem reações, me afastei devagar e entrei no carro. Olhando para trás, vi os olhos de decepção daquele pequeno, que tinha a esperança de ver algo para comer ou uma família ou uma casa para chamar de lar. Fiquei muito culpada e chocada com a ação

desumana que fiz, porque tinha alguns trocados em meu bolso e não o ajudei. Fiquei pensando que

todos os dias essas pessoas são rejeitadas e excluídas de alguma forma pela sociedade.

Uma semana depois, fui para o parque de novo, bem alegre e filiz, por voltar àquele lugar, fiquei a semana toda juntando dinheiro e levei um cobertor junto. Antes de entrar no parque com um cobertor na mão e sete reais no bolso, fiquei procurando o garotinho e tinha uns outros dois moradores de rua perto dali. Fiquei com experança de encontrá-lo de novo.

Pedi informação a um velho que era morador de rua, que tinha visto da última vez. Ele me contou que o nome da criança era João Pedro e ele vivia com a avó, só que ela morreu fazia poucos meses. Perguntei se ele tinha pais, só que o velho disse que os pais não queriam saber dele. Triste em saber que ele estava só, sem ninguém no mundo para protegê-lo, perguntei onde ele estava. Ele me disse que aquela pobre e frágil criança morreu atropelada após roubar um salgado da lanchonete aqui perto.

Nessa narrativa, o que chama a atenção do leitor no início é a forma detalhada com que caracteriza o lugar: “... o céu estava sem nuvens, o sol brilhava como nunca, o parque era

bem bonito; inclusive, era cheio de árvores, tinha uma lagoa com água cristalina, que lembrava diamantes sendo refletido pela luz. Fiquei encantada com um balancê cheio de musgo em um grande e velho carvalho do lado da lagoa e havia flores amarelas ao redor. Uma paisagem linda e encantadora para se apreciar...” (linhas 1-5). Notamos que a aluna se detém na

ambientação empregando uma linguagem bem subjetiva e isso colabora para que o leitor construa imagens mentais sobre o ambiente da história. Essa aluna, provavelmente, entendeu a função da caracterização do espaço na narrativa.

Somente após caracterizar detalhadamente o ambiente, entra em cena a figura de uma criança no trecho “No portão, indo em direção ao carro, olhei para o lado e passava uma

criança...” (linha 6) e as atenções se desviam para a sua caracterização: “...sozinha, moradora de rua, pedindo esmola. Era um garotínho e aparentava estar com fome e frio e, naquela noite, estava bem frio na verdade, principalmente para quem estava com roupas rasgadas, sujas e velhas que aquela pobre alma usava” (linhas 7-9). Isso envolve o leitor porque lhe permite

construir imagens também do garoto. Destacamos que não se trata apenas de caracterizar a personagem para corresponder à construção mínima da narrativa, mas do trabalho com a linguagem, explorando as suas sutilezas nas sequências escolhidas de forma muito particular e criativa para provocar certos efeitos.

No parágrafo 2, a forma como a narradora-personagem se coloca na história, como quem olha para o menino e se comove, mas não tem reação prática, pareceu-nos representar um comportamento comum na nossa sociedade e, nesse sentido, o texto nos permite uma reflexão ética complexa sobre a sensibilidade na contemplação da natureza no parágrafo 1 e, em oposição, a insensibilidade na falta de empatia para com a criança pedinte. Por isso, podemos afirmar que a narrativa M3.2 atendeu à proposta de narrar histórias vividas ou presenciadas com êxito pois, tal qual o conto motivador de Mia Couto, proporcionou uma autoavaliação ética em quem lê, assim como em quem escreve, conforme notamos no trecho “Fiquei muito culpada e

chocada com a ação desumana que fiz” (linhas 13 e 14). Isso, porém, não representa a imitação

inconteste do conto motivador.

Esse ponto da história remete o leitor ao desfecho e, se o fosse, já representaria um texto muito interessante. No entanto, a aluna retorna ao parque, agora preparada para ajudar a criança. Então, o desenlace desvia-se do “final feliz” que o leitor espera, pois “aquela pobre e

frágil criança morreu atropelada após roubar um salgado da lanchonete” (linhas 25 e 26).

a morte do protagonista; entretanto, mantemos a opinião de que isso não se deu por imitação a um modelo de escrita, mas pela apropriação do texto que permitiu a visão das estratégias possíveis para um final realista (a vida nem sempre tem finais felizes) e envolvente.

Vamos a outra narrativa.

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Transcrição M3.3: sem título

Os dias daquela pequena menina eram tristes e sem cor. Seus olhinhos de boneca refletiam a solidão e a amargura que há tanto tempo estavam trancados em seu coração. Sua infância havia sido

esmagada, assim como seus sonhos, que antes eram coloridos, mas agora eram preto e branco.

No dia em que a vi pela primeira vez, estava sozinha, isolada no canto da sala de aula. Assim

que fitei sua expressão tristonha, senti que a sua alma gritava silenciosamente por socorro. Queria me aproximar e ajudá-la de alguma forma, mas nunca tinha coragem.

Até que um dia, vencida pela curiosidade que me assombrava, resolvi conversar com a garota que tanto me intrigava. Naquele dia sentei á próxima e puxei assunto, mas não parecia me ouvir; ela

estava distante, pensativa, seus olhos se encheram de pesadas lágrimas que caíam sem parar.

Era como se aquilo aliviasse seu sofrimento, então eu só perguntei se ela queria conversar.

No fim da tarde, antes de irmos pra casa, ela se abriu comigo, e falou tudo o que sofria dentro de casa: sua mãe a maltratava sem nem ter motivo. Eu fiquei horrorizada com aquilo. Na época, eu não entendia como uma pessoa podia fazer coisas assim com um ser tão inocente? Na verdade eu, até

hoje nunca entendi isso.

Nos dias seguintes nos tornamos grandes amigas, e ela passou a desabafar sobre tudo comigo. Foi bom me tornar amiga dela, descobri que ela era muito legal e divertida. Houve um dia em que ela me pediu pra nunca contar a ninguém sobre aquilo porque ela tinha medo da mãe. Eu nunca falei nada em respeito a ela, mas acabei me sentindo culpada por isso. No outro ano minha amiga foi morar

com o pai em outro Estado e eu nunca mais a vi. Esse caso me mostrou até onde a maldade do ser

humano pode ir. E até hoje me sinto triste em saber que assim como aquela menina pequenina e frágil, existem muitas outras crianças que sofrem com a violência dentro de casa.

A estratégia usada para caracterizar a personagem é muito interessante, pois foge da escolha mais comum de iniciar com um parágrafo de caracterização para depois introduzir a sequência narrativa. Nesse caso, a aluna optou por uma sequência descritivo-narrativa e foi descrevendo a protagonista à proporção que narrava, como se observa no trecho “Os dias

daquela pequena menina eram tristes e sem cor. Seus olhinhos de boneca refletiam a solidão e a amargura que há tanto tempo estavam trancados em seu coração. Sua infância havia sido esmagada, assim como seus sonhos, que antes eram coloridos, mas agora eram preto e branco” (linhas 1-4).

Comprovamos que isso foi um recurso intencionalmente escolhido porque, no parágrafo 2, ela segue com a mesma estratégia, como no trecho “No dia em que a vi pela

primeira vez, estava sozinha, isolada no canto” (linha 5) ou na expressão “fitei sua expressão tristonha, senti que a sua alma gritava silenciosamente por socorro” (linhas 6 e 7), nos quais

temos uma sequência descritiva (sozinha, isolada, tristonha) e narrativa (vi, fitei, senti), ao mesmo tempo, envolvendo o leitor na história.

No parágrafo seguinte, a estratégia é mantida no trecho “ela estava distante, pensativa,

observamos o seu cuidado em não fornecer o nome da menina ou maiores informações sobre ela, talvez para preservar a sua identidade. Isso nos permite inferir que se trata de uma aluna que já faz escolhas linguísticas muito maduras e que já apresenta um modo de dizer muito próprio.

Continuando a leitura, notamos a projeção da narradora-personagem de modo mais incisivo no texto, conforme o trecho “Eu fiquei horrorizada com aquilo. Na época, eu não

entendia como uma pessoa podia fazer coisas assim com um ser tão inocente? Na verdade eu, até hoje nunca entendi isso” (linhas 13-15), posicionando-se, inclusive, em relação à questão

do abuso (Na verdade eu, até hoje nunca entendi isso). Ao se posicionar, ela abre a reflexão quanto a haver ou não explicação para o fato de uma forma interessante, como se confidenciasse ao leitor a sua posição de discordância e incredulidade.

Então, a narrativa promove uma experiência linguístico-estética muito complexa, em virtude da escolha estratégica das construções e, ainda, permite uma densa experiência ética. Após conhecer a menina, ouvir a sua história e se tornar sua amiga, a narradora-personagem confidencia ao leitor que se sente culpada por nunca ter compartilhado a história com alguém e isso, de certa forma, cria uma relação de confiança entre narradora e leitor porque ao contar estabelece-se a aproximação.

Por fim, o desenvolvimento conduz o leitor à expectativa de um final feliz. De acordo com o trecho “No outro ano minha amiga foi morar com o pai em outro Estado e eu nunca

mais a vi” (linhas 19 e 20), a aluna opta por um desfecho em aberto e desconstrói a expectativa

gerada. Na sequência, ela faz uma reflexão em torno da problemática levantada na narrativa, conforme o trecho “Esse caso me mostrou até onde a maldade do ser humano pode ir. E até

hoje me sinto triste em saber que assim como aquela menina pequenina e frágil, existem muitas outras crianças que sofrem com a violência dentro de casa” (linhas 20-22) e conclui

provocando a reflexão do leitor sobre o assunto. Com isso, fica implícita a sua intenção de, além de narrar um fato, denunciar uma prática comum no país e isso revela a sua compreensão de escrita como prática social dotada de sentido.

Vamos a mais uma análise.

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Transcrição M3.4: sem título

Eu tinha uma prima de 14 anos. ela era linda. Seu cabelo era cacheado, a cor dos seus olhos