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Tão importante quanto contextualizar teoricamente um trabalho, é esclarecer os caminhos escolhidos para conduzi-lo, estabelecendo as relações necessárias entre teoria e prática. Sendo assim, esta primeira seção tem como objetivo apresentar brevemente os paradigmas de uma pesquisa de âmbito social, assim como definir o paradigma ao qual o trabalho se filia, além dos aspectos éticos, sobre o que passamos a tratar.

O pensamento científico permeia todos os aspectos da vida do homem. Sendo assim, diante das problemáticas inerentes ao espaço escolar e dos variados caminhos possíveis para a sua resolução, precisamos enxergar a sala de aula como objeto de pesquisa sistemática, no campo da pesquisa social, de acordo com Bortoni-Ricardo (2008), sob dois paradigmas: o quantitativo e o qualitativo. Enquanto o primeiro paradigma busca explicações causais para os fenômenos, privilegiando a razão analítica; o segundo busca a interpretação dos significados culturais, privilegiando a razão dialética. Enquanto o paradigma quantitativo valoriza o

pensamento científico; o qualitativo enxerga o senso comum como uma das dimensões do conhecimento e, por isso, utilizável para interpretar fenômenos sociais presentes na escola.

Segundo a autora, “A pesquisa qualitativa procura entender, interpretar fenômenos sociais inseridos em um contexto”. (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 34). Para ela, o objetivo de uma pesquisa qualitativa em sala de aula diz respeito à identificação dos processos que, por serem tão rotineiros, tornam-se invisíveis aos professores (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 49), ou seja, um profissional chega a se acostumar tanto com o que faz, diz e solicita, que acaba por não notar mais o significado das próprias ações, o que configura como um comportamento negativo quanto à capacidade de autoavaliação no processo de ensino.

É muito comum professores com mais tempo na profissão apresentarem maior tendência de automatizar as próprias ações e isso pode gerar entraves na aprendizagem dos alunos. Usar o mesmo LD ano após ano, atuar com uma mesma série/ano sempre, planejar as aulas isoladamente e reaproveitar atividades de anos anteriores são algumas das situações que podem contribuir para a automatização dos professores; porém, há uma atitude que pode prejudicar a ação docente em maior proporção: a identidade que o professor construiu na sua formação. Nisso está a relevância do paradigma qualitativo, já que devolve ao professor um papel ativo quanto à prática, afastando-se da visão de sujeito passivo, cuja função é aplicar o que a ciência produziu.

Considerando-se como pesquisadora nesta intervenção uma professora de Educação Básica há duas décadas, o paradigma qualitativo não só se aplica como também adquire dimensão imperativa, já que a pesquisadora está inserida no locus da pesquisa e, portanto, é também objeto da própria reflexão. Por isso, o paradigma qualitativo foi adotado nesta pesquisa, tomando como referência Bortoni-Ricardo (2008) sobre:

• A reflexividade: a pesquisadora é parte do mundo que pesquisa; assim, ao passo que pesquisa, a pesquisadora se insere na observação.

• A subjetividade: a pesquisadora tem sua forma de ver o mundo, a qual afeta a sua análise.

• A não-passividade: a pesquisadora não é passiva, reflete sobre si mesma, sobre as suas ações e sobre os resultados delas.

• A adequação: a pesquisadora busca interpretar os fenômenos sociais inseridos no contexto, o que é coerente com a visão dialógica que considera aspectos socio-históricos da linguagem.

Ademais, o paradigma qualitativo nos interessa, especialmente, porque permite

“construir e aperfeiçoar teorias sobre a organização social e cognitiva da vida em sala de aula,

que é o contexto por excelência para a aprendizagem dos educandos”. (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 42), sobretudo por se tratar de uma pesquisa voltada ao processo de leitura e escrita, interesses permanentes da escola.

Entendemos que o contexto sócio-histórico em que os sujeitos estão inseridos tem alguma relação com suas formas de participação no mundo. No âmbito escolar, não é diferente: os alunos passam muitos anos na escola e são por ela formados ao mesmo passo que ela também se transforma pela sua presença e atuação. Dessa forma, pensar uma pesquisa na escola é pensar nos contextos que se cruzam, se encontram, se complementam e se constroem no espaço de uma aula. Assim, justifica-se a escolha do paradigma qualitativo de natureza interventiva e interpretativista, por permitir a reflexão de questões sociais, históricas e culturais imbricadas nas práticas docentes e nas aprendizagens discentes.

Consoante Bortoni-Ricardo (2008), o paradigma interpretativista critica o positivista argumentando que nas ciências sociais não se pode negligenciar o contexto sócio-histórico dos sujeitos. Concordamos com essa posição ao pensarmos no espaço escolar e a definição do nosso objeto nesta pesquisa só se fez possível mediante a observação do contexto dos estudantes, pelo fato de a problemática identificada quanto às dificuldades na escrita narrativa literária ter alguma relação com tal contexto. Nessa perspectiva, a metodologia empregada é interventiva porque intervêm ativamente e intencionalmente na sala de aula; e interpretativista porque permite à professora-pesquisadora a reflexão sobre a prática a partir da observação dos fenômenos sociais.

Essa visão comunga com a visão de Oliveira e Oliveira (1999) ao afirmarem que:

[...] a finalidade da pesquisa/ação é de favorecer a aquisição de um conhecimento e de uma consciência crítica do processo de transformação pelo grupo que está vivendo este processo, para que ele possa assumir, de forma cada vez mais lúcida e autônoma, seu papel de protagonista e ator social (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1999, p. 27).

Compreendemos, assim, que a objetividade de uma pesquisa não está no distanciamento do pesquisador em relação ao locus e aos sujeitos de pesquisa, mas sobretudo na sua capacidade de observação e reflexão crítica quanto ao contexto sócio-histórico. Logo, o nosso interesse ultrapassa questões quantitativas e reside no processo educativo.

A escolha do paradigma qualitativo e a redefinição dos professores também enquanto pesquisadores reiteram a visão de Paulo Freire (1996) de que não há ensino sem pesquisa como

também não há pesquisa sem ensino, tendo em vista que a prática docente crítica envolve o movimento dinâmico e dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Apropriando-nos dessa fala do autor, entendemos como essencial esse movimento no processo de ensino por ser dinâmico no sentido de contínuo e progressivo; e dialético, por se basear no diálogo entre os sujeitos sem supervalorizar relações hierárquicas.

Ademais, a posição defendida pelo paradigma interpretativista dialoga com os interesses do Programa de Mestrado Profissional em Letras, ProfLetras, que pretende melhorar a qualidade da educação pública oferecendo ao professor a oportunidade de repensar a sua formação e a sua prática, de forma ativa. Portanto, esperamos que por meio da observação, da interpretação e da compreensão dos fenômenos sociais envolvidos no espaço escolar, o professor, agora também como pesquisador, se inclua no processo reflexivo e por ele seja (trans)formado. Assim:

O professor pesquisador não se vê apenas como um usuário de conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se propõe a produzir conhecimentos sobre seus problemas profissionais, de forma a melhorar sua prática. O que distingue um professor pesquisador dos demais professores é seu compromisso de refletir sobre a própria prática, buscando reforçar e desenvolver aspectos positivos e superar as próprias deficiências. Para isso ele se mantém aberto a novas estratégias (BORTONI- RICARDO, 2008, p. 46).

A partir desse compromisso de refletir sobre a própria prática, não fazemos distinção entre o professor e o pesquisador e, por isso, optamos por usar o termo professora-pesquisadora no sentido de rejeitar a dicotomia teoria-prática e legitimar a voz do professor como sujeito ativo no processo. Assim, o caráter interpretativista é essencial para o reposicionamento do professor, porque lhe permite transformar e ser transformado. O aspecto mais inquietante para a professora-pesquisadora nesse cenário transformador está no reconhecimento de sua identidade como sujeito ativo na produção — e não somente no consumo ou na aplicação inquestionável — de conhecimentos, sobretudo no contexto atual de deslegitimação da voz docente.

O procedimento metodológico usado para a intervenção é a realização de oficinas utilizando-se da leitura literária como ponto de partida para a produção escrita. São realizados três módulos de oficinas, a saber:

• Módulo 1: O papel do narrador e dos tipos de discurso nos efeitos de sentidos; • Módulo 2: Caracterização de ambiente e personagens e construção do suspense; • Módulo 3: O desenvolvimento dos acontecimentos na construção narrativa.

Se a proposta prevê o reposicionamento dos sujeitos, não podíamos escolher os textos que introduziriam cada Módulo de Oficinas sem ouvir os estudantes. Levando em conta que eles demonstram muito interesse por filmes de heróis e reconhecendo o impacto que a linguagem menos realista causa neles em filmes e séries, a escolha dos textos motivadores se deu principalmente pela representação fantástica. Assim, eis os contos escolhidos:

• Os meninos verdes, de Cora Coralina; • As formigas, de Lygia Fagundes Telles;

• O dia em que explodiu Mabata-bata, de Mia Couto.

Para Roas (2014, p. 31), “A narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito pelo contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real”. Isso é o que torna o fantástico inquietante: ao mesmo tempo em que parte do contexto sociocultural real do leitor22, questiona e subverte a realidade; ademais, a combinação entre realidade e ficção só se materializam, para o autor, mediante a transgressão linguística, ou seja, a busca de recursos para dizer o indizível. Entendemos, pois, que se propomos algo em resposta ao imediatismo e à objetividade dos textos cotidianos e se pretendemos dar aos alunos o protagonismo de contarem suas histórias a partir da apropriação subjetiva da linguagem, a narrativa fantástica combina essas pretensões.

Além disso, os contos foram escolhidos segundo os seguintes critérios: a linguagem não convencional23, materializada nos diferentes modos de dizer empregados pelos autores Cora Coralina, Lygia Fagundes Telles e Mia Couto; a complexidade das possibilidades de leituras subjetivas; as dimensões imaginativa e previsibilidade/imprevisibilidade dos recursos e estruturas empregados.

Reconhecemos que trabalhar com contos de autores diferentes, de estilos diferentes e de épocas e contextos diferentes se apresenta como um desafio. Porém, entendemos também que tal desafio se alinha à proposta de intervenção que busca proporcionar o acesso a outras experiências significativas pelo fato de que quanto mais diversa for a coletânea, maior a possibilidade de garantir essas experiências. Ademais, embora distintos quanto ao estilo dos autores, à época, ao contexto e ao nível de complexidade, os contos de certa forma se aproximam dos alunos nos seguintes aspectos:

i) Em “Os meninos verdes”, a presença da avó é marcante, assim como para boa parte dos alunos que ou moram com as avós ou ficam com elas o dia todo, enquanto os pais

22 Para o autor, essa é a principal diferença entre as narrativas fantástica e maravilhosa, pois enquanto a primeira parte da realidade contemporânea do leitor, a segunda cria um mundo sobrenatural.

(frequentemente, só a mãe) trabalham, além da temática que pode ser levantada quanto à aceitação social do diferente através dos seres verdes;

ii) Em “As formigas”, o suspense mobiliza a curiosidade comum entre os adolescentes e ainda pode ser levantada a questão de aceitação do diferente mais uma vez, que configura como uma temática relevante, já que temos alunas com necessidades educativas especiais na turma;

iii) Já em “O dia em que explodiu Mabata-bata”, a vida mais rural, o trabalho infantil, as formas divergentes de enxergar a escola (a do tio e a do menino), a figura da avó mais uma vez, a presença da crença popular e da violência são possibilidades exploratórias que se aproximam das realidades sociais representadas na turma.

Reconhecendo o desafio de uma intervenção a partir de contos tão diversos, fica evidente o papel mediador da professora-pesquisadora. Por essa razão, as oficinas foram organizadas em um primeiro momento de leitura subjetiva (ROUXEL, 2013) e um segundo momento de leitura rigorosa (RIOLFI et al., 2017) com a mediação da professora-pesquisadora. Inicialmente, a previsão era de que cada módulo de oficinas tivesse duração de 10 a 12 aulas, o que representaria um total de 30 a 36 aulas para a intervenção, dependendo dos desdobramentos. O planejamento das oficinas, constando os objetivos, as atividades e os recursos previstos, será apresentado no próximo capítulo.

Considerando a proposta de uma pesquisa de âmbito social, a ética deve ser um princípio norteador de todo o processo, seja no planejamento metodológico, seja na análise dos dados. Referindo-nos ao contexto de pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, a preocupação com as questões éticas é especialmente importante, tendo em vista o fato de os procedimentos metodológicos envolverem dados obtidos diretamente com os participantes e as informações serem identificáveis (Resolução 510/2016). Em consonância com os artigos 18 e 19 da Resolução, a presente proposta assegura que os alunos estão livres de danos maiores do que os existentes na vida cotidiana (Art. 18), não havendo riscos à sua integridade física nem danos materiais. Para a minimização de possíveis riscos, coube à professora-pesquisadora:

• Deixar claro aos participantes todas as etapas e atividades previstas e os objetivos pretendidos, com clareza, garantindo-lhes a segurança e a confidencialidade;

• Fornecer todas as informações quanto à intervenção, ressaltando que as

atividades solicitadas no âmbito da pesquisa não seriam aproveitadas para fins de avaliação escolar e garantindo a não penalização dos que não participassem;

• Garantir assistência em casos de eventuais danos materiais ou imateriais aos participantes, bem como ajuda emocional para algum caso de intimidação ou constrangimento;

• Promover um ambiente de diálogo e cooperação, recusando qualquer forma de preconceito ou estigmatização.

Assim, em consonância com a perspectiva social de pesquisa, partimos para a compreensão do nosso locus e dos sujeitos colaboradores nas próximas seções.