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IMIGRANTES E DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

5. O acesso de imigrantes a direitos sociais na le

No que toca à garantia legal de acesso aos direitos sociais a imigrantes, importa começar por referir que algumas normas das leis em matéria de imigração e de asilo procedem a uma enumeração dos direitos de que os estrangeiros com determinado estatuto gozam. Assim, o art. 83.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que enumera os “direitos do titular da autorização de residência”, onde se plasma que o referido titular tem direito à educação e ensino, ao exercício de uma atividade profissional subordinada, ao exercício de uma atividade profissional independente, à orientação, à formação, ao aperfeiçoamento e à reciclagem profissionais, ao acesso à saúde e ao acesso ao direito e aos tribunais, bem como à “igualdade de tratamento, 56 Dec. de 08/09/2004, FIDH c. França, queixa n.º 14/2003.

57 C

OMITE EUROPEU DOS DIREITOS SOCIAIS, Conclusões 2011, Introdução Geral, p. 6.

58 Dec. de 20/10/2009, Defence for Children International c. Holanda, queixa n.º 47/2008.

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nomeadamente em matéria de segurança social, de benefícios fiscais, de filiação sindical, de reconhecimento de diplomas, certificados e outros títulos profissionais ou de acesso a bens e serviços à disposição do público, bem como a aplicação de disposições que lhes concedam direitos especiais”. O mesmo tipo de garantia é ainda estabelecido no art. 121.º- H, para os titulares de “Cartão Azul” e no art. 133.º, para os titulares do Estatuto Residente de Longa Duração. Por seu turno, a Lei de Asilo (Lei n.º 27/2008, de 30 de junho) prevê também o direito de acesso à educação, ao emprego, à segurança social, à saúde e a alojamento (art. 70.º a 74.º), em igualdade de condições com os cidadãos nacionais para os titulares de proteção internacional.

Ora, apesar de, em alguns casos, a enumeração resultar da transposição (repetitiva) das Diretivas da União Europeia que criaram os estatutos mencionados, em boa verdade importa referir que todas elas são desnecessárias. Assim é porque o gozo desses direitos já resultava da consagração dos princípios constitucionais atrás expostos. E, em segundo lugar, as referidas enumerações podem ser contraproducentes para uma garantia alargada do acesso aos direitos sociais a todos os estrangeiros em geral. E assim é porque pode levar o intérprete a considerar que só os imigrantes com os títulos legais mencionados têm acesso aos direitos referidos, e que só têm acesso a esses direitos59.

Importa, por fim, mencionar algumas leis sectoriais. O acesso dos estrangeiros aos direitos sociais encontra-se regulamentado pelos vários diplomas legais respeitantes aos vários sectores de atividade estadual prestativa. Não cabe aqui, naturalmente, analisar com exaustão todos eles, mas afigura-se-nos importante tecer breves considerações em relação a alguns dos diplomas legais mais importantes.

O princípio interpretativo norteador da aplicação das várias normas legais deverá ser sempre o da execução dos princípios constitucionais acima mencionados – se necessário, com recurso à jurisprudência constitucional e internacional densificadoras. Assim, por exemplo, algumas exclusões que os mesmos possam prever, no sentido de diminuírem o âmbito de aplicação do princípio da equiparação, têm de ser escrutinadas à luz dos princípios constitucionais referidos.

Algumas leis que regulam o acesso a prestações sociais assentam nos princípios da universalidade e da proibição da discriminação em razão da nacionalidade. Assim, o artigo 6.º da Lei de Bases da Segurança Social (Lei n.º 4/2007, de 16/01), que assenta no princípio da universalidade (artigo 6.º, através do qual todas as pessoas têm direito à proteção social assegurada pelo sistema, nos termos definidos por lei) e o princípio da igualdade, plasmado no art. 7.º, o qual “consiste na não discriminação dos beneficiários, designadamente em razão do sexo e da nacionalidade, sem prejuízo, quanto a esta, de condições de residência e de reciprocidade”.

59 Já no que se reporta aos requerentes de asilo, e face ao seu estatuto por definição transitório, já não nos parece ser de aplaudir a consagração expressa de vários direitos da titularidade do requerente de asilo, como o direito a meios de subsistência, a assistência médica e medicamentosa, ao acesso ao ensino, ao trabalho, ao emprego e formação profissional e ao apoio social (arts. 51.º e ss. da Lei de Asilo).

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Como se denota da redação desta última norma, a mesma prevê a possibilidade de restrições em função de considerações ligadas à reciprocidade, o que constitui uma prática algo comum nos diplomas reguladores do acesso a direitos sociais. Assim, também a Lei de Bases da Saúde, regulamentada pela Lei nº 48/90, de 24 de Agosto, na Base XXV determina que são beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, para além de todos os cidadãos portugueses e dos cidadãos nacionais dos Estados - Membros da União Europeia, do Espaço Económico Europeu e da Suíça, os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições reciprocidade e os cidadãos apátridas residentes em Portugal.

A reciprocidade consiste na condição segundo a qual apenas se reconhece determinado direito a estrangeiros se o país de origem dos mesmos reconhecer a portugueses tal direito. Tal condição representa uma restrição ao princípio da equiparação, em relação à qual temos as mais diversas dúvidas60, e o qual tem sido também questionado pela jurisprudência

internacional mais progressista, como se viu acima.

Para além das mencionadas cláusulas de reciprocidade, o princípio da universalidade é ainda muitas vezes mitigado pelo facto de se exigir que os estrangeiros beneficiários possuam um título legal de residência. A situação do efetivo gozo de direitos sociais por parte de imigrantes em situação irregular é, pois, muito pouco clara. No que toca a estas pessoas, cabe mencionar, porém, o Decreto-lei n.º 67/2004 de 25 de março, que criou o registo nacional dos menores estrangeiros que se encontrem legalmente no território, destinado a assegurar que os mesmos gozam de um direito à educação e à saúde. Nos termos deste diploma, é assegurado a todas as crianças, independentemente do seu estatuto legal, o acesso à educação e saúde. De forma a efetivar-se os referidos direitos, prevê-se uma cláusula de garantia que proíbe que as autoridades que tenham conhecimento da situação de ilegalidade das crianças ou de seus progenitores, no exercício dos direitos assim assegurados, comuniquem tal situação de ilegalidade às autoridades em matéria de imigração.

Se o direito de acesso à educação e saúde se encontra assim assegurado para as crianças estrangeiras em situação irregular, o mesmo não se pode dizer em relação aos adultos. No que se refere ao acesso a cuidados de saúde, vigora um diploma que dificilmente passaria os requisitos da lei clara e acessível: trata-se do Despacho do Ministro da Saúde nº 25.360/2001, de 16 de novembro. Nos termos do referido despacho, os imigrantes que não sejam titulares de uma autorização de residência ou que se encontrem numa situação irregular face à legislação de imigração em vigor, têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde apresentando um documento da Junta de Freguesia da sua área de residência que certifique que se encontram a

60 De facto, como já tivemos oportunidade de expor (cfr. ANA RITA GIL, op. cit., p. 245 e ss.), consideramos que as cláusulas de reciprocidade não respeitam os limites que ao artigo 18.º, n.º2, estabelece para as leis restritivas, procedendo a uma exclusão cega e genérica de vários possíveis titulares de um determinado direito, apenas com base no seu território de origem. Tais cláusulas baseiam-se ainda em conceções ultrapassadas do direito internacional, ligadas à responsabilização coletiva das pessoas pelo facto de possuírem uma determinada nacionalidade. Não obstante, o TC absteve-se de emitir qualquer juízo de inconstitucionalidade sobre algumas cláusulas de reciprocidade, referindo que as mesmas, «além de constituir[em] um importante instrumento de política externa, pode[m] ser perfeitamente justificáve[is], em certos casos, para que a estrangeiros não residentes sejam reconhecidos determinados direitos». Cfr. Ac. n.º 433/2003, de 29/09/2003.

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residir em Portugal há mais de noventa dias. Nestes termos, têm acesso a cuidados de saúde nos mesmos termos que a população em geral, mas apenas no que toca aos cuidados de saúde urgentes e vitais, a doenças transmissíveis que representem perigo ou ameaça para a saúde pública (tuberculose ou sida, por exemplo), cuidados no âmbito da saúde materno-infantil e saúde reprodutiva, nomeadamente acesso a consultas de planeamento familiar, interrupção voluntária da gravidez, acompanhamento e vigilância da mulher durante a gravidez, parto e puerpério e cuidados de saúde prestados aos recém-nascidos, vacinação, conforme o Programa Nacional de vacinação em vigor. Para além destes casos, estipulados em função do tipo de cuidado a prestar, importa ainda mencionar duas situações em que se garante o acesso a cuidados intuitu personae: trata-se do caso dos “cidadãos estrangeiros em situação de Reagrupamento Familiar, quando alguém do seu agregado familiar efetua descontos para a Segurança Social” e ainda os “cidadãos em situação de exclusão social ou em situação de carência económica comprovada pelos Serviços da Segurança Social”.

O despacho em referência determina ainda que as unidades prestadoras de cuidados de saúde poderão exigir a cobrança dos cuidados, exceto quando a situação económica e social da pessoa, aferida pelos serviços de segurança social, determine o contrário. Já os demais imigrantes estão sujeitos aos mesmos princípios e normas aplicáveis à população em geral em matéria de pagamento e de isenção de taxas moderadoras.

No que toca a lei que regula o acesso ao direito61, o artigo 7.º dispõe que têm direito a

proteção jurídica os cidadãos nacionais e da União Europeia, bem como os estrangeiros e os apátridas com título de residência válido num Estado membro da União Europeia, que demonstrem estar em situação de insuficiência económica. Já no que se refere aos estrangeiros em situação irregular, o n.º 2 dispõe que é reconhecido o direito a proteção jurídica, na medida em que ele seja atribuído aos portugueses pelas leis dos respetivos Estados. Consagra-se, assim, o princípio da reciprocidade, que atua aqui como condição de reconhecimento de direitos a imigrantes em situação irregular. A lei portuguesa encontra-se, assim, ainda aquém dos desenvolvimentos alcançados pelo TEDH.

6. Conclusão

Neste texto pretendeu-se caracterizar a proteção constitucional do acesso de estrangeiros (incluindo, portanto, os imigrantes) a direitos fundamentais sociais. Nele vimos que a Constituição estabelece princípios gerais bastante favoráveis que protegem o gozo dos referidos direitos por parte de todos os estrangeiros e apátridas, independentemente do respetivo estatuto legal. No entanto, não podemos terminar as considerações aqui tecidas sem fazer uma breve referência à prática. De facto, aponta-se ainda um défice de reconhecimento efetivo dos direitos humanos aos estrangeiros que não cumpram a condição de reciprocidade ou que se encontrem em situação irregular.

61 Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.

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Ora, a exclusão destes imigrantes da titularidade desses direitos levanta várias questões, já que vários direitos económicos e sociais se destinam precisamente a garantir a salvaguarda da dignidade humana. Tal exclusão nem sempre passa um rigoroso escrutínio de adequação ou necessidade. É neste contexto que se afigura particularmente importante um criterioso controlo judicial dos limites às restrições ao princípio da equiparação62.

Por outro lado, ainda que os Estados reconheçam formalmente, ou pelo menos não excluam os imigrantes em situação irregular do gozo dos direitos garantidos às demais pessoas, essa exclusão acaba, muitas vezes, por ocorrer de facto. É por demais conhecida a vida em clandestinidade dessas pessoas que, no receio de denunciarem a sua situação de ilegalidade, acabam por não usufruir dos direitos humanos mais essenciais. Assim, evitam recorrer ao sistema de saúde, de inscrever as crianças nas escolas e tornam-se presas fáceis para exploração laboral, reféns do medo de reportar tais situações às autoridades63. Há assim, uma

disjunção entre a universalidade dos direitos formalmente reconhecidos a todas as pessoas, e um efetivo gozo desses direitos pelas mesmas. Apesar do universalismo acabado de expor, e da proteção conferida pela Constituição no que se refere ao acesso aos direitos fundamentais sociais, o mesmo, na prática, está ainda longe de se concretizar em toda a sua plenitude.

62 Para mais desenvolvimentos, v. A

NA RITA GIL, op. cit., p. 187. 63 Sobre este ponto, v. A

NNA BLUS, “Beyond the Walls of Paper…” p. 414.

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O REGIME JURÍDICO DA IMIGRAÇÃO: A ENTRADA, PERMANÊNCIA, SAÍDA

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