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IMIGRANTES E DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

4. Jurisprudência do Tribunal Constitucional e dos organismos internacionais sobre o gozo de direitos a prestações por parte de estrangeiros e apátridas

4.3. Outros direitos sociais stricto sensu a Jurisprudência constitucional

Para além dos dois casos, mais marcantes, já referidos, existe ainda um número de acórdãos que se debruçou sobre o acesso por parte de cidadãos não nacionais a outros direitos sociais stricto sensu. Neste contexto, os primeiros arestos foram emanados no que respeita a direitos em matéria de aposentação. Em abundante jurisprudência, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma que não exigia que os funcionários e agentes da administração pública das ex-províncias ultramarinas possuíssem a nacionalidade portuguesa para lhes ser atribuída a pensão de aposentação, estendendo, assim, esse direito aos cidadãos estrangeiros38. O Tribunal sublinhou que o legislador havia posto em igualdade os servidores

da Administração Pública dos ex-territórios portugueses do Ultramar que reuniam as condições para a aposentação, mas que, por força das circunstâncias em que ocorrera o processo de descolonização, se viram privados do direito à respetiva pensão e forçados a sair das suas terras e vir para Portugal.

Já no Acórdão n.º 423/2001, o Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de duas normas que reservavam a cidadãos portugueses o gozo dos direitos à reparação material e moral que assiste aos deficientes das forças armadas, bem como aos elementos pertencentes a corporações de segurança e similares ou como civis, que, colaborando em operações militares de apoio às Forças Armadas nos antigos territórios do ultramar, adquiriram uma diminuição da capacidade geral de ganho em resultado de acidente. O Tribunal Constitucional considerou que as normas em causa colidiam com o princípio de justiça inerente a um Estado de direito democrático, sendo arbitrárias e desproporcionadas, e, portanto, violadoras do princípio de equiparação constante do artigo 15.º, n.º 1, da Constituição. No referido aresto, o Tribunal Constitucional sublinhou que o princípio da equiparação abrange, prima facie, os «direitos e regalias» conferidos aos deficientes das forças armadas, "muito embora eles não sejam direitos, liberdades e garantias, possam não ser tidos como direitos fundamentais e seja questionável sustentar que o regime específico de proteção ou assistência por parte do Estado que eles concretizam decorra implicitamente da conjugação de normas constitucionais". Tratou-se, assim, da confirmação de que o princípio da 37 Note-se, contudo, que esta decisão esteve longe de ser unânime, tendo recebido cinco votos de vencido.

38 Acórdão n.º 354/97, depois confirmado nos Acórdãos nºs 392/97, 405/97, 406/97, 443/97, 482/97, 590/97, 48/98, 55/98, 89/98, 91/98, 94/98, 98/98, 159/98, 165/98, 231/98, 294/98, 308/98, 309/98, 332/98, 400/98, 434/98, 552/98 e 624/98.

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equiparação abrange os direitos sociais. O TC referiu que a abrangência de direitos sociais por parte do princípio da equiparação é "justificada pela ideia essencial de um universalismo de direitos, característico da igualdade no Estado de direito". Nesse sentido, o TC referiu que o direito à aposentação era "uma manifestação do direito à segurança social reconhecido a “todos” no art. 63.º da Constituição"39.

Seguidamente, o Acórdão n.º 72/2002 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma que erigia a cidadania portuguesa como condição sine qua non para constituição ou manutenção da situação jurídica de aposentação. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional considerou que, embora a qualidade de cidadão português fosse requisito para o exercício de determinadas funções públicas, não poderia ser para efeitos de benefício da pensão de aposentação pelo exercício dessas mesmas funções públicas, em particular nos casos em que o ex-funcionário havia entretanto perdido a cidadania portuguesa. Sublinhou, nesse seguimento, que "as vicissitudes da “nacionalidade” não são uma circunstância suscetível de constituir fundamento razoável para a determinação das consequências no plano da aposentação". Mais acrescentou que "é manifestamente injusto que esse funcionário ou agente, tendo comparticipado para o seu sub-sistema da segurança social da função pública durante todo o tempo em que exerceu funções, perca, apenas por ter deixado de ser português, os correspondentes direitos, em particular, o direito à pensão, núcleo essencial desses direitos, cuja usufruição representa, na maioria dos casos, o meio principal de assegurar ao aposentado uma existência humanamente condigna. Nesse seguimento, concluiu que "ao estabelecer como causa da extinção da situação de aposentação a perda da nacionalidade portuguesa (...) o legislador consagrou uma solução arbitrária e discriminatória, por não ter fundamento racional a diferença de tratamento entre nacionais e não nacionais e que infringe o princípio da justiça, deste modo violando o princípio da equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, estabelecido no artigo 15º nº 1 da Constituição".

b. Jurisprudência internacional e europeia

Os Tribunais internacionais e europeus têm também desenvolvido o reconhecimento do acesso de estrangeiros a outros direitos sociais fundamentais, sobretudo através do desenvolvimento de um princípio da proibição da discriminação em função da nacionalidade (ou mesmo do estatuto legal)40. Importa referir alguns casos paradigmáticos, decididos pelos

organismos mais relevantes, e que demonstram que nem sempre uma distinção de tratamento para efeitos de acesso de estrangeiros a direitos sociais é considerada discriminatória.

O Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas emitiu poucas decisões sobre a proibição de distinção em razão da nacionalidade à luz do art. 26.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. No caso Gueye e outros c. França, considerou que o facto de a lei francesa prever uma forma diferente de cálculo das pensões para os militares de carreira de nacionalidade senegalesa que haviam servido a França constituía uma discriminação proibida

39 Ac. n.º 72/2002. 40 Sobre este princípio v. A

NA RITA GIL, op. cit., p. 233 e ss.

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pelo Pacto41. Nesse caso a distinção fundava-se na nacionalidade dos autores, adquirida

posteriormente após a independência do país. O Comité entendeu que a distinção não era objetiva e razoável, já que o critério a presidir à determinação dos montantes das pensões de reforma deveria ser apenas o serviço prestado. Já no caso Van Oord c. Países Baixos, o Comité considerou que um tratado internacional que instituía um tratamento preferencial em relação aos nacionais dos Estados contratantes poderia constituir um critério objetivo e razoável de diferenciação42. Por seu turno, no caso Karakurt c. Áustria considerou que uma lei austríaca

que reservava aos austríacos e aos nacionais de Estados-Membros da UE e do EEE a possibilidade de pertencerem a um conselho de empresa era discriminatória para os efeitos do art. 26.º do PIDCP43. O Comité considerou que a referida distinção carecia de qualquer

justificação razoável, já que as funções do conselho de empresa eram restritas à promoção dos interesses do pessoal e à defesa pelo respeito das condições de trabalho. Neste caso, apesar de o tratamento preferencial de certas categorias de estrangeiros derivar de vinculações internacionais, isso não obstou a que o Comité dos Direitos Humanos declarasse a existência de discriminação de tratamento.

No que toca ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), foi em 1996, no caso Gaygusuz, que pela primeira vez se considerou que a distinção de tratamento baseada exclusivamente na nacionalidade constituía violação do art. 14.ºda CEDH44. O Tribunal chegou

mesmo a afirmar: «seules des considérations très fortes peuvent amener (…) à estimer compatible avec la Convention une différence de traitement exclusivement fondée sur la nationalité». Esta orientação foi depois reafirmada nos casos Lucksak45 e Andrejeva46. Neste

último caso, foi recusada à recorrente parte de uma pensão por ter trabalhado fora da Letónia e não ser cidadã do país. O TEDH não aceitou o argumento do Governo no sentido de que seria suficiente à recorrente ter-se naturalizado para receber o montante da pensão a que tinha direito. Para tal, sublinhou que a proibição de discriminação prevista no art. 14.º da CEDH só faz sentido se se garantir a igualdade das pessoas tendo em consideração as suas características efetivas e atuais. Usar o argumento de que a vítima poderia ter evitado a discriminação alterando um dos fatores em questão – no caso, a nacionalidade –, esvaziaria de conteúdo o art. 14.º47. Mais recentemente, o TEDH considerou que a cobrança de taxas para

41 Dec. de 03/04/1989, Ibrahim Gueye e outros c. França, comunicação n.º 196/1985. 42 Dec. de 23/07/1997, Van Oord c. Países Baixos, n.º 658/1995.

43 Dec. de 04/04/2002, Karakurt c. Áustria, comunicação n.º 965/2000.

44 Dec. de 16/09/1996, Gaygusuz c. Áustria, queixa n.º 17371/90. Em discussão estava uma lei austríaca que excluía os estrangeiros do acesso a determinadas prestações de desemprego. A distinção era baseada exclusivamente no facto de o recorrente não possuir a nacionalidade austríaca. O TEDH sublinhou que o mesmo havia contribuído da mesma forma que os nacionais para o sistema de segurança nacional, pagando atempadamente todas as contribuições, pelo que estaria na mesma posição que os nacionais no que toca ao gozo dos benefícios sociais.

45 Dec. de 27/11/2007, Lucsak c. Polonia, queixa n.º 77782/01. O TEDH considerou ser contrária à CEDH (por violação do art. 14.º, em conjunto com o art. 1.º do Protocolo n.º 1) a não admissão de um estrangeiro no sistema de previdência previsto para os agricultores.

46 Dec. de 18/02/2009, Andrejeva c. Letónia, queixa n.º 55707/00, em que mais uma vez o TEDH considerou existir uma violação do art. 1.º do protocolo n.º 1, combinado com o art. 14.º, no que toca às condições de acesso a prestações sociais por parte de estrangeiros.

47 Ver ainda as dec. de 31/03/2009, Weller c. Hungria, queixa n.º 44399/05, relativa a uma prestação de maternidade, e a dec. de 29/10/2009, Si Amer c. França, queixa n.º 29137/06, relativa a uma pensão complementar de reforma.

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frequência do ensino secundário a estrangeiros na Bulgária violava o art. 14.º, por ter como único fundamento a nacionalidade estrangeira dos alunos48. Nesta sequência, o TEDH afirmou

que os direitos sociais – quer contributivos, quer não contributivos – devem ser concedidos independentemente de considerações ligadas à nacionalidade.

Por seu turno, no caso Koua Poirrez, afirmou que a diferença de tratamento em relação a prestações sociais entre nacionais de países que tivessem assinado uma convenção de reciprocidade e os demais estrangeiros não assentava numa justificação objetiva e razoável49.

Esta decisão do TEDH foi extremamente importante e progressista, pois colocou em causa o critério da reciprocidade, tradicionalmente usado em matéria de estatuto e direitos reconhecidos aos estrangeiros. De facto, já o Comité dos Direitos Humanos das N.U. adotou uma posição mais tradicional quanto a este ponto, admitindo a compatibilidade do princípio da reciprocidade com o art. 26.º do PIDCP, por considerar que o mesmo fundava uma justificação razoável de diferença de tratamento50.

A jurisprudência do TEDH é também pioneira no que toca a distinções com base no estatuto administrativo do estrangeiro. No caso Niedzwiecki51 e no caso Okpisz52 os recorrentes eram

titulares de uma autorização de residência de caráter temporário, e por isso foram excluídos do benefício de uma prestação social, garantida apenas aos residentes permanentes. O Tribunal de Estrasburgo considerou que a distinção em causa – dependente do estatuto dos estrangeiros no território – não possuía uma justificação suficiente. Mais recentemente, porém, o TEDH veio relativizar esta jurisprudência, afirmando que pode ser reconhecido um interesse legítimo aos Estados em limitar o acesso a alguns direitos sociais, que constituam um encargo público, a imigrantes temporários ou em situação irregular, já que, de uma forma geral, estes não contribuem para o financiamento do mesmo53. Por outro lado, um direito

social poderá ser restringido a estrangeiros em caso de abuso de direito, i.e., quando os mesmos demonstrem que pretenderam imigrar apenas para beneficiar de direitos sociais existentes no país de acolhimento, numa espécie de «turismo social».

O Comité Europeu de Direitos Sociais, órgão de garantia da Carta Social Europeia também já teve, por diversas vezes, oportunidade de afirmar que determinados direitos, devido à sua fundamentalidade e à ligação com a dignidade humana, beneficiam todas as pessoas presentes no território, incluindo os imigrantes em situação irregular. Nesses direitos incluem- se o direito a assistência médica54 e o direito à educação55. Num caso de 2004, o Comité

analisou uma queixa de uma ONG que invocava que a França excluía a prestação de cuidados 48 Dec. de 21/06/2011, Ponomaryovi c. Bulgaria, queixa n.º 5335/05.

49 Dec. de 30/09/2003, Koua Poirrez c. França, queixa n.º 40892/98. Em causa estava a negação a um estrangeiro do direito a uma prestação social por incapacidade para o trabalho. O facto de a mesma não se basear num regime não contributivo não foi considerado motivo suficiente para justificar a distinção. Essa jurisprudência foi reafirmada na dec. de 18/02/2009, Andrejeva c. Letónia, queixa n.º 55707/00, e na dec. de 08/04/2014, Dhahbi c. Itália, queixa n.º 17120/09.

50 Dec. de 23/07/1997, Oord c. Holanda comunicação n.º 658/1995. 51 Dec. de 25/10/2005, Niedzwiecki c. Alemanha, queixa n.º 58453/00. 52 Dec. de 25/10/2005, Okpisz c. Alemanha, queixa n.º 59140/00. 53 Dec. de 21/06/2011, Ponomaryovi c. Bulgaria, queixa n.º 5335/05.

54 Dec. de 08/09/2004, International Federation of Human Rights Leagues c. França, queixa n.º 14/2003. 55 Dec. de 20/10/2009, Defence for Children International c. Holanda, queixa n.º 47/2008.

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médicos a filhos de imigrantes em situação irregular, à exceção do tratamento em casos de emergência ou de ameaça à vida. O Comité referiu que a Carta Social Europeia, enquanto instrumento destinado à proteção de direitos humanos, devia ser interpretada como um «instrumento vivo», de acordo com os seus fins de promoção da dignidade humana, e da igualdade e solidariedade. No caso, o Comité considerou que direito em causa era especialmente ligado ao valor da dignidade humana. Por outro lado, afirmou que quaisquer restrições deviam ser interpretadas de forma estrita. Assim, concluiu que a legislação em causa era contrária ao art. 17.º da Carta, que consagra o direito da criança à proteção do Estado56. A

referência à dignidade humana permitiu, assim, ao Comité contornar o âmbito de aplicação da Carta, baseado na reciprocidade. Note-se, contudo, que o Comité considerou que nem todos os direitos consagrados na Carta são suscetíveis de serem estendidos aos imigrantes em situação irregular. No que toca ao acesso a cuidados médicos por parte dos estrangeiros adultos em situação irregular, o Comité considerou que não tinha existido violação da Carta, uma vez que os mesmos podiam aceder a alguns tipos de assistência médica, após decorridos três meses de residência, e que todos os cidadãos estrangeiros podiam obter tratamento em situações de emergência.

Por outro lado, nas conclusões gerais de 2011, o Comité referiu que o acesso à educação é essencial para a vida e o desenvolvimento de todas as crianças, e que a recusa do acesso a esse direito agrava a vulnerabilidade das crianças em situação irregular. Assim, sublinhou que as crianças, independentemente do seu estatuto de residência, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação pessoal do art. 17.º, n.º2, pelo que os Estados-Parte estão obrigados a assegurar que as mesmas têm sempre acesso efetivo à educação57.

Por fim, no caso Defence for Children International c. Holanda, o Comité analisou o caso de uma legislação que privava as crianças em situação irregular do direito à habitação e de outros direitos previstos na Carta58. O Comité considerou que o despejo de pessoas em situação

irregular deveria ser sancionado, por colocá-las em situação de sem-abrigo, contrária ao respeito pela dignidade humana. O Comité referiu ainda que a Carta devia ser interpretada à luz dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

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