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Mapa 2. Distribuição hierárquica das vias públicas da cidade de Salvador, 2010.

II. A CULTURA OCUPACIONAL E O ORDENAMENTO RACIONAL DA CATEGORIA

2.4 O carro como signo de status social e identidade profissional

A equação é simples: motorista com táxi torna-se taxista. Portanto, sem carro não há taxista. O carro de passeio incrementado com cores padronizadas, taxímetro e luminoso é universalmente identificado como transporte individual de pessoas – o táxi. Equipamento essencial no reconhecimento da identidade profissional pela sociedade. O táxi atribui ao taxista a condição de expert na habilidade de conduzir o veículo carro e transportar pessoas, deslocando-se pela cidade.

O carro, além de ser objeto essencial para o exercício do trabalho do motorista de táxi, acumula a noção de signo de fetiche mercadológico, de afirmação da masculinidade, status econômico e de poder. Tantos atributos vinculados a esse equipamento possibilitaram compreender por que ele foi o propulsor do desenvolvimento do setor industrial. Tornou-se uma verdadeira vedete da revolução na indústria de produção em massa, sendo Henry Ford considerado o herói do início do século XX ao criar seu primeiro carro, em 1903. O visionário da indústria automobilística inaugurou novas tecnologias e modelos de organização de trabalho (fordismo), influenciando no modo de vida das populações (BEYNON, 1985; CORIAT, 1994).

Acelerar era a máxima daquele momento frenético, quando a população se sentia cada vez mais próxima da possibilidade de adquirir um automóvel. O sistema de transporte explode de demanda, e os incrementos foram diversos e modernos. A modernidade traz os carros para os chofeurs – antes condutores de carruagens, charretes. Aos poucos, as charretes e carruagens deram lugar aos carros de praça automotivos.

A partir do século XX, os automóveis passaram a povoar as fantasias de homens, em sua maioria os condutores desse veículo. O automóvel, aos poucos, foi se transformando em símbolo do status social. O motorista agrega elegância e poder em conduzi-lo. Os modelos são cada vez mais sedutores, seja pelo design ou pela potência.

O carro novo, e mais moderno, passou a ser objeto de desejo das classes sociais altas e, aos poucos, da maioria da população, independentemente do estrato social. Ter um carro novo e possante é considerado como símbolo de status financeiro e de ascensão social.

“Eu gosto de carro, toda vida gostei. Sinto-me bem dirigindo e dirijo bem. A gente também fica mais livre, não é? Quando não estou fazendo corrida, fico cuidando do carro: limpo, ajeito as coisas. Às vezes, ajudo um colega a fazer uma reparaçãozinha, entendo um pouco de motor e elétrica, distraio a mente fazendo isso.” (A.J., 56 anos, taxista).

Naquele momento, nasce a figura do chofer de carro de praça, que, alguns anos depois, definitivamente, se tornariam o motorista de táxi. O carro, nesse contexto, agrega significados sociais e culturais.

Para o motorista de táxi, o carro adquire uma distinção, provavelmente para garantir a relação com a atividade laborativa. Entre os motoristas de táxi há uma clara distinção entre o “carro” e o “automóvel”, sendo verificado entre os entrevistados e confirmado por Rocha (2004). O primeiro adquire o significado de fonte de renda, sustento, meio de trabalho, enquanto o “automóvel” está articulado com a função de locomoção própria, e da família, fora da jornada de trabalho. Então, para os taxistas, o veículo passa a ter dois significados a partir das funções que são atribuídas ao trabalho e à vida doméstica, pessoal e de lazer.

Tanto no estudo realizado por Rocha (2004) quanto nas entrevistas realizadas com motoristas de táxi em Salvador, foi evidenciada a existência de significado do carro por uma parcela de trabalhadores como lugar de “moradia”. Essa situação foi relatada por três motoristas de táxi que revelaram conhecer colegas que têm o carro como residência, motivados por dificuldades econômicas, sendo que a maioria tem endereço residencial fixo, porém somente voltam para casa uma vez por semana devido a distância e à necessidade de captar recursos.

“Tem colega aí que chega a morar no carro. Às vezes é porque tá pagando a prestação do carro e aí tem que trabalhar duro. Outros é porque moram longe, têm carro locado, aí a diária é cara, não dá pra todo dia ir pra casa” (N.E., 56 anos, taxista).

Motoristas de táxi mantêm dentro do carro travesseiros, cobertor, toalha, mala com roupas, material de higienização corporal, copo, xícaras, garrafa térmica, dentre outros objetos e utensílios que revelam a condição do carro transformar-se em

residência. Um deles mencionou que, quando estava iniciando na profissão, “residiu” dentro do carro, pois havia comprado o táxi com o dinheiro da venda da casa onde morava. Pessoas em situação semelhante são encontradas nos estoques (estacionamentos de táxi) do Terminal Rodoviário de Salvador e no aeroporto. Os taxistas que vivem essa realidade dificilmente a revelam, sendo o silêncio compreendido como sentimento de “vergonha” pela condição que evidencia precariedade das condições econômicas e estilo de vida.

“Tem colega que mora no estoque da rodoviária, pois lá tem tudo. Tem lugar para o carro ficar seguro e na fila pra uma corrida, tem policiamento, tem comida, banheiro e sanitário. Ali dá pra viver. E dorme dentro do carro” (N.E., 56 anos, taxista)

As ruas passam a ser, para alguns motoristas de táxi, uma opção de moradia diante das dificuldades econômicas. Importante destacar que a literatura que trata dos processos de exclusão social aponta a presença de trabalhadores/moradores de rua, explicitando a precarização das condições de trabalho conjugada com crises financeiras, processos de desvinculação, dando lugar a rearranjos dos grupos sociais e resultando em experiências diferenciadas de exclusão (CASTEL, 1998; ESCOREL, 2000; SAWAIA, 2002). Com isso, as ruas não têm sido apenas lugar de loucos, mendigos, doentes, mas passa também a ser opção de moradia de trabalhadores que enfrentam condições econômicas adversas, o que inclui, mesmo que temporariamente, os motoristas de táxi.

A situação de excesso de táxis verificada nas capitais e a facilidade na aquisição de automóveis por uma camada cada vez maior da população têm sido apontadas por taxistas como motivo da precarização das relações de trabalho devido ao aumento da competitividade e redução da faixa de rendimentos nessa profissão. Aliado a esses fatos está o crescimento do transporte clandestino e ainda o aparecimento de concorrentes considerados “cruéis” – os mototaxistas presentes nas cidades do interior ou nos bairros periféricos na cidade de Salvador.

“Se não tiver um controle, eles vão invadir a nossa praça com serviço ruim, sem conforto, mas muito mais barato. Nesses bairros como Cajazeira, a gente já vê eles rodando, mesmo que de forma irregular. E fazem uma corrida por R$ 2. Se chega aqui no centro, vai arrasar a gente” (A.J., 56 anos, taxista).

Essa não é uma opinião unânime entre os taxistas. Alguns não entendem os mototaxistas como concorrentes, pois acreditam que a clientela que utiliza esse serviço não costuma recorrer ao taxista. As camadas popular e de baixa renda são os

consumidores desse serviço. Só recorrem ao táxi quando suas necessidades não podem ser supridas numa motocicleta. Por outro lado, a relação destes profissionais nas ruas da cidade não tem sido amistosa, pois os motociclistas são considerados ousados e com grande capacidade de causar acidentes no trânsito.

O carro também estabelece uma interação com os usuários, pois a aparência, a higiene e o conforto podem ser considerados como atributos de confiabilidade. Motoristas com a intenção de prestar serviço que conquiste a clientela disponibilizam equipamentos e materiais de entretenimento para o passageiro. Os investimentos podem variar de acordo com as características dos passageiros ou clientes, e o poder aquisitivo do taxista. Revistas, jornais, som ambiente, aparelho de DVD, com DVDs musicais, televisão, carro limpo e perfumado, acompanhados por boa conversa, podem fazer clientela. Para M.J, (56 anos, taxista) além de beneficiar a clientela, torna o ambiente de trabalho mais agradável. É possível perceber que os investimentos têm a haver com o gosto do proprietário do táxi. Como afirma um deles: “Ah, sempre gostei de ler desde a

época que vendia jornal, agora coloco pro cliente umas revistas e livros para ir distraindo” (A Tarde, “Alvará custa R$ 60 mil”, 27.04.2008. Entrevistado: Rogério

Duarte, 41 anos, taxista).

O carro tem função importante na estratificação da categoria que adota uma hierarquia de poder aquisitivo ao motorista de táxi a partir do modelo, ano e condição patrimonial do carro que ele porta. Os modelos dos táxis especiais são carros considerados de luxo para atender às exigências, ao mesmo tempo em que são considerados como top na hierarquia da categoria. Enquanto que motoristas de táxis clandestinos na região suburbana trabalham com carros com muitos anos de uso, alguns com péssimas condições de conservação, modelos populares e antigos. São considerados em última posição na hierarquia de status econômico e de poder.