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Mapa 2. Distribuição hierárquica das vias públicas da cidade de Salvador, 2010.

II. A CULTURA OCUPACIONAL E O ORDENAMENTO RACIONAL DA CATEGORIA

2.1 Perfil dos trabalhadores e aspectos da identidade social

A categoria dos taxistas forma um mosaico que favorece a construção da identidade social destes trabalhadores. São em maioria do sexo masculino, casados, de cor parda, com idade que varia entre 21 a 67 anos, com escolaridade de ensino médio, têm histórico de trabalho relacionado à profissão de motorista, apesar de haver inserção e origem em outras ocupações. São vistos pela própria categoria e por usuários como “sem educação” e para outros como solidários, conselheiros, contadores de histórias e de “causos”; para uns, “bom papo”; para outros, intrusos. Enfim, uma categoria marcada pela heterogeneidade, como veremos no decorrer deste trabalho.

Em relação à cor da pele, 60% dos entrevistados se declaram de cor parda e 40% negra. Na pesquisa realizada por Paes Machado e Noronha (2001), dos 527 entrevistados, 52,9% eram de cor parda e 25,2% de cor negra, revelando uma supremacia étnico-racial entre os motoristas de táxi em Salvador, o que coincide com o perfil racial da população da cidade.

Encontramos taxistas com 23 anos e outros com 66 anos, porém a predominância está na faixa etária entre 30 a 59 anos. Esse perfil assemelha-se ao encontrado por Abreu (2002), em Porto Alegre, e Stenning (1995), no Canadá e nos Estados Unidos (www.taxi-1.org, 2001).

Alguns taxistas admitem atuar em outras ocupações, como funcionário público, bancário, comerciante, vendedor, policial, vigilante, além de estudantes. Divide a jornada diária em duas atividades. Os que têm emprego fixo (funcionário público, policial, bancário) consideram o táxi como “bico”. Há os que consideram o táxi como atividade tão importante quanto à outra, argumentando que, em determinados períodos do ano, conseguem “faturar” mais como taxista, e em outros, com a outra atividade (vendedor de imóveis, comerciante, por exemplo). “Quando a praça está boa, dá pra

pagar as despesas do mês” (B.E., 55 anos, taxista).

A escolaridade variou entre aqueles que possuem apenas o ensino fundamental, outros com ensino médio completo (a maioria) e dois dos entrevistados com nível superior. Um deles atribui a opção pela profissão à baixa escolaridade. Tem sido recorrente taxistas justificarem que estão na profissão, mas que possuem escolaridade, como se existisse uma relação direta entre serem taxistas e terem baixa escolaridade.

“Eu sou taxista, mas tenho estudo. Não sou assim ignorante, eu tenho cultura". (A.D.,

45 anos, taxista). Analisando os discursos dos taxistas em artigos de jornais, percebe-se que a imagem deste profissional está associada a comportamento inadequado, tido como mal educado, intolerante e mal humorado, o que se pode atribuir à baixa escolaridade.

A partir da década de 1990, iniciou-se um movimento nas capitais voltado para treinamentos específicos destinados aos motoristas de táxi. O objetivo é melhorar a qualidade dos serviços prestados, atender às exigências da clientela e contribuir para modificar a imagem que a sociedade tem desse profissional. A iniciativa é resultado da exigência do próprio mercado, que passa a denunciar comportamentos inadequados. Além disso, empresas de médio e grande porte e o setor de turismo vêm solicitando que o taxista aprenda outras línguas para melhor atender e informar os visitantes.

“Os profissionais desta área estão se modificando. Anos atrás, bastava apenas saber dirigir e conhecer a cidade. Hoje, necessitamos que os profissionais tratassem os passageiros como clientes. Porque o carro é uma empresa. Tem gente aí que fez um investimento às vezes muito mais alto do que uma microempresa. Tem que tratar o cliente garantindo conforto e bom atendimento, seja a corrida pequena ou grande. Isso tem ajudado a mudar a imagem que fazem dos taxistas, de pessoas mal- encaradas ou sem educação” (F.A., 60 anos, taxista).

O comentário do motorista de táxi evidencia que existe uma imagem cultivada como a de um trabalhador desprovido de instrução e comportamento inadequado no exercício profissional. Porém, existem relatos que divergem dessa opinião quando apontam que os taxistas eram profissionais que usavam “paletó e gravata” e muito discretos, sendo esta vestimenta modificada devido ao clima quente e à quase inexistência de carros com ar condicionado (ADETAX-SP, 2007). No contraponto da imagem de “sem educação”, muitos relatos afirmam que os taxistas atuam no papel de conselheiros, “psicólogos”, dando opinião e auxiliando o passageiro a tomar decisões adequadas.

“Tem gente que entra no táxi e conta a vida toda. Reclama do marido, fala da mulher, queixa-se do patrão, fala das dificuldades financeiras. Às vezes pedem conselho, choram. A gente fica dando uma de “psicólogo”. Tem gente que chega desesperado e, depois da conversa, sai mais calmo, já estamos acostumados com isso” (L.U., 45 anos, taxista).

Em entrevista a passageiros, fica patente a fama dos taxistas como conversadores, contadores de histórias, formadores de opinião, respeitados como “cabo

eleitoral”. Muitos deles fazem discursos político-partidários defendendo geralmente

grupos que auxiliam a categoria e criticando os que tomam decisões contrárias a ela. Visitando sites que tratam sobre motoristas de táxi, encontramos um dedicado “aos causos de taxistas” onde estão catalogadas variadas crônicas escritas por estes trabalhadores.

Para a vizinhança do ponto ou local onde frequenta o taxista durante os intervalos (almoço, lanche, etc.) são considerados como solidários, amigos, conversadores, mas também desconfiados – ficam atentos ao movimento das pessoas em sua volta. Uma senhora, dona de restaurante próximo a um ponto de táxi no Centro de Abastecimento, informa que os taxistas auxiliam na prevenção de situações indesejadas e inadequadas da clientela e possíveis agressores.

“Prestam atenção a tudo. Um dia eu estava aqui trabalhando e entrou um sujeito, aí foi o taxista que me avisou e ele mesmo ficou de olho. Às vezes, faz comentário sobre as pessoas que frequentam o restaurante e recomenda ter cuidado. E eu agradeço a ele. Ofereço um lanche. Eles sabem tudo o que se passa na cidade. Quando eles chegam aqui, pergunto logo: quais são as novidades?”

2.2 “Clube do Bolinha”: Mulheres? Melhor não entrar

“Não tenho nada contra mulher ser taxista. Não sou machista, mas acho que não é profissão para mulheres. Aqui a gente pega pesado. Não tem conforto, fica na rua o tempo todo, sujeito [exposto] a tudo. E quando o carro dá defeito... Eu não aconselho” (L.I., 46 anos, taxista).

O mercado de trabalho dos motoristas de táxi é, predominantemente, um universo masculino. A atuação de mulheres atrás do volante é quase inexistente. O quadro difere de outras categorias profissionais, nas quais a inserção de mulheres é cada vez maior. Tal cenário levanta dúvidas sobre o controle da cultura masculina atrelada à profissão de taxista ou ao desinteresse feminino pela referida profissão (BERRY, 1997; ROCHA, 2004).

masculino. Segundo a GETAX, representam 99% do total das licenças concedidas para motorista principal e auxiliar. O banco de dados do ISC referente à pesquisa com 527 motoristas de táxi em Salvador registra que, do total de entrevistados, 99,4% são do sexo masculino. Esse perfil de gênero é confirmado nos estudos realizados no Canadá (STENING, 1995), e nos Estados Unidos, NIOSH (1998). Estas informações revelam uma baixa inserção de mulheres nessa categoria, porém Rocha (2005) aponta que essa realidade tem mudado na cidade de Brasília, com a inserção cada vez maior das mulheres na profissão.

De acordo com os entrevistados, a baixa inserção das mulheres se dá pelas características da ocupação, e atribui ser um “trabalho perigoso, arriscado” como principal motivo da pouca inserção de mulheres. Todos responderam que conhecem uma mulher taxista, mas que ela tem baixa participação na profissão e desenvolvem a atividade de motorista de uma clientela específica como transportar crianças, idosos, enfim, referem um trabalho com uma clientela que lhe garante maior proteção contra os

“perigos de estar na praça”.

“Elas não aguentam o rojão. Nem assenta muito [inadequado]. A gente às vezes fica assim na rua sujeito a tudo, a acidente, briga, roubos, assalto... E tem uma coisa, a mulher corre o perigo de pegar aí um marginal que pode fazer um mal, violentar [refere à possibilidade de estupro]. Ela esteja sozinha, não tem como se defender direito. Jamais deixaria uma filha ser taxista” (J.C., 64 anos, taxista).

Confirmando que os motoristas de táxi não veem as mulheres como detentoras de requisitos básicos para atender à demanda específica do dia-a-dia da profissão, um dos entrevistados revela que conhece uma mulher que ficou viúva de um motorista de táxi e resolveu assumir a profissão do marido, mas que realiza o ofício com uma clientela fixa.

Eles justificam que as “agruras” vividas nas ruas da cidade, como o risco de violência e acidentes de trânsito, a má conservação das vias públicas, as necessidades de conhecimento de mecânica do carro, força física, o manejo no contato com pessoas desconhecidas (passageiros) tornam a profissão imprópria para as mulheres. “As

mulheres não foram criadas para isso, isso é coisa mais para homem mesmo” (G.I., 44 anos, taxista).

Foram entrevistadas três motoristas de táxi do sexo feminino. Uma delas, que trabalha em ponto de táxi de bairro, apresenta linguagem, modo de vestir, traços físicos

e hábitos que se assemelham aos dos homens. Costuma jogar dominó, apresenta comportamento curioso diante do carro, mostra interesse e satisfação em emitir opinião sobre problemas mecânicos. Porém não ficou claro se a taxista tem um comportamento que associamos a afirmação de gênero (masculinidade) ou se desenvolveu esse comportamento como forma de ser aceita no grupo. Relata que tem formação e que já trabalhou como auxiliar de enfermagem, mas sofreu muito na profissão. Como tem irmãos e primos taxistas, resolveu sair do emprego e comprou um táxi. Ela trabalha das 7 às 19 horas, no máximo. Disse que já chegou a trabalhar até às 22 horas, mas não cumpre mais essa jornada devido ao risco de violência. Frequenta ponto fixo no bairro de Vila Laura, evita pegar passageiro na rua. Passou por duas experiências que ela considera como tentativas de assalto, mas que não se concretizaram porque ela recusou a corrida.

“Eu me sentia muito sofrida quando trabalhava como enfermeira. Um dia conversei com minha mãe, e meu irmão me orientou primeiro testar com o táxi dele para ver se dava certo. Então, trabalhei três meses no táxi dele e resolvi comprar o meu. Não me arrependo. O pessoal do ponto me trata bem. Tudo tranquilo” (E.L., 39 anos, uma taxista).

A outra mulher entrevistada era uma taxista que trabalha com clientela fixa, em sua maioria. Trabalha no táxi desde que o marido faleceu. O táxi tornou-se oportunidade imediata de trabalho. Ela está associada a uma central de chamada de táxi. Usa fardamento, mas mantém acessórios femininos e diz que faz questão de usá-los. Relata que dificilmente vai para a fila do ponto do shopping Brotascenter, pois possui clientela que solicita seu serviço, tanto pela central quanto por celular. Trabalha somente entre as 7 e as 17 horas porque, a partir das 18 horas, freqüenta curso preparatório para vestibular. Só trabalha aos domingos e feriados quando clientes solicitam. “Entrei na

profissão e gosto de conduzir as pessoas, mas penso que não é para toda a vida. Por isso vou estudar e ter uma profissão mais tranquila. Vou prestar vestibular para contabilidade” (E.D., 48 anos, taxista).

A terceira taxista tinha hábitos curiosos. O que chamou mais a atenção foi que ela passa 15 dias morando dentro do carro, sendo que, à noite, ela passa no estacionamento do Terminal Rodoviária. Ela dorme dentro do táxi. Informou que fez curso de economia e ficou desempregada. Como tem muitos parentes taxistas, resolveu entrar para a profissão que ela diz gostar, apesar dos problemas. Trabalha em dois pontos: o do Hospital Roberto Santos e o do Terminal Rodoviário. Quando começou a

entrevista, ela estava tranquilamente estacionada debaixo de uma árvore, fora da fila de táxi, em intervalo para descanso e arrumando alguns pertences pessoais. Ela estirava meias e as guardava no porta-luvas. No compartimento da porta do lado do motorista havia remédios, perfume, guardanapo, copo, garrafa térmica para café. No banco do carona, uma feira, ainda na sacola plástica, contendo produtos alimentícios. Além das meias, no porta-luvas fica uma bolsa contendo objetos de higiene pessoal. Não mostrou, mas informou que no porta-malas havia uma mala com roupas, sapatos, travesseiro, cobertor, lençol, prato, copo, talheres. Enfim, o táxi assume o lugar de moradia, uma realidade frequente entre taxistas locatários. A taxista contou que tem uma casa na Ilha de Itaparica. A filha dela mora lá, e ela vai para casa a cada 15 dias. Quando volta para casa, fica uma semana sem trabalhar.

“Eu gosto de dirigir, de ter carro. Não gosto muito de conversar com clientes, eles enchem a gente de problema. Prefiro ficar calada. Os colegas, nem dou bola para eles. Fico aqui na minha, não incomodo ele e nem eles me incomodam. Prefiro ficar dentro do meu carro. Aqui eu durmo, arrumo as coisas, assisto DVD. (...) Só vou ficar um tempo pra ver se me aposento, estou pagando o INSS. É muito cansativo.” (D.I., 52 anos, taxista).

Interessante observar que, nos dados informados pela GETAX, não constam número diferenciado de homens e mulheres na profissão, pois, segundo os representantes do órgão, não se dispõe dessa informação. O que nos faz suspeitar que até mesmo os órgãos regulatórios não considerem a inserção da mulher na profissão. O Sinditaxi não informou números precisos, mas uma estimativa de 1% dos associados é composta por taxistas do sexo feminino. Entretanto, cada taxista entrevistado conhece pelo menos um taxista do sexo feminino.