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Mapa 2. Distribuição hierárquica das vias públicas da cidade de Salvador, 2010.

II. A CULTURA OCUPACIONAL E O ORDENAMENTO RACIONAL DA CATEGORIA

2.3 Ritos de iniciação na profissão: os “paraguaios na área”

No processo de inserção e escolha da profissão, existem trabalhadores que têm como principal explicação a tradição familiar, passando de pai para filho, ou entre parentes próximos, porém não sendo atribuído como escolha profissional, mas como oportunidade.

“Eu fiquei desempregado e não estava encontrando nada melhor. Meu pai tinha um táxi. Então comecei dividindo com ele. Eu trabalhava um turno e ele outro. Melhorou a renda para os dois e consegui, com a ajuda dele, comprar o meu próprio táxi. Hoje ele não trabalha mais na profissão, aluga o alvará e o carro. Eu gosto de dirigir e já tenho uma clientela boa, que era do meu pai e outras pessoas que conquistei. Tentei outra profissão, fui comerciante, não deu certo, voltei pra praça. Vou ficar por aqui mesmo” (M.N., 43 anos, taxista).

Há relatos dos que ingressaram na praça por falta de qualificação profissional para outras áreas, outros como opção para enfrentar a situação de desemprego, e ainda aqueles que dirigem táxi para complementar a renda mensal. Estes últimos são empregados de órgãos públicos ou privados que encontram nessa profissão condições favoráveis para complemento de rendimento financeiro mensal. A presença de aposentados que encontram na ocupação a possibilidade de complementar a aposentadoria, também foi verificada. Os taxistas com mais de 60 anos são aposentados ou trabalhadores não contribuintes de qualquer tipo de previdência social que se mantêm ativos para garantir o sustento próprio e de familiares.

Segundo Rocha (2004) e GETAX, profissão de motorista de táxi tem grande rotatividade, associada à flexibilidade de horário de trabalho, com a possibilidade de realizar outros projetos paralelos, como estudo e migração para outras profissões. Vale citar como exemplo o trabalho de Eduardo Campos Rocha. O próprio Eduardo Campos Rocha, autor da pesquisa intitulada “Estranhos Encontros”, foi motorista de táxi no tempo em que era estudante do curso de Antropologia. Atualmente é funcionário público do Ministério da Agricultura. Ele faz parte de um grupo de taxistas que exerceu a ocupação com objetivo de transitar para outra profissão, sendo aquela necessária para viabilizar financeiramente a concretização dos projetos.

B.L (46 anos, taxista), ex-comerciante, ingressou na carreira de motorista de táxi há dois anos e afirma que o processo de inserção na categoria passa por várias etapas. Inicialmente, ele conta que é preciso chegar com algum conhecido dos taxistas para possibilitar o acolhimento pelo grupo ou pelo menos não ser hostilizado. A inserção se dá de forma processual. O novato, para ser aceito, tem que ser recomendado por um dos membros do grupo que tem uma boa reputação junto aos colegas. A aceitação, mesmo com recomendação, não é imediata. O grupo permanece avaliando o novato por um período. Será considerado como membro do grupo somente após ter atendido a expectativa dos colegas veteranos.

Os elementos que se traduzem em critérios de acolhimento pelo grupo são referentes a comportamentos éticos, solidários e temperamento do novato em relação aos colegas, os passageiros e a vizinhança. Não aceitam comportamento competitivo desleal do novato, prejudicando o veterano. É imperdoável furar fila, envolver-se em atritos entre colegas, passageiros e com a vizinhança.

O taxista que não possui recomendação encontra muitas dificuldades para inserção nos pontos de táxis. Estes são regulamentados pela GETAX, órgão público responsável, permitindo que todo e qualquer taxista possa frequentar o ponto que encontre vaga e que lhe convenha. Na prática diária, é como ser aceito por um empregador que vai definir se contrata ou não o empregado. Utilizando ora mecanismos sutis, ora agressivos, os veteranos do ponto procuram expulsar o estranho colega. É que o novato representa divisão do mercado de trabalho e aumento da competitividade.

Uma das medidas adotadas para expulsar o novato consiste na informação de que o ponto tem uma organização interna e que, para participar desse grupo, é preciso arcar com despesas para manutenção. A finalidade, como se vê, é dificultar a entrada do novato, que passa a receber tratamento hostil, sendo chamado de “paraguaio”. O apelido equivale a chamá-lo de mercadoria estrangeira, contrabandeada, não legalizada, portanto não aceita pelo grupo. Além disso, a palavra tem uma referência pejorativa, associando a objetos falsificados.

Quando o novato resiste aos maus-tratos, os taxistas veteranos chegam a cometer atos de vandalismo, agressão verbal, gestual e, não tendo sucesso, podem chegar a agressões físicas. Em 2007, o jornal A Tarde registrou conflito entre taxistas em um ponto motivado pelo controle de um grupo e resistência de alguns taxistas que não aceitaram a expulsão da fila, o que culminou em agressão física e intervenção da polícia para reprimir a briga. Segundo a GETAX, pontos de táxis, principalmente os turísticos, são campeões de reclamações e conflitos entre taxistas.

Rocha (2004) registra que a sua inserção na profissão passou por vários episódios que demandavam tolerância. Contou que, quando entrou numa fila de espera, observou que um táxi atrás do seu, sem nenhum pudor, furou a fila, pegou o cliente e ainda acenou para ele. Experiências negativas se repetiram em outros pontos de táxi. Uma delas foi quando deixou o táxi no final da fila e foi até uma lanchonete. Quando

voltou, encontrou um dos pneus do carro vazio. Ele perguntou aos colegas de fila sobre o que tinha ocorrido e todos responderam rispidamente que não tinham visto nada. Aos poucos, ele percebeu a necessidade de conquistar colegas que pudessem orientá-lo sobre como se comportar diante dessas adversidades.

B.I. (46 anos, taxista) afirma que só conseguiu fazer amizade com o grupo depois que um velho conhecido o levou até a parada e o apresentou para os colegas como um parente. Desse dia em diante, compreendeu que, para ser aceito na profissão, é importante ter pessoas conhecidas que legitimem a inserção enquanto pessoas confiáveis. Os iniciantes sofrem com as “pegadinhas”, agressões e hostilidades dos colegas, mas, quando estabelecem relação de confiança no grupo, os conflitos vão diminuindo.

“É engraçado... no início, queria desistir. Achei uma sacanagem daquele pessoal com a cara fechada pra mim, mas agora eu entendo a desconfiança e o desconforto. Acho que já estou até sentindo assim, também. Quando chega alguém novo fico desconfiado e me sinto um pouco ameaçado. Não conheço ainda ele e nessa profissão tem de tudo. A praça está difícil. Mais um concorrente não é agradável. Querendo ou não, a gente quer ficar indiferente e impor poder naquela. Depois muda e fica todo mundo colega, mas vai depender do comportamento de cada um que está chegando” (B.I., 46 anos, auxiliar).

Entre os taxistas em situação de clandestinidade os ritos de iniciação dos novatos somente ocorrem com indiferença pelos veteranos que compreendem como meros concorrentes. Os que lideram a praça (conseguem mais trabalho) são aqueles que têm mais tempo no ponto. Geralmente, os mais velhos de ponto não obedecem à fila, ao menos se posicionam nela. A tática deles é deixar o carro no estacionamento ou próximo à fila de táxis clandestinos e ir para dentro de um supermercado em busca dos clientes conhecidos, garantindo a corrida. Somente obedecem fielmente à fila os novatos ou aqueles que não conseguiram conquistar uma clientela.

A chegada é marcada pela desconfiança. A permanência no ponto e a inserção do novato no grupo dependerão da interferência de um dos membros que lhe atribuirá propriedades de confiabilidade (GAMBETTA e HAMMIL, 2005). A confiança do grupo é uma conquista gradual. Mesmo que o taxista tenha sido referendado pelo colega veterano, precisa mostrar atributos que confirmem a sua reputação. Agir usando força e resistência contra a hostilidade do grupo pode garantir a permanência do novato na fila, mas não garante a participação no grupo. Dessa forma, as relações tendem a desencadear frequentes conflitos. Dessa maneira a categoria regula a entrada e pode

contribuir para a saída daqueles que não encontram meios práticos de manter-se na profissão. O que leva a crer que ser taxista depende muito mais de saber agir e interagir no complexo ambiente de trabalho.