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2 A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL

2.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA IRREGULARIDADE E DA INFORMALIDADE

No tempo do Brasil Colônia, o ordenamento jurídico ditado pelas ordenações regrava o regime de concessão de terras sob a forma de sesmarias, cujo regime dava-se pela concessão de domínio feita pela Coroa Portuguesa ao sesmeiro, condicionada à ocupação efetiva e ao uso produtivo da terra. Nos núcleos urbanos o sistema era semelhante, porém com o nome de datas. A delimitação geográficas de datas e sesmarias era muito imprecisa, dando margem também à posse simples de áreas contíguas.

Com o advento da Lei de Terras Devolutas do Império em 1850, impõe-se a compra como único modo de aquisição de terras. Segundo Betânia de Moraes Alfonsin86, embora os sistemas tivessem como base a ocupação efetiva de terras, apenas as sesmarias passavam ao sistema oficial e formal de titulação de terras, enquanto a posse passava pela mera posse, sem direitos. Essa dualidade, segundo a autora, perpassa toda a história urbana brasileira. Também discorrendo sobre o assunto, o urbanista João Sette Whitaker Ferreira relata:

A terra ainda não tinha valor comercial, mas essas formas de apropriação já favoreciam a hegemonia de uma classe social privilegiada. A Lei das Terras, de setembro de 1850, transformou-a em mercadoria, nas mãos dos que já detinham “cartas de sesmaria” ou provas de ocupação “pacífica e sem contestação”, e da própria Coroa, oficialmente proprietária de todo o território ainda não ocupado, e que a partir de então passava a realizar leilões para sua venda. Ou seja, pode-se considerar que a Lei de Terras representa a implantação da propriedade privada do solo no Brasil. Para ter terra, a partir de então, era necessário pagar por ela.87

Portanto, a segregação social do ponto de vista do uso e ocupação do solo para fins de moradia e trabalho tem origem no Império, ganha força na República; e, com o Código de 1916, marca a formação da cidade capitalista.

As favelas especialmente, símbolo da segregação e desigualdade na cidade, surgem no final do século XIX e hoje estão presentes em 80% das cidades brasileiras entre 100 e 500 mil

86O significado do Estatuto da Cidade para os processos de regularização fundiária no Brasil. In: ROLNIK, Raquel et al. Regularização fundiária sustentável - conceitos e diretrizes. Brasília: Ministério das Cidades, 2007. p. 76.

87 A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Universidade São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2005. Disponível em:

habitantes.88 Elas marcam a fuga do cortiço e a das construções coletivas centrais, combatidas pelo Poder Público vigente no início da década de 1920. Elas marcam também a fuga do aluguel exorbitante, além da falta de condições de fixação no campo. As favelas foram se instalar em locais sem infraestrutura, desagregados da cidade. A cidade, por outro lado, e com o passar do tempo, expandiu-se para além e ao lado das favelas. Logo, de localização periférica, a favela vai se tornar parte irregular e clandestina da cidade legal.

Mas há outros fatores, além da baixa renda, que acirraram a informalidade e a segregação dentro da cidade, fatores como a ultrapassada legislação urbanística, promotora de exclusão territorial na forma de planejamento urbano, que reiteradamente acabou por definir territórios dentro e fora da lei, configurando regiões de cidadania plena e regiões de cidadania limitada89. Os exemplos são os loteamentos irregulares e informais que há anos estão nesta

condição de “ilegais”, e as áreas que ao longo dos anos receberam investimentos e equipamentos urbanos que proporcionaram qualidade de vida para seus moradores, mas continuam ilegais.

A estes fatores de segregação somam-se os processos de renovação dos centros urbanos que ocorreram e ainda ocorrem simultaneamente às valorizações imobiliárias, e que também vão contribuir para o aumento do valor do aluguel, desapropriações e despejos, como consequência, a exclusão da população local. Não é novidade este movimento que empurra populações para as periferias das cidades e muitas vezes para áreas impróprias à ocupação para fins de moradia. Neste particular, a ocupação em áreas protegidas ambientalmente é o refúgio da população desassistida que foi chegando nos anos da década de 1980. Desprezadas pelo mercado imobiliário, as áreas de proteção ambiental foram gradativamente ocupadas por favelas e por loteamentos informais e irregulares. Da parte do Poder Público, remover as moradias em áreas protegidas significa proporcionar o direito em outro lugar, mas como as políticas habitacionais são insuficientes, tolerar, abandonando à própria sorte e até mesmo criminalizar, foi a opção política adotada.

88Dados do IBGE, 2000.

89ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, 2003. p. 13.

Ermínia Maricato confirma e ilustra bem a questão exposta ao relatar que

A ausência de alternativa habitacional para a maioria da população pobre nessas grandes cidades brasileiras teve como uma das conseqüências a ocupação irregular e predatória ao meio ambiente urbano. É nos lugares ambientalmente frágeis, “protegidos por lei” desprezados pelo mercado imobiliário, que proliferam os loteamentos irregulares, as ocupações informais e favelas. Nesse contexto, a questão ambiental urbana é antes de tudo um problema de moradia e de política habitacional, ou mais precisamente, da falta ou insuficiência desta.90

Cabe lembrar, mesmo de passagem, o que foi feito em nome da política habitacional de interesse social nas últimas décadas. Entre as décadas de 1960 e 1980 as soluções habitacionais estavam sob a responsabilidade do Banco Nacional de Habitação, cujo lastro correspondia aos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço do Trabalhador e recursos das Cadernetas de Poupança. A partir de uma gestão ineficiente, o Banco não deu conta do seu papel, neste sentido, não resolveu os problemas habitacionais nas cidades e ainda promoveu mais segregação especial ao promover habitações de interesse social de baixa qualidade em locais completamente desprovidos de infraestrutura. Esta incapacidade fez com que os trabalhadores fossem resolver seus problemas habitacionais por conta própria.

Logo, e ao longo dos anos, a falta de alternativa habitacional, agravada pela falta de política habitacional pública de interesse social – implantada pontualmente, porém sem os recursos necessários, sem escala suficiente e sem participação democrática –, acabou por provocar a explosão da autoprodução habitacional informal, irregular, subnormal e de risco, embora não totalmente precária.

As ocupações para a moradia em áreas ambientalmente protegidas, sobretudo as faixas lindeiras aos cursos d‟água e áreas de proteção dos mananciais da região metropolitana, foram e são práticas comuns ante à falta de condições econômicas e sociais de trabalhadores que não conseguem acessar a moradia, seja como proprietários ou locatários, sem estarem privados de bens de consumo que lhes são básicos. As áreas de preservação permanente de fundos de vale, por exemplo, que são as faixas lindeiras aos cursos d‟água que desenvolvem-se em planícies ou várzeas, permanecendo secas nos períodos de estiagem e inundáveis nas estações chuvosas, são áreas desprezadas pelo mercado formal de habitação justamente pela incidência das inundações e pela delimitação de faixa de proteção permanente, são as APPs cuja proteção visa a manutenção da mata ciliar.91 Estas são a vegetação que margeia córregos, rios,

lagos e nascentes, cuja função é proteger estes cursos de água de assoreamento; manter a

90Moradia social e meio ambiente. Sinopses, São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 35, 2001, pág.54 91Este termo é também conhecido mata ripária; mata aluvial; veredas.

perenidade das nascentes e fontes; evitar o transporte de resíduos para os cursos de água; possibilitar o aumento de água e dos lençóis freáticos para utilização humana e controlar a temperatura, propiciando clima mais ameno.

Pela sua importância no equilíbrio ambiental, estas faixas de terra são protegidas pelas limitações impostas pelo Código Florestal de 1965, e sua degradação pode levar ao indiciamento de crime ambiental conforme a Lei federal nº 9.605/1998.

Estes padrões de assentamento habitacional são construídos informal e irregularmente e, se não trazem benefícios para seus moradores, também não são benéficos para a cidade porque não cumprem função social da propriedade e da cidade. Estes assentamentos precários são produzidos em áreas particulares, mas também podem ser produzidos em áreas públicas, com a conivência do Poder Público, como são as favelas e os núcleos habitacionais precários de infraestrutura.

A irregularidade e a informalidade assumem diversas tipologias. As tipologias mais comuns relativas aos parcelamentos do solo, seja de loteamentos ou desmembramentos, são os parcelamentos irregulares e os parcelamentos informais (ou chamados de clandestinos).

Os parcelamentos irregulares se caracterizam como loteamentos do solo urbano devidamente matriculados no registro de imóveis que obtiveram a aprovação do Poder Público municipal de seu projeto de implantação, mas não foram executados conforme apresentado, ou seja, os espaços públicos, viários e lotes não foram distribuídos conforme a planta e projeto aprovados, o que os tornou irregulares, impedindo o registro imobiliário.

Há também os loteamentos implantados anteriormente à Lei federal nº 6.766/1979 e não registrados no Cartório de Registro de Imóveis. A Legislação anterior, Decreto-Lei 58 de 1937, que será discutida adiante, exigia o registro ou inscrição dos loteamentos desde que destinados à venda a prestações mediante oferta pública. Com o advento da Lei federal nº 6.766/1979, muitos loteamentos aprovados na vigência do decreto não foram levados a registro, tornando-os irregulares.

Os loteamentos informais (ou clandestinos) são aqueles que, privados de registro na matrícula do Registro de Imóveis, não obtiveram nenhuma aprovação por parte do Poder Público municipal e surgem pela ocupação organizada ou mesmo espontânea de glebas inutilizadas ou gravadas por limitações e ante a ausência de fiscalização por parte do Poder Público.

Dentre os parcelamentos informais se destacam os assentamentos situados parcial ou totalmente em áreas de proteção permanente que não puderam ser regularizados pela Lei federal nº 6.766/1979 e os assentamentos em áreas de proteção e recuperação dos mananciais

que não puderam ser regularizados nos termos das Leis estaduais 898/1975 e 1.172/1976, inobstante tenham recebido melhoramentos de infraestrutura, a partir dos Programas Emergenciais estabelecidos pela Lei estadual nº 9.866/1997.

Nos parcelamentos informais também cabem os conjuntos habitacionais promovidos por órgãos ou instituições do Poder Público (com atribuição para realização de programas habitacionais) que, cabe relatar, foram construídos sem atendimento às exigências da lei de parcelamento do solo e da legislação municipal incidentes, sendo comum nestes assentamentos a falta de infraestrutura e falta do registro do empreendimento junto ao Registro de Imóveis competente.

Em vista deste quadro e seu inevitável agravamento, foi iniciado no Brasil – no início da década de 1960, intensificado na década de 1980 – um amplo movimento de reforma urbana disposto a propor o enfrentamento da situação degradante da habitação caracterizada pela irregularidade urbana e a exposição ao risco, resultando, inicialmente, em mudanças pontuais na legislação, culminando, nos anos seguintes, em importantes mudanças nas normas gerais, que geraram novos direitos à população moradora destas áreas irregulares e informais. Estes novos direitos são os direitos subjetivos à regularização fundiária, seja a partir de implantação de infraestrutura necessária e contenção de riscos, seja pela possibilidade de título e proteção jurídica da moradia. No subcapítulo seguinte pretende-se discutir as formas de exercício destes direitos, evolução da legislação e da ação de regularização fundiária como diretriz de política pública e seus principais instrumentos.