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4. A QUESTÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

4.3 O contexto nacional

4.3.1 A adesão do país ao GATT – Trips e à OMC, UPOV e CDB

O Brasil tem vinculação muito antiga com o tema propriedade intelectual por ter sido pioneiro na adesão, em 1885, à Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (CUP), de 1883, que até época muito recente constituiu-se no documento internacional que balizou a legislação nacional dos países signatários, em matéria de propriedade industrial.

A CUP estabeleceu parâmetros mínimos para harmonização de procedimentos concernentes à propriedade industrial e assegurou considerável liberdade para cada país- membro modular sua lei interna de acordo com seu grau de desenvolvimento tecnológico.

O cenário mundial mudou, radicalmente, com a aprovação do “Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights” (TRIPs) incluído como Anexo 1C da Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, assinada em Marraqueche, em 12 de abril de 1994.

Quando entrou em vigor o Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio – OMC, o GATT foi transformado na OMC.

No Brasil, o Congresso Nacional aprovou a Ata Final que incorpora os resultados da Rodada Uruguai pelo Decreto Legislativo n° 30, de 15 de dezembro de 1994. Posteriormente, o Chefe do Executivo promulgou a referida Ata, pelo Decreto n° 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Dessa forma, o país, ao ratificar a adesão ao documento principal, igualmente ratificou sua adesão a TRIPs.

O Acordo TRIPs se compõe de sete segmentos, dos quais vale destacar a Parte II denominada “Normas Relativas à Existência, Alcance e Exercício dos Direitos de Propriedade Intelectual” que dispõe, respectivamente, sobre: direito do autor e direitos conexos, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, topografia de circuitos integrados, proteção de informação confidencial e controle de práticas de concorrência desleal em contratos de licenças.

O item 27.3 “b” de TRIPs merece ser parcialmente transcrito para elucidar a abrangência da proteção que deve ser assegurada por todos os países que, como o Brasil, assinou e ratificou o mencionado acordo internacional.

Artigo 27. Matéria Patenteável.

1. Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção de produto ou processo, em todos os setores tecnológicos será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial 5* (5. Para os fins deste artigo, os termos ‘passo Inventivo’ e ‘passível de aplicação Industrial’ podem ser considerados por um Membro como sinônimos aos termos ‘não-óbvio’ e ‘utilizável’. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 4 do artigo 65, no parágrafo 8 do artigo 70 e no parágrafo 3 deste artigo, as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local da invenção, quanto ao setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente.

... ...

3. Os Membros também podem considerar como não-patenteáveis: ... ...

b. plantas e animais, exceto microrganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC.

A regra geral de TRIPs, portanto, é a proteção ampla, mediante patentes, de produtos e processos, em todos os setores tecnológicos, facultando a utilização de formas específicas de proteção sui generis a poucas hipóteses, como é o caso das obtenções vegetais.

TRIPs concedeu prazo para que os países-membros adequassem suas legislações nacionais mediante a promulgação de leis que garantissem direitos de proteção intelectual em áreas até então não abrangidas, ou adaptassem suas leis nacionais aos seus pisos mínimos.

Após ratificar sua adesão a TRIPs, o Brasil foi obrigado a alterar a antiga legislação vigente sobre propriedade industrial porque não atendia aos patamares mínimos estabelecidos no referido acordo internacional. De fato, a legislação brasileira então vigente não concedia proteção sob a forma de patentes a fármacos, e nada dispunha sobre biotecnologia. A adesão do país a um acordo internacional pressupõe a internalização dos princípios do referido acordo na sua legislação interna (REZEK, 2000).

Face ao exposto, o Chefe do Executivo enviou à Câmara dos Deputados um projeto de lei que após aprovação nas duas Casas do Congresso, deu origem à Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996. Essa lei disciplina os direitos e obrigações relativas à propriedade industrial e regulamenta, em seus diversos títulos, as seguintes matérias: patentes de invenções e de modelos de utilidade, registros de desenhos industriais, registros de marcas, indicações geográficas, além de dispor sobre concorrência desleal.

As demais áreas do conhecimento passíveis de proteção por direitos de propriedade intelectual foram contempladas em leis específicas.

Facultada a proteção das obtenções vegetais por meio de patentes ou por um sistema sui generis, consoante se lê do artigo 27.3.b de TRIPs parcialmente transcrito, o país optou pela forma mais branda preconizada no sistema UPOV, e o fez utilizando o balizamento das regras estabelecidas em sua Convenção de 1978.

Em vista da proposição legislativa encaminhada pelo Chefe do Poder Executivo, as duas Casas do Congresso aprovaram a Lei n° 9.456, de 25 de abril de 1997, que institui a proteção de cultivares, área do conhecimento a que o país, até então, não reconhecera qualquer proteção intelectual.

Após a promulgação da Lei n° 9.456, de 1997 – conhecida pelo setor como Lei de Proteção de Cultivares, o país aderiu, formalmente, à Convenção da UPOV de 1978. O Congresso Nacional aprovou a Convenção Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais, de 2 de dezembro de 1961, revista em Genebra, em 23 de outubro de 1978, por meio do Decreto Legislativo n° 28, de 19 de abril de 1999. A referida Convenção entrou em vigor internacional em 8 de novembro de 1981. O governo brasileiro depositou o Instrumento de Adesão em 23 de abril de 1999, passando esta a vigorar para o Brasil em 23 de maio de 1999. Posteriormente, a referida Convenção foi promulgada pelo Decreto n° 3.109, de 30 de junho de 1999.

No rastro da Lei de Proteção de Cultivares e com o claro objetivo de modernizar o arcabouço jurídico que regulamenta a produção de sementes e mudas no país, foi igualmente aprovada a Lei n º 10.711, de 5 de agosto de 2003. Essa Lei dispõe sobre o sistema nacional de sementes e mudas, e dá outras providências, e sua respectiva regulamentação foi expedida na forma do Decreto n° 5.153, de 23 de julho de 2004.

Na área da informática passou a vigorar a Lei n° 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programas de computador.

Vale ressaltar também a vigência, na mesma data, da Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e os direitos que lhe são conexos.

O Projeto de Lei n° 1.787, de 1996 dispunha sobre a proteção da propriedade intelectual de circuitos integrados. Esse projeto de lei foi retirado de tramitação em razão da vigência da Lei nº 11.484, de 31 de maio de 2007 que dispõe sobre os incentivos às indústrias de equipamentos para TV Digital e de componentes eletrônicos semicondutores e sobre a proteção à propriedade intelectual das topografias de circuitos integrados, entre outros assuntos.

Essas foram, em resumo, as principais medidas adotadas pelo governo para adequar a legislação nacional do país aos compromissos assumidos quando ratificou sua adesão a TRIPs e, posteriormente, a Convenção da UPOV, de 1978.

Além disso, para atender aos três princípios gerais da Convenção da Diversidade Biológica, o Poder Executivo editou a Medida Provisória n° 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia para sua conservação e utilização. Para assegurar o início de sua execução, foi editado o Decreto n° 3.945, de 28 de setembro de 2001, que define a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e estabelece normas para seu funcionamento.

Com o avanço das pesquisas no país na área da biotecnologia e visando regulamentar os incisos II e V do § 1° do art. 225 da Constituição Federal de 1988, foi aprovada a Lei n° 8.974, de 5 de janeiro de 1995, que estabelecia normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados (OGMs), autorizava o Poder Executivo a criar a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), e dava outras providências, complementada pela Medida Provisória n° 2.191-9, de 23 de agosto de 2001. Posteriormente, entrou em vigor a Lei n º 11.105, de 24 de março de 2005 que revogou a Lei n º 8.974, de 1995 e sobre a qual se discorreu de forma exaustiva, no capítulo precedente.

Cabe mencionar, finalmente, a Lei n° 10.603, de 17 de dezembro de 2002, que dispõe sobre a proteção contra o uso comercial desleal de informações relativas aos resultados de testes, ou outros dados não divulgados apresentados às autoridades competentes como condição para aprovar ou manter o registro para a comercialização de produtos farmacêuticos de uso veterinário, fertilizantes, agrotóxicos, seus componentes e afins.

Nos últimos dez anos, portanto, o Poder Executivo Federal e as duas Casas do Congresso – a Câmara dos Deputados e o Senado Federal trabalharam para formular, discutir e aprovar as leis nacionais que garantem a efetiva incorporação, no território nacional, dos diferentes sistemas de proteção intelectual e de repartição de benefícios exigidos pelos marcos reguladores internacionais estabelecidos pela OMC - TRIPs, UPOV E CDB.

4.4 Direito de PI sobre a nova tecnologia e sobre a genética: conseqüências

As tecnologias derivadas da biotecnologia aplicada à área vegetal implicam na constituição de diferentes direitos de propriedade intelectual, às vezes incidentes sobre o mesmo produto. Para ilustrar, voltemos ao exemplo que serve de pano de fundo a esta dissertação: a soja rr.

Na soja rr, a tecnologia concernente à construção gênica CP4 - EPSPS descrita de forma sumária na seção 3.3. do Capítulo 3 é de propriedade de empresa multinacional que a patenteou nos Estados Unidos da América e em outros países, inclusive no Brasil. A patente no Brasil foi concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI pelo prazo remanescente ao da patente norte-americana. Isso significa que a empresa titular da patente terá competência legal para exercer seus direitos de propriedade imaterial sobre a tecnologia, no Brasil, até o ano 2012, caso a mesma, por qualquer razão, não venha a ser revogada, administrativa ou judicialmente, até essa data.

Por outro lado, a Lei n° 9.456, de 1997, conhecida pelo setor como a Lei de Proteção de Cultivares, faculta proteger em nome próprio as novas cultivares que, em geral, resultam de programas de melhoramento genético vegetal conduzidos por entidades públicas, cooperativas e empresas.

Alguns desses programas, que vêm sendo desenvolvidos há mais de cinqüenta anos, constituem-se num êxito sem precedentes, porque a soja é uma espécie vegetal que, originalmente, apresentava bons resultados em termos de produtividade apenas em regiões com temperaturas amenas e pouca luminosidade. Os programas brasileiros de melhoramento genético de soja se constituíram a partir de germoplasma bruto de soja que veio da China, foi armazenado nos bancos existentes nos Estado Unidos da América e, posteriormente, remetido para o Brasil, como resultado da cooperação bilateral de intercâmbio de germoplasma de diversas espécies vegetais.

Os programas brasileiros de melhoramento genético de soja, de alta tecnologia, resultaram na obtenção de novas cultivares que apresentam desempenho produtivo em baixas latitudes. Atualmente, encontram-se lavouras de soja em quase todos os Estados brasileiros, inclusive nas regiões de clima subtropical e tropical, destacando-se não apenas a produção pioneira das lavouras no Rio Grande do Sul, mas também no Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Bahia, Distrito Federal, Sul do Maranhão e Piauí, entre outros. Alta produtividade e qualidade deram ao país destaque como um dos maiores produtores e exportadores de soja grão, óleo e farelo, nos últimos dez anos, ultrapassando em algumas safras os Estados Unidos, até então o maior produtor mundial.

O titular da cultivar protegida possui, durante quinze anos, o direito exclusivo de produzir sementes comerciais, observadas as exigências da legislação nacional de

sementes, e vendê-las aos agricultores. Esse direito é exercido pelo titular da respectiva proteção ou, o que é mais comum, por empresas de sementes licenciadas mediante o pagamento de royalties, quando a cultivar é obtida por entidades públicas de pesquisa.

A construção gênica CP4 - EPSPS foi licenciada pela titular da patente, a uma outra empresa, detentora de um programa de melhoramento genético vegetal de soja. A licenciada, mediante cruzamento, conseguiu transmitir a referida construção gênica, que expressa tolerância ao herbicida glifosato ao seu programa de melhoramento, do qual resultaram cinco cultivares de soja distintas, mas com uma característica comum que é, justamente, a tolerância ao referido herbicida, e cujos registros no RNC/MAPA, repete- se, foram obstados por força de uma liminar judicial. No caso acima descrito, a empresa titular das cinco cultivares cujo registro foi obstado por força da mencionada ação judicial pertence ao grupo econômico da empresa titular da patente da construção gênica. Sucede que a empresa titular da patente licenciou a mesma construção gênica a outras entidades públicas, cooperativas e empresas que desenvolvem programas próprios de melhoramento genético de soja, dos quais já resultaram cultivares de soja transgênica, diferentes entre si, porque adaptadas a todas as regiões do país, porém com uma mesma característica que expressa tolerância ao herbicida glifosato.

Em decorrência do exposto serão disponibilizadas no mercado especializado muitas outras cultivares transgênicas de soja, além das cinco originais, tituladas em nome de diferentes entidades públicas e instituições privadas, que expressarão muitas características diferentes entre si, mas todas terão uma característica comum: a tolerância ao herbicida glifosato. Portanto, na semente de soja rr encontram-se incorporadas duas tecnologias distintas: uma decorrente do programa de melhoramento genético vegetal que é representada pela nova cultivar; e outra decorrente da modificação de seu genoma para a incorporação da construção gênica CP4 - EPSPS. A primeira é uma cultivar, passível de proteção intelectual por meio da Lei n º 9.456, de 1997 e a segunda é uma construção gênica passível de patente por meio da Lei n º 9.279, de 1996 (lei de propriedade industrial).

Essa é a razão pela qual em relação à soja rr as empresas de produção de sementes são obrigadas a pagar royalties pelas duas tecnologias: ao titular da construção gênica e ao titular de cada cultivar que a tenha incorporado. O direito à taxa tecnológica (ou royalty) pelo uso da patente perdurará até o ano 2012, em razão da extinção do prazo da patente no Brasil. A partir de então, os produtores de semente ficarão obrigados a pagar apenas os royalties devidos aos titulares das cultivares protegidas, ainda que nas mesmas continue a ser incluída a referida construção gênica porque a partir de 2012 a invenção já terá caído em domínio público.